Crônicas de Arunia - O Reino Antigo Cap 4

O mapa era gigantesco, coberto de símbolos e inscrições tão rebuscadas como aquelas em língua Kadan na entrada do templo. Era um emaranhado de entalhes que levariam anos para serem reproduzidos em pergaminho, correndo o risco óbvio de não serem transcritos corretamente, já que algumas pedras no chão estavam quebradas, lascadas ou trocadas de lugar, além de que as enormes manchas daquele líquido viscoso de Incubus cobriam uma parte significativa do trabalho. Ainda assim era lindo e, para Sky, representava uma nova esperança.

— Não parece muito portátil. — suspirou Aida, virando-se para Tillie logo em seguida — E vocês estão aqui por quê...?

A anã não hesitou em responder.

— Pesquisa. Você sabe, nós anões não somos exatamente conhecidos pelo nosso talento em artes Arcanas...

— Na verdade, eu não sabia disso. — interrompeu a ladra.

— Enfim. Infelizmente é verdade. No entanto, esse templo arcano é anão: as estruturas, as pedras usadas na sua construção... Praticamente tudo.

— E?

— E... Bem, o que aconteceu quando você descobriu a passagem secreta?

Aida não entendeu o que aquela pergunta tinha a ver com o assunto da conversa, mas respondeu mesmo assim.

— Primeiro houve um grande tremor de terra e depois eu meio que... Voei um pouquinho.

— Você voou um pouquinho! — Tillie riu.

— Foi aquela estúpida joia mágica!

— Pense um pouco. — retomou a anã — O que uma joia mágica, presa em uma estátua da religião humana mais importante, fazia em um templo anão antigo e não em Valond, a cidade do reino?

Aida pensou. Não só ela, mas todos ali ficaram intrigados com a perspicácia da questão e voltaram seus olhares atentos sobre Tillie, na esperança de que ela revelasse o mistério.

— Eu não posso responder a essas questões. — suspirou a anã, quebrando as expectativas dos outros ¬— Ninguém pode, senão o próprio Reino Antigo. E é por isso que eu e Zander estamos aqui.

— Então nós todos estamos procurando a mesma coisa! — concluiu Sky, num estalo de dedos.

— Espere aí. Mas, por que ninguém conseguiu abrir esse túnel antes? — indagou Aida. — Não é possível que ninguém mais tivesse a ideia de remover o rubi da estátua, não é?

— Suponho que a joia devia ter algum tipo de tranca ou segredo.

— Então como foi que, quando eu a removi, a entrada secreta se abriu?

Fez-se um minuto de silêncio que incomodou a ladra profundamente.

— Alguma coisa em você deve ter enganado a magia na joia. — disse Zander, o elfo. Ele tinha seus olhos prateados cravados em Aida. E ela não sabia dizer se sentia lisonjeada ou intimidada por aquele olhar.

— Eu estava mesmo pensando sobre isso... — concordou a anã — Pensei que o fato de você ser uma nobre, ou meio-nobre, sei lá, talvez tivesse a ver com o que aconteceu com a joia e a entrada secreta.

— Faz sentido! — disse Sky, para a surpresa de sua amiga. Aida não estava acompanhando o raciocínio daqueles pesquisadores, mas Sky estava atenta a tudo o que eles diziam e conseguiu entender perfeitamente o que levou Tillie a pensar daquela forma. — Dizem que os nobres vieram originalmente do próprio Reino Antigo. É por isso que são chamados “nobres”, porque costumavam serem todos de famílias nobres antigas.

— Certo! E, de acordo com as lendas, o Reino Antigo foi uma cidade construída conjuntamente por Humanos, Anões e Elfos...

—... Com conhecimento extremamente avançado das artes Arcanas. Os magos eram até... comuns naquele tempo. — completou o elfo, em devaneio. Agora com os olhos baixos para o chão.

— Okay! — exclamou Aida, entediada com toda aquela demonstração de conhecimento. — Obrigada pelas aulas de história, foi muito gentil da sua parte.

— O que eu estou tentando dizer é, — apressou-se Tillie, voltando ao assunto principal — já que nós estamos procurando pelo mesmo lugar...

— Deveríamos procurar juntos! — concluiu Sky, com um pulinho de exaltação.

+++

— O QUÊ?!

Aida e Zander exclamaram ao mesmo tempo. Para Aida, aliar-se àqueles dois significava mergulhar fundo naquela maluquice de Reino Antigo, coisa a qual estava tentando afastar Sky de fazer. Elas já tinham se arriscado demais em único dia, será que não era o bastante? Além disso, Aida não gostava daquele lugar — templo anão, caverna, ou sei lá o quê — e de como ele a fazia se sentir. Empenhar uma jornada em busca de outras partes do mapa ou de uma forma de interpretá-lo era uma perda de tempo sem tamanha e tudo isso para quê? Achar algumas respostas para colocar nos livros de história e acalmar o coração de Sky no que dizia respeito à morte de sua mãe? Não parecia motivo suficiente. E olhe lá! Eles nem sabiam se esse lugar existia mesmo pra começo de conversa.

Quanto a Zander, os motivos que o levaram a se exaltar com aquela sugestão eram praticamente dois. O primeiro era o fato de aquelas duas garotas serem obviamente ladras ou, no mínimo, arruaceiras: os trajes, as pequenas armas e o indício daquela de cabelo prateado ter mexido inescrupulosamente numa joia em meio a um templo abandonado comprovavam isso. Por mais que a outra, a morena, demonstrasse certo interesse em adquirir conhecimento, ele não podia deixar de induzir que as duas só acabariam atrapalhando as pesquisas. A segunda objeção era o fato daquela de cabelos prateados ser mais interessante do que Zander achava que devia considerá-la. Aquela ali em especial podia atrapalhar sua concentração... Espere. Isso queria dizer que ele se sentia atraído por Aida?

No fim, nenhum dos dois teve a chance de expor suas objeções. Sky e Tillie já pareciam ter acertado tudo. Trocavam sorrisos e pulinhos de alegria por terem tido a mesma ideia.

Quando iam abrir a boca para protestar, as outras duas interromperam, falando alto e tomando conta de todas as falas.

— Juntos podemos achar o próximo alvo descrito nos diários da minha mãe! — disse Sky.

— Sim! E quem sabe achar mais algumas respostas por lá. — continuou Tillie.

— Vamos descansar no nosso acampamento em Davenside e podemos partir para os vales amanhã de manhã!

— Gostei, garota! Assim é que se fala!

A humana e a anã saíram da câmara em direção ao túnel de braços dados como se já fossem melhores amigas. Restou a Zander se aproximar de Aida e suspirar contrariado.

— Suponho que nós não temos nenhuma decisão sobre esse assunto.

— Não mesmo. — respondeu a garota, com outro suspiro.

+++

—... Daí você só tem que cortar um pequeno pedaço da ponta do caule e extrair a seiva!

— Sério, só isso? Obrigada, Til! A única pessoa mais próxima de um alquimista que eu já conheci é o meu pai, mas ele nunca me conta nada sobre flechas envenenadas!

No caminho de volta a Davenside, Tillie e Sky estavam engajadas numa conversa calorosa. Aida nunca tinha visto sua amiga tão empolgada assim com uma nova pessoa. Esse lado curioso e super interessado em propriedades químicas, modo de preparo de poções e fosse mais lá o quê que aquelas duas estivessem conversando sobre, a ladra nunca teria imaginado da parte de Sky.

— Pais. Sempre super protetores. — quando Tillie ria, seu nariz fazia um barulhinho engraçado — Mas flechas envenenadas podem ser bem perigosas mesmo. Se você não souber como manejar o veneno, ele pode te paralisar por dias!

Aida e Zander caminhavam juntos um pouco mais atrás das duas. Até o momento, nenhum deles tinha dirigido uma palavra sequer ao outro desde que se afastaram do templo. O elfo era quase tão frio e quieto quanto... Quanto Jalen, aquele do acampamento! Será que todos os elfos lunares eram assim?

Desconfortável, a ladra tentou então quebrar um pouco o silêncio.

— Sky parece bastante interessada. Acho que está até se divertindo! Se é que é possível se divertir com aulas de botânica...

Ela riu nervosamente. A boca de Zander continuou como uma linha fina num rosto sem expressão. Ele assentiu calado, e continuou seguindo o caminho da trilha. Aida revirou os olhos. Talvez ser um chato de galochas fosse mesmo uma característica comum a todos os elfos lunares...

— Está se sentindo bem? — para a surpresa de Aida, Zander quebrou o silêncio daquela vez. — Parece um pouco pálida... Você ficou bastante tempo presa naquele pesadelo.

— É. Voar e depois cair numa armadilha de Incubus não foi exatamente algo divertido ou saudável... — inesperadamente, a barriga de Aida fez um barulho estranho — Mas talvez eu só esteja morrendo de fome mesmo! — riu ela.

Zander parecia aliviado, mas havia algo mais em seu rosto que mudara sua falta de expressão e não era só o alívio. Aida não sabia dizer o que era até perceber que seus lábios mudaram de posição, passando de uma linha reta para uma linha levemente curva nas pontas. Quase como se o elfo estivesse... Sorrindo?

— Ei, você... Você acabou de... SORRIR? — Aida exclamou — Olha só! Eu nem sabia que vocês lunares podiam sorrir! — a ladra riu ainda mais.

Evitando contato visual, Zander agora parecia uma criança encabulada que acabara de ter um segredo descoberto. Uma atitude que destoava completamente do cara maduro e sério que ele aparentava ser na maioria das vezes.

— Normalmente, nós... Bem, nós quase não fazemos isso, mas eu... Ahn... Eu sou um mago. — e o jeito como ele se atrapalhara com as palavras fez Aida rir de novo.

— Tá, e os Magos são o quê, pessoas super otimistas que estão sempre sorrindo? Aí você tem que ficar no meio-termo entre ser um elfo lunar aborrecido e um mago sorridente?

A postura infantil de Zander de dois segundos atrás desapareceu tão rápido quanto havia surgido e ele retomou a pose séria, voltando a falar como se fosse um professor da Academia de Ildis.

— Magos têm emoções dez vezes mais fortes do que seres sem mágica alguma. Como é que você não sabe disso? Isso é conhecimento geral.

Emoções dez vezes mais fortes? Pensou Aida. Imagine como deveriam ser os elfos não magos então! Deviam ser como estátuas! Riu de novo.

— Eu não fui muito ensinada durante a minha vida. Toda essa parte de se esconder e ser constantemente caçada não deixa muito espaço para sentar e aprender muita coisa além de sobrevivência... — disse Aida, antes de perceber que acabara falando demais.

— Entendo...

Felizmente, Zander não era enxerido a ponto de perguntar sobre a vida da garota, como Tillie provavelmente faria no lugar dele. Ao invés disso, procurou desconversar, o que deixou Aida mais confortável.

— Bem, não há muito mais o que saber mesmo. Eu sou como qualquer outro elfo lunar só que... com magia e emoções exageradas.

— Emoções exageradas? — debochou a garota— Desculpe-me por dizer isso, Senhor Mago, mas você não parece muito emotivo pra mim. Quero dizer, você tem sempre a mesma cara!

Sem parecer ofendido, ou melhor, sem parecer coisa alguma, já que seu rosto continuava sem expressão, Zander cruzou os braços sobre o peito.

— Ah, peço perdão por ter sempre a mesma cara.

Mesmo que ele não aparentasse ter se ofendido, Aida tentou consertar o que havia falado.

— Não, eu quis dizer... Você sempre tem essa cara de “Eu acho que comi demais”.

... E, obviamente, ela não conseguiu.

Então ele parou de andar e ficou encarando os olhos verdes de Aida.

— Eu... não tenho essa cara.

Foi a vez da ladra teimosamente cruzar os braços.

— Você tem essa cara.

— Eu não tenho essa cara! — a criança interior de Zander voltou à tona, fazendo Aida cair numa boa gargalhada.

Mas, ela tinha de admitir, aquela cara emburrada e a postura infantil eram muito bonitinhas, principalmente naquela figura alta e masculina do elfo. O contraste era até... interessante, por assim dizer.

— Não se preocupe, Zander. Não é uma cara feia. — a ladra piscou para ele, descruzou os braços e continuou andando pela trilha.

Por dois segundos, ele não se mexeu.

Aquilo fora... Um flerte?

— Eu... Ahn, isso é... — e calou-se.

O rapaz desistiu de tentar responder qualquer coisa e continuou a viagem, mais silencioso do que nunca, recluso a seus próprios pensamentos, enquanto seus olhos teimavam sempre voltar para os cabelos prateados da bela garota à sua frente.

+++

Já estava anoitecendo quando o grupo atingiu o final da trilha que dava para o acampamento em Davenside.

Aida se sentia um pouco desconfortável. Talvez fosse o sangue nobre em suas veias, ou seu senso de perigo altamente desenvolvido durante os anos em que passara se escondendo... Não importava como, ela apenas sabia que alguma coisa estava errada.

O final de tarde estava mais frio e silencioso do que jamais deveria ter sido. Embora o destino estivesse muito próximo agora, a ladra de cabelos prateados simplesmente não conseguia ficar tranquila.

— Esperem. Alguma coisa não está certa. Eu sinto... — alertou Aida, mas era tarde demais, o grupo já havia adentrado o perímetro que circundava o acampamento. —... Morte.

A visão era estarrecedora.

Havia sangue por todos os lados e corpos espalhados pelo chão. A tenda maior estava caída, a outra, manchada de sangue e lama. O cheiro de decomposição já começava a impregnar o ar em volta do acampamento destruído.

Depois de segundos em transe por aquela visão, Aida passou rapidamente os olhos pelos corpos que conseguia enxergar.

Infelizmente, ela reconhecia todos eles.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 25/03/2015
Reeditado em 28/03/2015
Código do texto: T5183333
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.