TOURO TIÃO E O TREM DE FERRO

Sinuosa, insinuante, silenciosa, serpenteando a serra, a estrada de terra... Pés pesados do passante, no átimo de um instante, na seqüência de segundos, naquele sovaco do mundo, o encantamento de um mágico momento, como num conto de fantasia, num jorro de poesia, logo abaixo do morro, um pouco acima do rio, o atavio: no suspiro de um susto, surge a carcomida, surrada, sofrida casa colonial da fazenda! A bica d’água, vazando em avarias, o monjolo, o engenho, a moenda, o cansado quintal, o paiol, o desmantelado curral, o chiqueiro cheirando mal, o decrépito canavial... Voraz, a avidez da viuvez daquela vivenda!!!

Pluri-pontinhos brancos brotam em beleza no verde-verdinho da colina, logo acima da fazenda, em todo o canto – seu tesouro e maior ouro, sua maior riqueza, sua renda; plasticidade, felicidade, suave encanto que ele ama tanto: A boiada, espalhada no pasto, só euforia, alegria, prenda pro fazendeiro – seu lucro, seu dinheiro!

Tudo tem seu dia e sua hora de alegria ou de desdita, na avidez de sua vez ou na demora de sua hora, quando o trem grita, apita, tora a serra, comprimindo, cortando, extinguindo o silencio daquela terra.

O trem de ferro, o furor de tanta força, o terror, o pregoeiro, o arteiro de tanta artimanha, o mensageiro do progresso do presente, pés compridos e oprimentes sobre os dormentes, a espantar pássaros, animais e gentes; rangido fino, mofino, estridente, impertinente; batecum dos trezentos, trem riliento, agourento, fumacento, fedorento no sem rumo da serra, ferra, fura, fode, explode a virgindade daquela pura e pacata herdade!

Solitário, soberbo, soberano e só naquele cafundó; titã, na sua tenência e existência de famanã, com aquela saúde sã, o touro Tião risca, rabisca, futrica o chão com o chifre; a guampa em riste...

Qual a novilha que resiste às façanhas, manhas e artimanhas do touro galã?

Afastado das companheiras, na beirada da cerca, num filosofar e matutar bovino, sem tino, sem eira nem beira, lá pras bandas da ladeira... Sorumbático, enigmático, apático em suas cogitações e ações, o touro intenta, inventa, tenta, tange tantas interrogações... No avesso do arremesso do balanço do trem, vagas, vaporosas, saudosas lembranças lhe vêm: “ A Viçosa, a Vassoura, a Crioula, a Briosa, a Salada, a Cenoura, a Galinha, a Branquinha, a Rolinha e tantas outras vacas... a boiada toda, o curral tupetado, não cabendo mais gado... Toda essa gadama, misturada a mijo, estrume, fedor e lama, indo para o matadouro, no agouro daquele funesto e destrambelhado trem?!!

Assunta, afia, besunta, enfia o chifre na terra, Tião! É guerra! Lá envém o inferno do cavalo de ferro, o trem!

--- Tiãotcham! Tiãotcham! Tiãotcham! Tiãotcham! Tiãotcham!...

Tome tenência, Tião! Use, abuse de sua potência! Não seja babaca! O Troço tá tupetado de vaca!!!

O touro bufa, baba, berra, urra de dor! Voraz, veloz em seu vigor, tenta, intenta, estancar o trem...

Aquele vai e vem do touro e do trem vira ouro de mau agouro: O touro Tião, tresloucado, estoura, desmantela , destrói o trem! Naquela procela sela sua sina, se esfacela também....

Tremendo tanto de tanta confusão, milagre de vida, morte, sorte, ressurreição! As vaquinhas inocentes, reverentes, boazinhas, se acumulam, se anulam num berro de dor ao redor do corpo exangue, sobre uma enxurrada de sangue, do Tião. Rito, triste, contrito, bonito, de gratidão!

Um ventinho vadio, frio, vindo do lado do regato traz aquele cheiro familiar, tão singular, de mato. A chuvinha fina que vem da serra, em forma de véu e neblina, cai do céu em surdina, levando, lavando toda a maldade e iniqüidade da terra...

Lá pras bandas do povoado, espantando todo o mal, a chuva em cascata, desata em promessa de prosperidade, fartura, felicidade e paz e, assaz, se mistura com fosforescente e envolvente luz. É Natal! Nascimento de Jesus!

Lazaro Faleiro
Enviado por Lazaro Faleiro em 21/12/2014
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