Miados Humanos

Não quero morrer não quero morrer, era o que eu gritava, uma menina de 13 anos, sozinha num abrigo para menores, o suor escorrendo na testa, mãos úmidas e pés gelados. Pés que não andam mais. Pés sempre gelados. E o silêncio, mudo e apavorante. O abismo, quando visto de cima, é assustador. Quando caí olhei pro alto, e o céu ia lá longe. Algumas vezes amanhecia com dor de cabeça e com a gata em cima das minhas pernas. Ali ela não tinha peso. Apareceu aqui uma noite dessas e foi ficando. Não sei de onde veio. Nem se importava de eu não levantar da cama para brincar com ela.

O que mais gostei nela foi o seu pelo negro. Queria ter cabelos dessa cor.

O que restou foi este quarto. E a janela, sempre meio aberta. É por onde ela ia e vinha e eu espiava a rua, sempre a mesma coisa, o mesmo pedaço aberto de poucas imagens. Só a gata. Algumas vezes aparecia molhada, suja, magra. Noutras, toda machucada. Era quando permanecia mais tempo. Teve um dia que ela apareceu com um presente pra mim. Uma pomba, enorme e da cor da noite. Acordei com a gata sentada ao meu lado com a ave na boca já sem vida. Depois trouxe aranhas, ratos, cobras e até um filhote de cachorro. Uma noite acordei de um pesadelo, assustei a gata, que mordeu meu pé, sem dor física, apenas o movimento involuntário, o pé sem vida que reage à dentada.

Dentada que não sarou. O pé apodreceu, depois a perna, depois...

Depois foi diferente e estranho. Eu ainda estava no quarto, mas fora da cama, onde pra mim tudo é novo. Não havia suor escorrendo nem mãos frias e pés úmidos. O coração batia mais rápido, a visão dilatada e os sons. Mais altos. O cheiro tem outro aroma. Sentia o corpo mais leve e ágil. E fome. Muita fome. Precisava de alguns petiscos. Uma pomba ou um rato quem sabe. Foi quando vi a janela meio aberta me chamando pra rua. Depois de muito tempo eu estava solta daquela cama e longe do quarto, sentindo o vento tocar meu pelo negro. Agora, não tenho mais medo do abismo. Sei que não vou mais cair. Isso aconteceu quando eu ainda era uma menina.

Teve um dia que eu voltei lá. A mesma janela meio aberta, o quarto, a cama. Dessa vez não entrei, quis ficar ali observando aquele corpo na cama e escutando seus miados humanos.

Rodrigo Barcellos
Enviado por Rodrigo Barcellos em 27/03/2015
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