Depressão

A velha senhora solitária morava na mesma casa já havia muitos anos. Na verdade ali crescera e se casara passando a administrar a casa depois da morte da mãe. Sempre foram uma pequena família. Não tivera filhos, mas tivera amigos. Alguns. Que foram morrendo e no fim só sobrara ela e alguns poucos conhecidos.

A casa estava bem velha, caindo mesmo aos pedaços. Não fora sempre assim é claro. A mãe e o pai construíram a casa anos antes. Quando ela era menina. A mãe era uma dona de casa muito cuidadosa, e as coisas costumavam ser bem feitas. Toalhas de renda branca cobriam a mesa, flores frescas eram colocadas nos vasos, todos os dias. Flores essas que eram colhidas no jardim enorme ao redor da grande e bonita casa onde moravam. Frequentavam a igreja do povoado. Eram uma família respeitada, apesar de pequena. Eram só ela, o pai e a mãe. Pelo que soubera tivera um irmão, que morrera ainda criança. A mãe não superara, e evitava falar dele. Então ela não sabia seu nome e nem nada a respeito dele.

Os anos foram se passando, o pai faleceu quando ela tinha 12 anos. Passou a viver só com a mãe. Aos 18 arrumou o primeiro e único namorado e casaram-se logo em seguida, não eram apaixonados um pelo outro, era apenas um casamento de convenção. Mas se davam bem, não precisavam de muito, moravam com a mãe e frequentavam a mesma igreja que ela. Vez ou outra recebiam uma visita. Ela era meio tímida, as visitas eram quase sempre para a mãe. E eram quase sempre velhas senhoras amigas ou vizinhas e pessoas da igreja, na maioria das vezes vinham movidas pela obrigatoriedade religiosa. Quando ainda não completara 30 anos a mãe faleceu. O enterro foi simples e contava com umas poucas pessoas. Ficou só com o marido, viveram juntos por quarenta anos e não tiveram filhos. Com o tempo foram se tornando reclusos. A única vez que saiam e se arrumavam era aos domingos. Iam a igreja e voltavam para casa. Ela não percebeu como, nem quando, mas aos poucos foram ficando velhos. Talvez ela sempre tivesse sido velha. Não tinha muita vaidade nem sonho. Apenas ia vivendo. Recatada, simples sem ambições foi se acostumando a solidão. O marido adoeceu e morreu bem jovem tinha pouco mais de sessenta anos. Mas as pessoas da vila nem se deram conta, nem sentiram sua falta. Apenas o pastor veio ao velório. Tinha obrigações a cumprir, obrigações religiosas. Apenas isso. Ela enterrou o marido junto com o pai e a mãe e o irmão que não conhecera.

Essa foi sua vida; apenas isso, sem grandes emoções. Sem grandes felicidades, apenas algumas tristezas, mas que ela não questionava. Devia fazer parte da vida. Passara a morar só. O pouco dinheiro que ganhava vinha da previdência social. Também não precisava de muito para viver.

E aos poucos a casa foi perdendo o ar de um lar e passara a ser apenas uma velha casa, suja e sem cuidado. Não havia mais toalhas brancas de renda na mesa, nem flores nos vasos. O jardim desapareceu e se perdeu em meio a erva daninha. Ao redor da casa apenas a areia fina sem mato sem plantas, o terreno fora se tornando infértil e nem mesmo mato nascia mais ali. Era uma terra batida, seca, varrida pelo vento e pelo tempo. Tão infértil quanto ela que também não tivera filhos. Talvez se tivesse tido, hoje não seria tão solitária, talvez se tivesse tido filhos teria netos e algumas crianças corressem pelo quintal, mas ficara só. No começo ainda recebia algumas visitas, mas ela não tinha assunto, a conversa morria e um silêncio constrangedor tomava conta do ambiente, então as pessoas não vinham mais. Ela nãos as queria por perto de qualquer forma. Sentia-se melhor sozinha. Sozinha não, tinha um velho cão, se bem que não sabia se tinha um cão. Ele apenas foi ficando porque era tão solitário quanto ela. Um dia chegou faminto e manquitolando, ela lhe deu comida e ele se sentou a seu lado como que para agradecer. E foi ficando. Nem nome tinha.

Ao acordar colocava agua no fogo para fazer café, sentava na varanda da casa e fechava os olhos para ver o horizonte. Via mais de olhos fechados. De olhos abertos evitava olhar. Se sentia estranha, se pudesse ver o mundo, as pessoas e a vida fora da cabeça. Preferia o mundo interno, controlável e bonito. Em dias quentes as moscas zuniam e o cão adormecia a seu lado. Ela fechava os olhos e sentia a brisa fresca do entardecer. Ficava horas assim, pensando, sentindo... um dia ao abrir os olhos deu de cara com um menino.

Um menino magro, pequeno, não devia ter nem dez anos. Ele vestia roupas antigas, sapatos pretos com meias brancas, uma bermuda curta e camisa de botão. Trazia nas mãos uma bola colorida. Não se via mais meninos usando esse tipo de roupa. Hoje em dia usavam jeans e camisetas, com tênis ou chinelos. Mas isso não a perturbou, nem se importava com as roupas dele nem em como ou de onde viera. Seu rosto não lhe era estranho. Mas não tinha ideia de quem ele era. Deixou –o ficar sem perguntas. Ele brincava com a bola no quintal, como se tivesse nascido ali. Depois desse dia sempre voltava. Ela já se acostumara com ele. Não ligava mais. Não fazia perguntas, nem queria saber de onde viera, nem o que vinha fazer ali. E não ligava muito pra ele. Embora não entendesse o porquê dele voltar todas as tardes. Ficar apenas uns poucos minutos e desaparecer no final do dia. Ninguém vinha mais na sua casa, apenas o pastor vez ou outra, e o menino. Também pudera, o quintal vivia cheio de fezes, dela e do cachorro. Fezes secas, velhas, esbranquiçadas, meio cobertas por terra dos besouros, novas e cobertas de moscas... sim ela passara a usar o quintal e a varanda como privada. Não sabia bem porque, mas fazia as necessidades no quintal, como uma afronta a sociedade, ou como prova de preguiça descabida. No fundo sabia que era errado, no fundo sabia que isso a fazia parecer louca, mas não se importava. Era como se isso fosse o esperado, era como se com isso se protegesse, porque quem iria querer ir a um lugar cheio de fezes por todos os lados.

Ficou doente, passou vários dias num hospital, deram –lhe banho e roupas limpas, mas ela nem se importava.

Sarou e voltou para sua casa, sentiu-se aconchegada, em meio as moscas e ao cocô espalhado pelo quintal. Era tão familiar, tão confortável, tão seu. As moscas zumbiam, o sol batia na parede, aquecia e confortava seu coração. O pastor veio, mas nem ficou muito. Apenas deu uma leve batidinha em seu braço e se foi. A tarde o menino chegou, sem perguntas, rolou a bola, correu pegou de volta, olhou para ela e sorriu. Apenas sorriu. Ela deu uma olhada ao redor e por um instante se achou esquisita, pensou se seria maluca, e se era normal viver daquela forma, mas o instante passou, entrou dentro da casa, abriu uma gaveta da mãe e pegou a velha e empoeirada bíblia, seus dedos estavam fracos e deixou-a cair, ela abriu-se e a visão que teve a sobressaltou. Ali entre as coisas da mãe que a muito não mexia, estava a foto do menino com a bola. Estranhamente a mãe guardava com todo cuidado entre seus tesouros uma foto do menino que a visitava todos os dias...

Rosahoney
Enviado por Rosahoney em 06/04/2015
Reeditado em 30/08/2016
Código do texto: T5197180
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