A Sereia

Vivi minha vida a ver o mar. Barcos sendo empurrados por seus donos, rasgando a areia, vencendo as ondas e invadindo o mar, um grito que expressava a satisfação da primeira vitoria da madrugada.

Eu via famílias brincando com as pequenas ondas espumadas que tocavam os pés das crianças, que felizes corriam para os braços dos pais. Eu vi casais se abraçarem enquanto sentiam – sim, eles sentiam – a beleza majestosa do mar que engolia o sol ao fim de mais um dia, junto de pequenas promessas que apenas os apaixonados fazem e que fatalmente nem sempre se cumprem.

Mas foi num dia de tempestade que algo impressionante me aconteceu. Uma chuva torrencial lavava a terra dos homens, os trovões riscavam o céu. Um flash! E por fim o som aterrador do poder divino da energia cruzando céu e terra. Da minha janela, pequena e embaçada, via aquela força da natureza tão bela, tão destrutiva. Parecia me chamar, parecia me desafiar, e eu fui.

Atravessei a casa, e a chuva envolveu-me. Senti o frio angustiante enquanto as roupas pouco a pouco, colavam ao meu corpo, esfriando-o. Mais um flash! Então o som estridente vindo do céu! Eu pude ver o contorno cinza e negro das nuvens – ainda que num céu escuro e nublado, se faziam perfeitamente esboçados, e iluminavam-se a cada raio, uma nuvem negra dentro de uma cinza, dentro de uma negra.

Uma onda quebra forte e impetuosa. Eu sinto sua força. Desejo entrar no mar. Mas escuto algo! Parece um gemer. “o que diabos...?” penso enquanto meus olhos percorrem a imensa praia tumultuada, eu vejo um pequeno barco, os olhos se espremem em meio a tanta água e vento, mas vejo! A embarcação que mais lembrava uma canoa velha estava virada, e de lá algo saia, um som estranho, harmonioso ainda que repleto de um medo. Na verdade não era o som que parecia pertencer a alguém que tivesse medo, mas o som causava-me essa estranha sensação que talvez fosse medo. Minha curiosidade fez-me aproximar, e o que estava lá se inquietou pela minha presença, como um bicho preso e arisco, movimentava-se rápido e quase desesperadamente lá dentro.

Um Flash! O rasgo luminoso! O som estrondoso!

A canoa virada gritou abafada. Coisa incomum como aquela nem mesmo uma tempestade poderia superar. Conjecturei inúmeras possibilidades: alguém ferido? Em pânico paralisante?Mas por quê? Um animal? E qual seria o animal que se refugiaria numa praia durante a euforia da natureza? Não sabia o que faria, fiquei ali, olhando aquele barco virado. Receei, quase vacilei, mas aproximei e bati três vezes à madeira, como quem bate a uma porta. Acho que no fundo eu esperava que a canoa virasse e alguém surgisse dizendo: “pois não senhor?”. Pensei em como aquilo era patético, mas algo pareceu notar-me, ouvi os movimentos rápido vindos de dentro. Aproximei o rosto de uma pequena fresta. Um olho! Assim como o meu um pequeno olho fitava-me do outro lado. Os dois assustaram-se.

Um Flash! O rasgo luminoso! O som estrondoso!

Senti algo. Tão incomum. Não tinha medo daquele olho negro no meio daquela tempestade negra, numa noite que só se iluminava por flashes. Como eu sabia que eram negros aqueles olhos? Só sei que senti o medo que atravessava aquela criatura e ajoelhe-me. Não sabia o que era, e nem ele a mim. Não sabia o que queria, ou se tinha voz de gente. Nem mesmo tive a intenção de trocar-lhe palavras. Ajoelhado ali, toquei a canoa e fiquei em silencio enquanto a chuva forte batia contra minhas costas. Não sei por que desejei fazer aquilo, apenas o fiz. Também não sei se aquilo acalmou quem lá em baixo estava, mas fiz por ele, pelo ser que se escondia atrás do escudo de madeira que era aquela pequena e velha canoa.

Aos poucos, o vento frio e cortante foi cessando, a gotas d’água que despencavam do céu diminuíam em ritmo, gradualmente, pareciam até ficarem mais gélidas. Os trovões se acovardavam, apenas como pequenos pontos luminosos, quase bruxuleantes. O mar continuava inquieto, mas não tão irritadiço, ondas altas porem estranhamente lentas se desenhavam no horizonte sem luz. Uma sensação de paz envolvia-me àquele momento.

Foi quando vi! Por debaixo da canoa saia o pequeno ser. Uma menina. Cabelos longos e negros, olhinhos assustados, com certo ar de desdém que talvez apenas as mais encantadas pudessem carregar. Não parecia medo aquele olhar, parecia outra coisa... Diferente de tudo que já tinha visto. Me contaminava aquele olhos, como quem olha uma obra de arte, ou um enigma, ou as duas coisas. Aqueles olhos não faziam com que eu olhasse para minha alma, mas enxergasse toda a beleza da incerteza, da inconstância do universo.

“Meninas não tem olhos assim...” pensei quieto, com meus lábios duros e trêmulos pedindo por um cigarro. Aquele olhar pareceu durar eras, e dentro da minha alma um mundo se criou, com a natureza inquietante como da tempestade de outrora. Então ela sorriu singela, doce, a menina sorriu, e eu pensei no sol, no céu azul de brigadeiro, na manifestação da vida, com toda sua potencia e beleza. Estranhamente meu coração bateu mais forte e a menina, moreninha, com seus cabelos longos e negros se virou com a indiferença das rainhas e para minha completa surpresa, ela entrou no mar noturno, e sumiu nas águas, não como o suicida que marcha em direção ao mar, mas entrou como a filha que volta ao lar, com naturalidade, com vontade!

E a menina que me encantou sumiu nas águas negras de uma noite de tempestade. Tenho pra mim que a menina era uma sereia, pelo menos gosto de pensar nisso. Na única sereia que vi, e na única sereia que tinha medo de trovoes e tempestades – pelo menos julgo eu, que apesar de não ser peixe, sou velho lobo do mar – e que de certo eu nunca mais verei, e se ver, não haverá novamente aquele olhar. Em verdade, acredito profundamente que poucos homens puderam ver uma sereia, e eu a vi, e ainda que ela possa surgir para muitos outros, eu sei que poucos verão a sereia como eu vi.