Desconhecidos [parte 2 de 2]

Adrian foi primeiro, seguido de perto por Suruki e Daren, Upiro era o último. Passaram pelo portão enferrujado e subiram o pequeno lance de escadas que levava até a soleira da porta carcomida. O assoalho de tábuas de madeira parecia estar podre e a ponto de despencar. A fechadura da porta estava destruída, alguém devia tê-la arrombado. O interior da casa era espaçoso e tão decadente quanto sua fachada. Apesar disso, ao aceder uma da luzes, Adrian constatou que havia energia elétrica, pelo menos isso facilitaria um pouco as coisas. Eles se dividiram para vasculharem com maior eficiência e velocidade o primeiro andar.

Upiro foi para a cozinha. As paredes, o piso, o teto, uma estranha crosta de lama havia tomado conta de tudo, como um parasita. Havia jornais velhos e folhas secas apodrecendo por toda parte. Os armários e as prateleiras estavam lotados de latas de alumínio de tamanhos variados e todas cheias de areia fina e branca.

Suruki procurou no cômodo que devia ter sido há muito tempo uma sala de jantar. Não havia nenhum móvel lá. Nos cantos havia amontoados de trapos que serviam de ninho para centenas de ratinhos, ainda sem pêlos e rosados. O lustre velho estava entrelaçado em um emaranhado de teias de aranha. O assoalho e o papel de parede estavam chamuscados, o que era estranho, porque não havia nenhum outro sinal de fogo.

Daren atravessou o corredor que havia antes da escada. Ele levava a um pequeno escritório e a um banheiro. O carpete que cobria o piso fora comido por traças, era impossível passar por ali sem esmagar algumas, mesmo sem querer. A porta do banheiro estava emperrada, Daren não insistiu. Prosseguiu até o escritório, o assoalho estalava a cada passo, como se avisasse que estava pensando em desabar. Pela porta entreaberta, ele pôde ver uma escrivaninha tombada. Foi até lá cautelosamente, quase sem tocar o chão. Terminou de abrir a porta e pôs seus olhos dentro da sala. O assoalho estava ainda mais podre do que no restante da casa. Havia alguns livros no chão e a escrivaninha estava com as pernas para cima, parecia que um furacão havia passado por ali. Daren sentiu um vento frio e um cheiro esquisito subindo pelas tábuas espaçadas do piso, parecia o hálito de alguma criatura gelada. Ele percebeu frágeis fiapos brancos saindo preguiçosamente de lá, eles subiam e desapareciam.

- Venham todos aqui! – ele gritou. – Encontrei alguma coisa.

Em um instante estavam todos lá. Adrian foi o último a chegar e veio com uma cara contrariada, como se tivessem interrompido algo importante. Eles se amontoaram diante da porta, todos com medo do piso desabar. Upiro tomou a frente e deslizou até o meio da sala, de onde vinha o vento.

- Realmente há algo vindo lá de baixo. – ele se agachou e colocou um dos olhos entre as tábuas, inútil, não dava para ver nada. – Acho que há um buraco, talvez, um túnel aqui em baixo.

- Vamos descer? – Suruki perguntou.

Upiro desprendeu algumas tábuas cuidadosamente, retirou os pregos com suas facas e descobriu o buraco que havia sob o piso. Ele era profundo e cuspia para fora a corrente de ar que saía em tufos de fumaça fria. Em uma das laterais da fenda, enterrada na parede de terra e pedra havia uma escada de madeira, faltavam alguns degraus, ainda assim ela seria muito útil. O escuro, aos poucos, tomou conta da casa e sem que eles percebessem, a noite tornava-se mais e mais escura. O pedido de ajuda vinha junto com as sombras, como se fizesse parte delas, se espalhava ao ganhar a superfície e persuadia, instigava.

Eles desceram a escada e mergulharam no breu. À medida que desciam, tudo se tornava gelo, molhado e estático. Apenas o vento se movia, cortante e sem qualquer preocupação. Quando já estavam lá embaixo o relógio de alguém apitou, 00:00. Daren se desculpou e desligou o alarme.

O solo era de terra úmida, quase lama, e irregular, como se o túnel tivesse sido escavado por um animal. A escuridão era absoluta, não enxergavam nem a si mesmos. Sabiam para onde deviam ir, bastava seguir a voz muda que os chamava. Mas era inútil andar sem enxergar nada, eles não chegariam a lugar algum. Quando menos esperavam, um clarão iluminou o corredor, um flash instantâneo que se apagou logo em seguida. Depois de algum tempo ele voltou a surgir, vinha de uma criatura minúscula. Era muito parecida com uma joaninha e seu corpo, sob suas asas, era o que emitia a luz. Ela voava ao redor deles, descrevendo círculos longos e deformados com a maior calma do mundo. Enchia a caverna de luz e depois se apagava, acendia e logo em seguida desaparecia no escuro.

- Precisamos aproveitar os flashes – Adrian recomendou.

- Da próxima vez que ela piscar corremos na direção do vento – Daren disse.

- Mas, temos que levar o mosquitinho conosco – Suruki observou. – Senão quando nos distanciarmos dela, ficaremos no escuro outra vez.

- Como vamos fazer isso? – Upiro disse desanimado. – Eu nunca vi um bicho desses antes – ele ergueu os ombros.

- Esperem um pouco! – Daren se aproximou da arisca Jominosa. – Eu já vi desses insetos antes. Em minha cidade, nós usamos algumas dessas para construir túneis! – ele cobriu os olhos quando ela piscou. – Esses bichinhos comem terra e não comem pouca não. Provavelmente, foi ela que escavou tudo isso aqui.

Todos ficaram boquiabertos.

- No que isso pode nos ajudar? – Adrian perguntou.

- A comida predileta delas era a única coisa que as fazia seguir o caminho que queríamos – ele colocou o indicar entre os lábios, como se fosse fazer um “psiu”. – Areia, areia branca é o que elas mais gostam. Se tivéssemos um pouco, poderíamos atraí-las para onde quiséssemos.

- Onde diabos vamos arrumar areia! – Suruki disse meio irritado.

- Eu sei, eu sei – Upiro começou a saltitar. – Na cozinha havia umas latas cheias de areia – ele se conteve e voltou ao seu estado de humor quase mórbido. – Vou até lá buscar, não saiam daqui – ele riu envergonhado.

Ele não demorou, logo já estava de volta com os potes de areia. Os outros começavam a ficar impacientes.

- Pensamos que você tinha se perdido – Suruki debochou.

Upiro ignorou o comentário e entregou um pote a cada um.

- Vamos fazer um trilha fina e continua para que a Jominosa não desvie do caminho e nem fique cheia antes de chegarmos ao nosso objetivo – Daren recomendou.

Assim eles fizeram. Foi Adrian quem começou, fez um pequeno montinho de areia e esticou a trilha que a Jominosa devia seguir. O inseto logo sentiu o delicioso aroma da areia, posou sobre o montinho e começou a comê-lo. Depois de devorá-lo, passou para a trilha. Foi comendo, comendo e comendo. Daren substituiu Adrian, quando a areia de seu pote havia acabado, e continuou deixando a trilha para a Jominosa. A caverna lhes parecia cada vez mais longa e o chamado mais nítido e urgente. O vento também aumentava à medida que eles andavam. Eles seguiam sem problemas, os clarões da Jominosa eram mais do que suficientes para iluminar os corredores. Não havia nenhuma outra criatura lá, apenas pedra, terra e mais terra. O corredor tornava-se mais estreito e o chamado mais vivo e próximo. Depois de uma longa curva e de se tornar quase intransponível, devido ao seu tamanho, o corredor se transformou em uma grande galeria de dimensões assustadoras. De teto abobadado sustentado por vigas de pedra. Sobre o piso havia uma fina neblina muito fria, como se fosse feita de neve. Em uma das paredes havia uma grande porta de madeira fortificada com placas de ferro e de frente para ela, um pequeno altar.

- O que está havendo? – Daren gritou desesperado.

Upiro apertava os ouvidos. O chamado estava ensurdecedor, como uma voz constante e infinita que berrava, ecoava e repetia, antes de seu eco desaparecer.

- Pára! – Upiro suplicou, já estava chorando, tamanha era a dor.

Adrian e Suruki estavam de pé e olhavam assustados para os outros, não estavam ouvindo nada. Eles se entreolharam e voltaram-se para a porta. Não disseram nenhuma palavra, apenas seguiram até ela, deixando Upiro e Daren para trás. Um estrondo forte, como o urro de algum animal gigante, fez a porta tremer. Eles pararam. Suruki olhou para Adrian e este fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ficou de pé, com os braços cruzados, observando seu irmão se aproximar da porta. Suruki também tinha medo, mas era sua tarefa enfrentar o que quer que houvesse atrás daquela porta e, por isso, ele não se deixaria amedrontar. Quando estava a dois passos dela, o barulho voltou e, dessa vez, despedaçou as folhas de madeira da porta com uma explosão sem fogo, como se tivesse sido atingida por alguma coisa pelo lado de dentro. Os estilhaços voaram para toda parte com violência. Suruki cobriu o rosto para se proteger e Adrian se afastou. Uma fina fumaça esbranquiçada vazou pelo buraco na porta e cobriu parte da sala. Suruki estava coberto por ela até os joelhos e mantinha os olhos fixos no interior do aposento por detrás do buraco. Seu semblante era vazio, como se olhasse para um horizonte distante.

Um vulto apareceu diante dele, uma silhueta difusa no escuro. Estava de pé no meio da fumaça e parecia fazer parte dela, como se seu corpo não terminasse em seus membros, ele era maior, espiralava, cada fiapo de fumaça era parte dele. Era uma garotinha, frágil, como se sua vida estivesse por um fio. Sua pele e seus cabelos eram completamente brancos, apenas seus olhos possuíam alguma cor. Eram grandes, vermelhos e redondos. Ela não possuía mais do que sete anos e vestia um vestido que lhe cobria até os joelhos. Um silêncio acompanhou seus passos para fora de sua prisão.

- Não se mova – Adrian disse ao seu irmão com um sussurro, quase sem movimentar os lábios.

Suruki continuou imóvel, seus pés estavam colados no chão e suas mãos começavam a tremer, mesmo se quiser fugir, não poderia. A menina se aproximou com uma expressão indecifrável, tudo lhe parecia novo e brilhante.

O chamado cessou. A dor que mantinha Daren e Upiro no chão desapareceu com ele. Agora, havia apenas um desconforto e um zunido constante nos ouvidos.

- Fiquem quietos! – Adrian olhou para trás e gritou.

Eles obedeceram, mesmo sem entender. A garotinha passou por Suruki e foi na direção dos outros. Olhou para Adrian e em seguida fixou os olhos onde Daren e Upiro estavam. Com passos leves e sem qualquer pressa continuou, até ficar entre os dois. Sua presença transmitia um calor reconfortante a eles, como se não precisassem mais respirar, como se seus corações não precisassem mais bater. Parecia que a vida deles vinha dela. Eles se entreolharam e a abraçaram. O vermelho de seus olhos aumentou e os envolveu em uma bolha rubra de energia. Em segundos ela se desfez e a pequena garota não estava mais lá.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 09/06/2007
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