TRILHAS

Algo incomodava Augusto, era como se um berne daqueles que solevam os ruminantes, de tempo em tempo lhe ferroasse a memória, dizendo para ele que estava ali; insistentemente se manifestava, estando ali corroendo sua inteligência e percepção. Por onde andava, estava a praga manifesta mas jamais vista a lhe importunar. Não dava trégua para os seus neurônios e quanto mais tentava se desvencilhar do(a) miserável, mais se via pego.

- As armadilhas do medo e desespero são formas de prisões onde o prisioneiro, sabe que está sendo aniquilado, todavia...mantém-se encapsulado. Todos possuem e valorizam-me, contudo, em mesmo grau de intensidade que me veneram, alguns sofrem com a fobia de ser possuído por mim. – esse era o misterioso dilema que azucrinava a memória de Augusto.

Seu algoz sabia que aquele que vive liberto dentro si, desafiando o escuro e que não se limita ao perigo, dificilmente ficará a mercê do medo; verdades que o moleque pouco possuía. Também tinha plena ciência que contrário dele, pessoas reticentes são mais propensas e suscetíveis ao fracasso; o que também o deixava em completo êxtase; afinal, valorizava em demasia a liberdade dos ousados. Seu verdugo e algoz, além de sabido, perscrutava o conhecimento até dos intestinos da vítima.

Augusto por sua vez, ia convivendo com essa estúpida visão que o incomodava, sem no entanto, atinar a tomar medidas mais severas; contudo, no máximo alguns paliativos, naturalmente, sem maiores resultados, mesmo porque sentia-se vigiado vinte e quatro horas por dia.

- Isso mais me parece um radar ambulante. Misteriosa fiscalização eletrônica. Luz que não se apaga; pelo contrário, contínua. Quando penso que estou livre, lá estão eles brilhando dando indícios de que não estou sozinho. Essa coisa anda lado a lado comigo. Não diria de mãos dadas, tampouco, abraçado; na realidade pior do que isso, paulatinamente está piolhando a minha cabeça. E como coça! Está virando cocoete vicioso. Onde vou parar carregando esse fardo pesado da Paranoia Ambulante?

Tudo começou logo nos primeiros anos de vida, época que Augusto já se mostrava um garoto saído e tencionado às perguntas, curiosidades e a tagarelice de não deixar ninguém falando a sós. O mal o acompanha desde a primeira vez que presenciou uma noite perfeita: céu límpido como cristal, estrelas riscando o acaso e a lua em fase inicial. Tudo foi novidade celestial e para alimentar o que é hoje, disparou sabatinas e mais sabatinas para cima de sua mãe. Queria a todo custo saber por que o céu estava diferente de outros dias, totalmente irradiante com os convidados rutilantes; o que diferenciava aquela bela noite das demais noites, ás vezes taciturna; por que a lua, embora cativante e maravilhosa, mostrando um sorriso comprido até os cantos da boca, não aparecia completa para cumprimenta-lo. Gustavo deleitava-se em ser prestigiado e prestigiar:

- Mamãe, queria bater palmas, cantar os parabéns e já que a senhora não me responde, saber dela por que ela veio faltando um pedaço. Dizer que ela está um esplendor, mas queria saber de suas intimidades, coisa que a metade não sabe falar pelo inteiro. A metade deve saber da metade e nada sobre a outra metade. Metades não se completam.

O menino destravava a língua e enrolava as palavras nas frases, dando um nó até nos nós. Sua mãe sorria de sua inocência, porém aguçava sua curiosidade: “o que Gugu imagina que sejam as respostas para esse montão de perguntas”? E nessa fantasia das descobertas, foram dormir; ele imaginando que no outro dia teria novas invenções para desvendar e ela enaltecendo a doce ingenuidade, sublime virtude do filho.

A sábia Natureza fazendo prevalecer o contraste natural e permanente entre os opostos, tratou de enviar para ele um dia esquisito e carrancudo com nuvens movediças e céu ofuscado. Não tardou muito, a chuva deu sinal de vida e despencou sobre o telhado. Augusto pôs o rosto para fora da janela e sentiu os pingos molhando-lhe os ralos cabelos e resfriando suas faces coradas de vermelho. Mesmo com a advertência de que não saísse no terreiro, esgueirou-se pelas paredes do corredor, indo saciar seu apetite de experimentalista e a imposição de quem o acompanhava às furtivas. Quão foi a felicidade de Gugu em aventurar-se às escondidas. Sem pestanejar, espojava o corpo na lama; fazia montinhos em forma de iglus de barro, furando-os com o dedo fura-bolo para por janelas e porta; serelepe, levantava, chutava a água e os iglus para ter motivos de deitar e recomeçar tudo novamente. Divagando feito gente grande, pensava: “na vida tudo é recomeço, sempre”. Tudo acontecia naturalmente, até que sua mãe deu conta de sua falta no quarto, indo à procura do traquina.

- Gugu, cadê você! Deixe de brincadeira e venha aqui, já...Gugu! Para de fazer traquinagens e apareça.

Apesar dos gritos superar os ruídos da chuva, o menino ouvia, porém mantinha-se quieto. Estático. Como todo erro tende a ser descoberto, a mãe viu o filho rolando na lama. Gugu nem fez caso; como de outras vezes, esperava a reprimenda e dela tirar proveito. Daquela vez, o castigo era tomar banho; o que o mocinho travesso detestava: “Água em abundância e liberdade para vê-la escorrer pelo corpo é combinação perfeita; mas tomar banho de caneca na bacia, é para quem não conhece os poderes terapêuticos dela”.

- Já para a bacia. Leve junto a caneca.

- Por que não tomar banho na chuva, aposto que a senhora não sabe o quanto é gostoso esse sentir-se livre num montão de pingos que descem do céu em forma de cachoeira.

- Sem negociatas. Já disse: já para a bacia e leve a caneca. Estou indo.

Choramingando e culpando os deuses da sensatez por não protegê-lo, foi ele para a bacia que estava pelas metades de água. Chegou e “tchibumm”, mergulhou com tudo. Sua mãe chegou e foi logo ditando as ordens: “sem um pio. Depois desta, sem um pio”. Ordem sem significado para Gugu, que replicou: “Mamãe lindinha, diga-me porque a chuva cai brava igual a senhora e mansa como a nossa gatinha?” Impossível não sorrir com essa leveza de pergunta-afirmação. Perspicaz, prevendo que o mundo de sua mãe pairava sob o mundo recheado de inocência dele, tagarelou: “como se produz a chuva? Se ela vem de cima para baixo, como faz para subir mais alto que os gigantes que habitam o Himalaia e abaixo do ocaso? Como consegue romper esse torrão seco e duro? Que mistério há no brincar das nuvens uma atrás da outra e para onde elas vão, se não vão em lugar nenhum? Elas possuem passaporte para viajar tanto de um lugar para outro? Todo dia que olho, uma ou outra, estão enfurecendo ou abrilhantando o céu! Mamãe, estou falando com você...as paredes não possuem ouvido! Responda!

- Responder o quê, Gugu? Você me deixa doida, aturdida.

- O que é doida aturdida. – sua mãe silenciava. – chega...chega de perguntas!

Augusto avançou junto com os anos. Na adolescência, desgarrou-se da sua mãe e apegou-se aos livros. Para sua sorte, no primeiro deles, descobriu o fraseado de Monteiro Lobato que dizia que “Uma nação se constrói com homens e livros”. O princípio foi inspirador, mas como ao seu redor o mundo era feito sem livros e indolência, não se importou em seguir as trilhas dos livros, preferindo as novelas da mesmice que circulavam sobre o cotidiano de seu meio. Isto perdurou até um dia, quando revisitou uma biblioteca para folhear umas páginas aleatoriamente e para incitar e provocar o misticismo do novo e do belo, abriu o mais velho e ensebado livro que encontrou na prateleira e para sua surpresa, o prefácio era uma frase que nunca mais esquecera: “Da rebeldia nasce o gênio. Pessoas comuns pouco ou nada contribuem para o todo; sobretudo nascem humildes, autênticas e genuínas, para posteriormente, depois de décadas e décadas, definhar megalomaníacas, poderosas e cheias de soberbas. Morrem”! Sorte ou não, os livros passou a lhe acompanhar e ditar suas horas e dias definitivamente.

Atualmente, uma vez que o problema crônico não desgruda dele, sai pela rua obstruindo a passagem, pregando peça e perguntando para os transeuntes: “Pense: qual a relação entre o ato de pensar e o coração”?

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- Nenhuma.

- Nenhuma? Deixe os seus dados completos, com alguns centímetros a mais na sua altura, que vou comunicar a sua família.

- Comunicar o quê a minha família?

- Para encomendar o caixão: você acabou de morrer!...

Mesmo marmanjo adulto e barbado, adora pedir colo para a mãe, cofiar-lhe os cabelos brancos, contar histórias que ele nem sabe de onde vem e do que retratam. Junta as frases em sua tagarelice e entre um devaneio e outro, volta-se para sua mãe: “Mamãe, por que as mães não oferecem mais colo para os filhos quando esses envelhecem? Vou ficar como a senhora, com cabelinhos em linhos de algodão e cheio de rachinhas vincadas na cara? O que mais lhe agrada: eu como sou atualmente, ou como fui quando criança? Por que não brinco mais de casinha de iglu de barro na chuva e não como com colher de pau? Quando essas coisas chegam sem que agente peça, é por que as nuvens vão desmontar sobre nós? Quero dormir, leve-me para a cama; mas antes responda! Vai, por favor!”

- Guguzão amor de filho, você não toma jeito mesmo né, parece meninão! – e dormia sereno o sono dos recém-nascidos nos braços da mãe.

- Só falta querer saber por que não tenho mais leite para amamentar-te? Quais os sintomas da menopausa, do climatério. Vamos dormir na cama, vamos!

- Posso dormir com a senhora para lembrar os tempos de menino?

Cambaleando amparado pela mãe, bêbado pelo sono imperdoável daquilo que morrerá sem saber; porém usou em mais um dia, balbuciou: “A arte de pensar inebria com o júbilo divino o pensador”!

- O que foi Gugu? Que transe é este meu filho? Você e seus repentes. Saiba que sinto-me orgulhosa pelos sentimentos que você derrama de instante a instante sobre mim; são o reflexo de sua mãe.

- Ouvi o que você falou mamãe!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 21/04/2015
Reeditado em 25/04/2015
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