CAFÉ XIX

Conto

I° PARTE

- Se porventura eu lhe contar um caso insólito que se passou comigo dia desses tu me prometes que não julga-me-as um desatinado?

- Ora, deixe de cerimonias! Como se todos nós não estivéssemos a todo o tempo presenciando e ouvindo histórias dos mais excêntricos tipos. Lembra-te do que se sucedeu há duas semanas com o....

- Não, não! O caso insólito do qual lhe falo vai além disso. Foi algo verdadeiramente singular.

- Sabes que tu estás me deixando deveras curioso? Ande vá, conte-me logo este caso então!

- Está bem, ei-lo: tu bem sabes que há algum tempo venho trabalhando em um longo romance destes de deixar qualquer escritor obcecado pelo trabalho e...

- Bem sei! Pouco lhe tenho visto visitar as meninas. Elas já deram pela tua falta, isso é certamente fruto do trabalho em excesso.

- Ora! Não me interrompas, assim não conseguirei contar-te o caso em sua plenitude.

- Desculpe-me, desculpe-me! Conte-o, conte-o.

- Pois bem! Onde foi que eu parei mesmo?

- Tu dizias que estás trabalhando em um longo romance...

- Ah sim, é verdade! Voltemos ao caso. Há algum tempo venho trabalhando em um romance que me obceca. Eis que passo o dia e boa parte da noite, pois a outra, por questões de saúde, tive que dedicá-la ao sono, escrevendo-o, lendo-o e rescrevendo-o. Nos últimos tempos nada tenho feito que não esteja diretamente ligado a este projeto. Estou buscando a eternidade da alma através da arte! Contudo, como tu bens sabes, por vezes, a fim de organizar e conceber ideias, bem como aliviar o espírito também, é necessário abandonar o trabalho por algumas horas e ir fazer qualquer coisa fora de casa.

- Bem sei, bem sei! Eu mesmo...

- Já lhe disse para não me interromper, somente escute!

Como eu lhe narrava, é necessário e salutar deixar o trabalho de lado em algumas circunstâncias, sobretudo naquelas em que, mesmo diante de muito esforço, boas ideias e pensamentos não lhe ocorrem. O que fará um escritor sem ideias? Pouco meu caro, pouco. Para minha infelicidade, na última segunda-feira encontrava-me em tal situação. Por mais que eu empregasse todo o esforço que me era me possível, nenhuma boa ideia me vinha à mente. Estava ela mais vazia do que a de um acadêmico. O que fazer diante de tal situação? Sair de casa! sair de casa! Não há outra solução.

Eis que deixei para trás então aquele escritório que já começava a sufocar-me e fui tomar alguma coisa no Noir. Como sempre, e tu bem sabes disso, estavam lá, em sua grande maioria, estes reles e medíocres intelectuais que tão prodigamente o nosso século produz. São os intelectuais especialistas, aqueles que sabem muito sobre uma determinada coisa, mas que em compensação ignoram todas as demais. Se nos deixarmos impressionar pela altivez com a qual eles falam, meu caro, quase somos levados a acreditar que estamos diante de verdadeiros homens de espírito.

Para não sentir-me tão deslocado em meio a todos os que estavam no café, pois naquele dia ninguém dos nossos estava lá, confesso-te tentei entabular uma conversa com um destes intelectuais. Todavia, ela foi muito breve, e não poderia ter sido de outro modo, uma vez que nunca tive paciência para com os espíritos loquazes e tacanhos. Na primeira oportunidade que tive, e foi precisamente quando o meu interlocutor foi ao banheiro, tratei de chamar o garçom para pagar-lhe a conta e escapar o mais rápido possível dali antes que o outro voltasse e continuasse sua enfadonha exposição acerca de uma teoria estética elaborada por algum filósofo qualquer, penso que era a estética de Schiller que ele me expunha. Sabia tudo a respeito da estética de Schiller, mas quando pedi-lhe que me falasse a respeito da de Kant, influência direta da de Schiller, ele corou a tal ponto que pensei que estava passando mal.

Sem a miníma vontade de recolher-me ao escritório novamente vaguei ainda um bom tempo pelas ruas vazias do centro em busca de alguma experiência que me suscitasse, que me impelisse as boas ideias. Os primeiros vinte, trinta minutos de vagueação foram infrutíferos frente aos meus desejos, nenhuma nova ideia ou experiência. Há tempos que perscrutar o infortúnio ao qual são lançados os dependentes da onomatopeia da morte (Crack, Crack....), as mulheres que vendem prazer e os vagabundos da noite não me proporciona nada de relevante no campo das ideias literárias.

Um pouco fatigado pela caminhada resolvi sentar-me durante alguns minutos em um daqueles duros bancos da praça que se avizinhou-me. Estava vazia, ninguém por ali circulava, somente ouvia-se o barulho das árvores que balançavam com o vento e o contínuo frêmito ocasionado pelo ir e vir dos ratos que disputavam o lixo ali acumulado em um canto. Pus-me a refletir acerca da repugnante vida que levam estes bichos e logo intentei tratar a propósito de algumas semelhanças entre eles e alguns homens que se afigura em determinadas circunstâncias. Não cheguei à concluir a ideia, contudo, pois fora surpreendido por um sujeito que antes mesmo da minha permissão já dividia o banco comigo.

- Como são nojentos estes bichos, não é verdade? Mais um pouco e eles se tornam homens! Surpreso com a presença dele, a exclamação e a pergunta me foi audível porém ininteligível, de modo que então não as respondi. Somente depois de certo esforço que decifrei as primeiras palavras do sujeito, porém já era tarde para lhe dar uma resposta ou tecer algum comentário sobre sua irônica afirmação. No intento de abrandar a surpresa provocada pela iminente aparição do homem, saquei do bolso um Café Crème, estas deliciosas cigarrilhas que em determinados momentos nos ajudam a pensar e a se acalmar.

- Fogo? Perguntou-me o homem, que tinha um ar zombeteiro e folgazão.

- Obrigado! Respondi-lhe em tom seco, porém sem ser agressivo e de modo a não causar-lhe impressão de que a presença dele me importunava.

- O que fazes por aqui uma hora dessas? Indagou-me o sujeito, valendo-se de um tom que aos ouvidos de qualquer um deixaria claro que entre nós haveria um laço de amizade, um laço de intimidade, coisas que não haviam, por suposto. Não levei em consideração esta pequena indelicadeza, todavia, e o respondi com cordialidade.

- Estou vagando por aí a fim de aliviar o espírito e também para conceber algumas ideias.

- Ah! És filósofo ou qualquer coisa do gênero? Perguntou-me. Confesso-te que causou-me certa lisonja ser tido como filósofo, mas logo deixei claro minha ocupação.

- Não, sou escritor!

- Que bela ocupação! Respondeu-me sem ser irônico, como já havia sido antes.

- O caso é que ando sem ideias, e tu deves saber que um romancista sem ideias nada produz. Vago por aí a fim de concebê-las! Antes mesmo de chegar aqui parei em um café, no Noir, para ver se mediante alguma conversação com algum ser espirituoso alguma me ocorria, mas nada. Tais seres estão em falta hoje!

- Perdes o teu tempo indo àquele café! Tens que ir no Café 19, lá sim é um lugar para os escritores, disse-me o sujeito, que se levantara do banco e dava mostras de que logo partiria.

- Veja, continuou, siga em frente por esta rua, vire depois à direita, caminhe mais alguns metros e você então estará no Café 19. Por uma fração de segundos, em decorrência de um rato que passara rente os meus pés, desviei os olhos do homem que eu ouvia atentamente. Quando os voltei a ele, já não estava mais ali. Fui acometido por outra surpresa!

- Mas então! Foste ou não foste ao café que ele lhe sugeriu?

- Pois bem! Quando me refiz desta outra surpresa pus-me a refletir sobre o tal café que ele mencionara. Nunca ouvira falar a respeito do mesmo, não obstante conhecer quase todos os bares e cafés do centro. Pensei por um momento que o tal homem estivesse troçando comigo. Como estava sem rumo certo, contudo, segui a direção indicada pelo sujeito, fui em direção ao referido café.

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Rafael Oliveira, Florianópolis 2015.