Delícia de Monstro

 

A batalha era acirrada. Lutava para manter os olhos abertos, alertas, não sucumbir ao sono era desafio. Já tinha reparado que só manter os olhos abertos não garantia nada, pois podia dormir, assim mesmo. Coisa perigosa deveria ser evitada a todo custo. Aquele mundo desconhecido em que entrava ao dormir era assustador e variável. Às vezes era o nada. Como se evaporasse e, junto com ele, todos e tudo. Seus pais desapareciam, a casa, o barulho do mar, os latidos dos cachorros...

Era o vácuo do inexistente. Mistério insondável e aterrorizante.

No entanto, pela manhã, ao acordar, pronto; o sol brilhava os ruídos barulhavam e, a pergunta persistia: “Onde teriam estado durante o tempo que dormira?”

Algumas vezes o garoto sonhava. Pelo menos pensava que eram sonhos, aquelas viagens fantásticas em que encontrava pessoas desconhecidas, ia á praia caçar tubarões e, olhe que naquela praia, nunca se viu nenhum tubarão!  Havia um sonho especial. Sempre o mesmo, com poucas variações. Ele via a si mesmo, caminhando pela praia em direção ao mar. Dava um grande mergulho, na primeira onda espumosa e ficava cara a cara com dois olhos imensos pretos e uma porção de pernas bem compridas. Era horrendo! Tentava gritar, mas debaixo d’água se afogava. Acordava aos berros.

 

Laurecy, a empregada, corria e acendia a luz, com cara de poucos amigos, mas mesmo assim, com os cabelos arrepiados e a cara estremunhada de sono, era uma visão reconfortante. Ela dizia: “deixa de dengo menino, isso é falta de couro, se trabalhasse todo dia como eu, quando tinha sua idade, dormia feito anjo, sem sonhar nem nada.”

Será? A Laurecy acertava muitas coisas. Teve aquele dia em que ela avisou: “ cuidado com essa lagarta que pode queimar,” ele não acreditou,  como um bichinho assim peludinho e verde poderia ter fogo dentro? Levou a mão e fez um carinho de leve. Sentiu um ardor forte subir pela palma da mão até o cotovelo. Demorou a sarar aquela queimadura e a malvada da Laurecy, ainda disse: “bem feito, seu desobediente!”

O problema é que ele não queria nem sonhar e nem dormir, portanto, de nada adiantaria ele trabalhar bastante. Resolveu fugir do quarto naquela noite e se esconder na biblioteca do pai, ficaria ali quietinho e ninguém daria por sua falta.

Pensou e fez.

Primeiro ficou muito tempo na cama de olhos bem abertos, quase uma vida inteira. Quando o silêncio baixou pela casa, desceu da cama pé- ante- pé e dirigiu-se para a escada. Passou pelo quarto dos pais e pela porta entre aberta espiou lá dentro. Quase deu um grito de surpresa. Seus pais dormiam, tranqüilamente. As cabeças repousavam nos travesseiros em expressão de puro deleite.

 

Resolveu conferir o quarto da Laurecy, ao lado da cozinha. No trajeto ouviu o Barão latir. Deu um pulo. Como, então cachorro latia à noite? Abriu a porta do quarto da empregada e lá estava ela roncando de leve, deitada de barriga para cima e bíblia na mão, janela aberta, por onde entrava a brisa do mar e o barulho das ondas. Em pleno escuro fez-se a luz, entendeu tudo. Levou a mão à boca para abafar a risada, símbolo da libertação. Assim mesmo foi até a biblioteca, afinal com tantas emoções perdera o sono. Subiu em uma cadeira e pegou o livrão, lá do alto, que seu pai gostava tanto.  Começou a folheá-lo. “Quantos peixes esquisitos; com cabeça de martelo, dentes de serrote, peixe agulha... de repente, lá estava ele: o monstro de seus sonhos, olhos e pernas, nada mais. Abriu a boca, espantado e soletrou: P O L V O - molusco com oito braços e ventosas.”

Seu espanto não cabia na sala, esparramou-se pelo quintal até a beira da praia. Então o monstruoso ser “olhos-pernas” era um tipo de peixe? Nunca teve medo de peixe e, além do mais, o polvo à Provençal que sua avó fazia era uma delícia! Mas, vinha picadinho como poderia saber que aquilo era um monstro? Bocejou, longamente, se espreguiçou e, devagar, caminhou para seu quarto de dormir. Afinal, aquele tinha sido um dia duro e ninguém é de ferro.

 

                                  Célia Regina Marinangelo

                                           2/2/2006