Um TOQUE de VERDADE em TERRA de MENTIROSOS

O caminheiro que virava à direita da rua principal seguia por uma rua encascalhada à época e após uns 200 metros encontrava uma ponte, daquelas de madeira, estilo pinguela e um tanto usual; pois era a ligação do bairro do Cafezeiro à parte baixa da cidade. Exceto esse trecho, o restante pra cima, mesmo que espaçadamente, estava relativamente habitado.

Tomando como referência a pinguela, do lado direito havia um pé enorme de jenipapo, fruta que até hoje a ciência ainda não descobriu para quê serve; porém, emoldurava o ambiente com um tronco roliço de grande diâmetro e sua ampla e frondosa copa. Vale dizer que embora linda de se apreciar, o seu sombreiro pouco valia, pois a árvore encontrava-se encravada na parte baixa do barranco, o qual abrigava a passagem de um córrego de águas calmas e conforme a ocasião, serenas e plácidas.

No outro lado, à esquerda do pé de jenipapo, a porteira dava boas vindas aos visitantes, afinal, ali residia o Delegado da cidade. Naquele tempo não existia concurso para tal cargo, que era escolhido a dedo e de acordo com a indicação e poder na cidade. Passado a porteira, a uns 150 metros, o pomposo e imponente casarão-sede mirava os baixios. Como ainda não havia a famigerada selfie, o melhor era usar os olhos captar a imagem e posteriormente, processá-la na memoria; afinal, a paisagem era realmente para se admirar. Tudo poético naquele lugar?...nem tanto; tenho minhas dúvidas. Que serão desvendadas logo-logo em breve; isto se tudo correr bem com o conto

Neste mesmo lado esquerdo, se havia uma imponência arquitetônica, havia também um casebre humilde e comezinho que divisava com o limite da fazenda naquele ponto. O riozinho corria suave e despreocupado pelo lado de baixo da cerca; portanto, pertencia a propriedade de Tião Lontra. Senhor de muitos anos na cacunda; porém forte e vigoroso e embora fosse bastante conhecido na cidade, mantinha-se sempre na dele. Poucas palavras com o publico em geral e quando falava, preferia os seus amigos de personalidade e pensamentos.

Aquele característico interiorano, que não fedia e nem cheirava para a sociedade local, imagine para o país, tocava a sua vida sem se preocupar-se com as dos outros. E assim viveu anos e anos e mesmo não se revelando verbalmente para ninguém, mostrava-se desta forma seu estilo de vida e personalidade próprios. Veio ao mundo solteiro e solteiro ficou por tempos indeterminados; penso que morreu morando juntos, ele com ele mesmo. Para o desprazer e contrariando os psicólogos, tais pessoas são excêntricas e em comunhão com o seu interior, encontram-se consigo e mais ninguém. Resolvem seus problemas, caso os tenha, sem intermediários e diretamente com Deus.

Jamais notaram ou falaram dele guerreando com o espelho, balança ou com ele mesmo. Com sua casa relativamente vazia, seu companheiro era um cão vira-lata e nada mais. Dividiam o território livres das elucubrações dos revolucionários e isento do mercenário dinheiro: comeu, bebeu, dormiu e pagou as contas, que viesse o dia seguinte. Assim deve ter sido até quando a morte o separou, ele dele mesmo e talvez, o cão.

Tião mostrava-se estrategista e através do experimentalismo do dia-a-dia conseguia a façanha de hierarquizar as coisas ao seu redor. Intuitivamente e observando os elementos da Natureza, criava suas artimanhas de vida; incluindo nestas até a questão de arquitetura. Sua casa distava uns 200 metros da rua e acima dela nos fundos, uma pequena, mas fechava mata nativa cobria o espaço restante do sítio; sobrando espaço aberto apenas no lado da casa; isto porque fora construída alguns metros acima do córrego.

O senhor cabeça de aeroporto de mosquitos, ( mesmo sendo das carecas que as mulheres gostam mais) como costumavam chamar os carecas, desmanchou um cubículo minúsculo que possuía próximo à mata e construiu um maior e mais amplo na parte baixa à casa e relativamente próximo à pinguela. Era comum fazerem casas, servindo de fossa em cima dos córregos: desabotoou o zíper, afrouxou o cinto ( a tradicional barrigueira) arriou as calças até as canelas, ficou de cócoras é só fazer o serviço e lançar a cloaca pelo buraco cloacal, no caso, em cima do riozinho; por sinal, muito amigo para suportar a merda dos humanos. (Nota-se aí que nada mudou de lá para cá.) Este foi o enorme erro, o grande pecado do senhor alcunhado de Lontra pelos seus inimigos, a molecada.

Imitando e induzido pelos mais velhos, a molecada descobriu que o Tião possuía os traços de uma lontra e aos poucos fez com que ele descobrisse que era ele o tal de lontra; o que era ouvir soar o apelido saia do sério no instante. Como se bastasse o apelido, nos horários de ida e volta da escola, tocaiando a entrada de Tião Lontra no casebre para a limpeza corpórea diária e refazer das impurezas do dia anterior, a molecada flechava o casebre de pedra.

Tião punha a cara para fora da porta, a molecada corria e escondia. Botava a cara pra dentro, pedra chovia no telhado. Soltando faíscas pelas ventas, podia ser até dentro da igreja que ele ia procurar saber quem proferiu a palavra e logicamente, tirar satisfação. Aquilo irritava-o a tal ponto que em certa ocasião, estando ele fazendo a operação “bucho vazio é sinal de tripas limpas”, com as calças até as canelas, ouviu alguém gritar e não pensando duas vezes sobre as consequências, meteu a cara para fora da porta e notou alguns arruaceiros.

Não deu outra: saiu em disparada com as calças não mão rua afora, num pega não pega dos diabos. Berrava: “Segura esse filho de puta, vou matar ele! Segura, pega, pega, segura pra mim. Moleque filho do diabo; vai importunar seu pai, filho da puta”. Por sorte, inocência de criança é protegida por Deus e saíam sempre todas ilesas; exceto Tião que tropeçou numa pedra, enfiou os pés nas barras da calça e amontoou no chão se machucando extensivamente o corpo. Cambaleante, levantou-se com escoriações por todo o corpo. A consternação da molecada foi geral. Comovidos e procurando o culpado, voltaram todas e cabisbaixo olhando o ocorrido; sabiam que ia sobrar uma boa surra para todos.

Para moralizar, o delegado chamou os pais, os filhos e Tião para uma mesa redonda. Este sem titubear relatou o que vinha acontecendo a tempos e o infeliz desfecho. Terminada a reunião, todos fizeram juramento que não iam mais mexer com Tião, inclusive não chamando-o pelo apelido de Lontra. Mas para não perder a oportunidade, o chicote estalou no lombo dos arruaceiros. No outro dia, na escola a reunião era para saber quem apanhou mais. Pelos números estatísticos verificados e ocorrências anteriores, fui eu a receber nota dez de meus pais. Fiquei marcado por um bom tempo e raivoso com Lontra, com o atentado do Diabo e o mundo.

O tempo passou e o suposto esquecimento também. Algumas coisas são interessantes, por exemplo, o mal pagador nunca se lembra do que deve; em compensação quem tem a receber nunca esquece. Pode não cobrar, mas quando adulto, as obras proporcionadas pelas más experiências do cotidiano ficam cravadas na memória.

Como experiência serve somente para os adultos, a molecada voltou aterrorizar o Lontra. Ficavam de campana e ao ver o ruído e ouvir o pum da merda esvaziando o bucho e as tripas, caindo n`água flechavam de pedra o casebre. Agora estavam velhacos na arte de aterrorizar; porém menos que a estratégia montada por Tião para pegar os arruaceiros.

Lontra combinou com Zé Doido, outro que sofria os maiores impropérios nas palavras da trupe e mais um comparsa. Esse último, no momento da molecada passar pela pinguela, saindo ou indo para escola, entrava no casebre e Lontra e Zé ficavam de tocaia na moita de capim meloso à espera dos desatentos e aprendizes na arte de respeitar os mais velhos; ou quem está quieto. Passa hoje, passa amanhã, passa depois e nada; até que certo dia, ao ver um Pum n`água a gurizada flechou pedras no casebre.

Por sua vez, os dois precipitaram para cima da molecada com as calças seguras pelo cinto e com o “bucho e as tripas limpas” e aí foi um Deus nos acuda. Portanto, livres para percorrer a cidade toda atrás dos vadios.

Zé doido corria muito; também puderas, sem ter o que fazer, o doidão vagava de 20 a 30 quilômetros por dia. Pela rua afora era uma gritaria infernal: “Pega Zé, pega Tião. Tá na sua mão. Pega Zé. Pega esse filho de puta”.

E o pega não pega foi ecoando pela cidade, sob olhares exaltados do cerca daqui e com o bafafá medonho do pega dali, a temperatura foi às alturas. Salvava-me pelo gongo e com os passos curtos de serelepe; afinal, Zé tinha os passos largos e a destreza de leoa em disparada atrás da caça.

Por falta de sorte, a rua principal era um corredor fechado por quilômetros e mais quilômetros que dava no centro da cidade. Não havia como escapar pelas laterais.

- Pega Zé, tá na sua mão. Pega Tião; não deixe escapar. Hoje acabo com a raça desse filho sem mãe! Era eu que estava quase nas garras do Zé; livrando-me pelo quase. Se me pegassem só pena que iria voar. Pensava comigo: “vai pegar o corisco, Zé; eu não. E perna para quê ti quero.

- Pega, pega Tião. Segura, pega para nós. Pega gente, pega! Segura Zé, eles chamam você de doido. Tem um deles que é pior, fala que você é doidão. Isto enfurecia ainda mais o Zé e vez em quando, sentia o vendo das mãos dele roçando as minhas costas.

E nesse Deus nos acuda, a molecada correu para dentro da escola, trancando-se na sala da Diretora. Após muito falatório do lado de fora de “mato esse filho de puta; solta eles que vão ver”, a Diretora apaziguou os ânimos e para compensar do trabalho extra, assinado por Zé Doido e Tião Lontra, a escola expulsou a molecada por quinze dias. Até hoje não sei o que foi pior: correr dos dois ou ser expulso. A lição foi bem explanada com umas boas e sonoras chicotadas no lombo.

A poeira abaixou, cada moleque travesso sossegou o facho e a vida seguia o curso normal de ir e voltar da escola, contribuir com os afazeres de casa, horário rígido para estudar e se sobrasse o escasso tempo, “ralar uma bolinha” como diziam a gurizada; no entanto, era consenso geral saber como Tião Lontra tramou aquele espetáculo teatral com apenas três protagonistas e um monte figurantes, peça que ficou conhecida nos arrebaldes como “A armadilha de pegar inocentes” criada pelo mentor Lontra.

Todo garboso e contando vitória, em depoimento aos curiosos, dizia que passou meses e meses pesquisando, arquitetando e fazendo as experiências de como realizar o feito, sem no entanto, se expor ao ridículo como tinha acontecido da vez anterior. Relatava que combinou com Zé doido para juntamente com ele, ficar de tocaia numa moita de meloso, criteriosamente escolhida e o terceiro, ficar no casebre com algumas o pedras e assim que recebe o sinal que a molecada disparasse a primeira pedra, botasse a cabeça para fora da porta e nesse momento, quem iria jogar era ele, o Tião.

Para não dar com os burros n`água fizeram um treinamento ostensivo e partiram para pôr prática o arquitetado. Segundo o depoente, houve duas tentativas fracassadas; procuraram analisar e reparar onde estavam cometendo os erros e na terceira tentativa, não deu outra: “foi batata! Caíram que nem patinho na lagoa”; dizia Tião.

A comoção das gargalhadas em favor de Tião Lontra era contagiante e geral pela cidade. Só faltaram, pipoca, refrigerante e um foguetório para comemorar. Por outro lado, a molecada dava volta e mais voltas andando por outros caminhos para não ser tentados e ser alvo de chacota.

- Chegava em casa todos os dias com as pernas doces de tanto andar para cumprir os horários e fugir do alvoroço que se estabelecera na cidade. Era burburinho por todos os cantos da cidade, dando Tião Lontra como o legítimo e único vencedor da batalha “Já! Atire pedras sobre o telhado do casebre cloacal de Tião Lontra”.

Ainda bem que naquela época não havia curso de Direito e sim de Deveres; senão, processaria a molecada por discriminação, abuso de maior; bulling; exposição ao ridículo e coisas mais. Como pagar fiança se comíamos menos no almoço para sobrar para o jantar? Contudo, nenhum dos arruaceiros passou daquilo, que era brincar de ser criança e depois morrer rolando no chão de tanto dar risadas; mesmo sendo sob o chicote da moralização e respeito ao próximo.

Tenho profundo respeito pela seriedade e o senso de humildade em reconhecer o erro, e lógico, assumi-lo. Errar é humano e omissão é covardia. Onde tais verdades estão escritas na Constituição Brasileira? Caso esteja em alguma página, conte-me outra; assim como descaradamente e ludicamente relatei uma das minhas verdades. Por que ter vergonha dos fatos, (mesmo que causadores de pequenos deslizes conforme à época) honestos?

Estamos presenciando a época da inversão de valores em que uma palavra moralizadora e disciplinadora é tida como discriminatória e motivo de processo e assim, nos tornamos reféns de nos mesmos e incapazes de realçar o cotidiano com um toque de verdade em Terra de mentirosos. Nem ser criança mais é possível nesta famigerada e inglória evolução atual. Olhou, pensou e mesmo não revelando, o processo comeu. Temos direito a tudo, menos de sermos nós mesmos; como foi o autêntico Tião Lontra.

PS.: Caso o leitor esteja moribundo, contando os segundos para a partida desta para uma melhor, vá com Deus; e por favor não comente nada com Tião Lontra e Zé doido, nem os chame pelos apelidos; senão, rodamos os dois num processo judicial. Como sabeis, é uma lei para julgar cada cidadão Brasileiro e um Doutor para interpretar e condenar em nome do escrito em cada lei. Portanto, silêncio; bico calado! Posso ser condenado 100 anos após cometido o pequeno delito.