A casa da gente

Ele estava sentado na pequena mesa de quatro lugares, mas que só tinha três velhas cadeiras de metal enferrujado, e uma delas sem estofado. Sua mãe, de costas, desligava a chama da única trempe que funcionava naquele fogão velho e igualmente cheio de ferrugem. O almoço estava pronto. Ela jogou a comida em um prato de plástico, tinha se esquecido de como ser delicada. Colocou-o na mesa, tacando-lhe os talheres com a mesma boa vontade demonstrada para as outras atividades. Ele continuou parado, imóvel, olhando para a comida. Era pouca, e era feia, mal feita. Parecia uma mistura de tudo o que havia sobrado na geladeira e cheirava a carne podre. O gosto não devia estar melhor.

— O que você tá olhando? — a pergunta de sua mãe era tão cortante quanto as facas que ela manuseava.

— Nada. É que é estranho, só isso...

— Estranho o que, Chris? A comida? Não é digna o suficiente pra você, principezinho? — com os anos sua amargura só havia piorado.

— É estranho estar aqui. — o olhar dele não era de raiva, era mais bem um olhar triste e perdido, assim como ele por inteiro.

— Alguns anos fora e volta com o rei na barriga. Por que você tá aqui agora, heim? Não tem o que você fazer aqui, é inútil! Deveria ter aparecido antes.

“Não há lugar como a casa da gente.” Chris ouviu essa frase bonitinha há muito tempo. Talvez em um livro de adolescentes recheado de dramas bobos que só fazem sentido aos dezesseis anos, ou em algum discurso barato de alguém que, depois de muito tempo fora, regressava cheio de saudades para os braços dos familiares. Mas pra ele essa era uma sentença curiosa, no mínimo curiosa.

Chris não era tonto, ele entendia perfeitamente bem que aquela frase representava uma verdade absoluta pra grande parte das pessoas que conhecia. E achava isso legal, afinal, ele também queria sentir-se assim. Seu problema era que junto a seus pais não tinha conseguido nunca dar sentido à esse dizer tão comum. Seu pai era um homem de meia idade entregue ao vício da bebida. Ele nunca esteve presente. Chris se lembrava de falas não muito agradáveis que ele lhe dirigiu diretamente, ou pelas costas, durante toda a vida. “Pare de gritar como uma menininha!” “Seu irmão não age assim!” “O meu filho mais distante é ele.” Era uma relação complicada.

Sua mãe tinha tudo pra ser uma mulher feliz, mas se deixou amargar depois de uma sucessão de tragédias: o marido constantemente bêbado e violento, a pobreza refletida na mesa vazia, a perda do menino mais novo que ela tanto amava. Mais que a Chris, isso lhe parecia óbvio. Ele tinha apenas oito anos, não merecia aquele final horrível, ninguém merecia aquilo.

— Não me culpe, por favor. — ele a olhava com olhos de piedade, mesmo depois de tantos anos tendo seu pedido ignorado.

— Você sabe que tem culpa, Chris! Tinha que ter voltado justo hoje!? — agora a voz de sua mãe era de dor e indignação

— Nem me lembrava que era hoje! Me lembrei quando cheguei e te vi chorando!

— Claro que não se lembrou, você nunca deu a mínima pra isso, nem pra nada, nem pra ninguém!

— Não pense isso, é mentira. — seus olhos lacrimejavam.

— Eu não vou te querer aqui de novo. Melhor você caçar seu rumo o quanto antes.

— Vou ficar por pouco tempo. Tô tentando emprego e... — sua mãe gargalhou fortemente nesse momento, assustando-o e deixando-o confuso.

— Lave seu prato quando terminar. — ela saiu e o deixou sozinho na cozinha pequena e escura.

Chris não conseguia comer depois daquela conversa, se é que assim podia ser chamado o diálogo cortante entre sua mãe e ele. Com seu pai nem isso existia, e até hoje não conseguia concluir se esse eterno silêncio era bom ou ruim. Sem ninguém com quem falar e sem fome, começou a observar atentamente o lugar onde estava. Anos depois, ele estava de volta. Tinha dado sorte, ou conseguido por merecimento a bolsa que o manteve na faculdade por esses anos todos. Depois disso, as coisas entre ele e sua família apenas deixaram de piorar, principalmente porque não havia mais aquela convivência diária, obrigatória e exaustiva. Nesse meio tempo, reapareceu vez ou outra em sua casa, só pra que não dissessem que não se importava, ainda que isso sempre fosse dito. Ele não era querido naquele lugar, e a decisão de voltar foi agonizante. A incompreensão continuava ali, como uma nuvem pesada que custa a derramar toda a água que tem dentro dela e Chris já não tinha tanta certeza se conseguiriam esvaziá-la algum dia, já que faltava disposição de ambos lados.

A única janela da cozinha lhe parecia ainda menor, e se via nela a poeira acumulada a quilômetros de distância. O ar parecia não circular e o sol passava longe. Além do fogão quase inútil, a geladeira velha fazia um barulho infernal. Levantou-se a abriu-a. Vazia. Apenas uma garrafa d’água e um pote de sorvete que continha sabe-se lá o que ocupavam todo aquele espaço. Fechou-a. As paredes, antes brancas, estavam mofadas nos cantos inferiores e amareladas ao redor do fogão. Olhando mais pra cima, viu algumas teias de aranha se formarem nas quinas, e no teto, cascas de tinta caírem em grandes pedaços em cima da pia e da louça porcamente guardada. Sentiu nojo da comida servida. Jogou-a no lixo, limpou o prato como ela lhe ordenara e foi até seu quarto.

Tinha dúvidas se, depois daquele tempo todo, ainda podia ser chamado de seu o lugar onde dormira até os vinte anos, quando saiu de casa para estudar. De todas as formas, era o ambiente menos sujo e escuro da casa, ainda que precisasse de vários retoques. Abriu a janela e não sentiu o vento entrar. Era estranho, mas as coisas boas da natureza pareciam querem passar longe daquela velha casa. Deslocado e sentindo-se incompreendido, permaneceu no seu quarto por incontáveis horas. O silêncio era aterrador. Seu pai dormia depois de mais uma noitada e sua mãe andava pelos pequenos e apertados cômodos como uma zumbi em busca de qualquer motivo que pudesse lhe dar um sopro de vida. Ele lhe tinha pena, apesar de tudo. Era ela quem trabalhava e conseguia manter seu estômago e o do marido com o mínimo necessário para a sobrevivência. E agora tinha uma boca a mais, e por isso Chris tinha a certeza de que precisava ou conseguir um bom trabalho para ajudá-la, ou sair de lá. E a segunda opção lhe parecia muito mais viável. Para todos eles. Abriu a porta do velho armário e ela caiu em cima do seu pé. Estava comida pelos cupins. Resolveu deixar suas roupas dentro das malas e se deitou um pouco na cama desconfortável, dormindo rapidamente. Dormiu a tarde toda, afinal, não havia o que fazer naquela casa mórbida. E pensar que um dia, anos atrás, fora feliz naquele mesmo lugar.

Ao acordar, lembrou-se de que precisava checar seus e-mails e ver se havia obtido ao menos uma resposta positiva de alguma das empresas que tinha recebido seu currículo. Sair de lá foi como respirar ar fresco, respirar vida. Fora de casa o céu estava limpo, o sol ameno e as pessoas caminhavam tranquilamente, como em toda cidade pequena. Reconheceu rostos na rua, mas preferiu ignorá-los. Não por soberba, mas por tristeza. Sabia que se parasse para falar com qualquer uma daquelas pessoas, elas mencionariam a degradação de seus pais. Não desejava permanecer novamente em sua casa, não possuía forças suficientes para arrumar toda a bagunça há tanto instaurada, mas isso não significava que os odiava. Chris apenas reconhecia seus limites e percebia que o final daquela relação já estava decretado. Nada a fazer.

E nenhuma resposta. Seu e-mail não tinha mensagens novas, o que lhe entristeceu um pouco mais. Voltou a sua casa a passos lentos e cabeça baixa. “Minha casa.” Sempre havia sido engraçado dizer aquilo. Não era sua. Nunca seria. Quando entrou na sala de casa, ela parecia mais escura que o normal. Mais escura que minutos antes, ao sair pela rua. Ainda que a janela estivesse aberta e que o sol iluminasse toda a cidade afora, a casa permanecia escura. Os sofás velhos e rasgados tinham manchas que cheiravam a vômito. Ele já sabia o que havia passado ali inúmeras vezes. A televisão mal funcionava e estava em cima de uma mesinha velha de madeira carcomida. Sua mãe, há pouco tempo, tinha vendido alguns móveis para arrecadar um dinheiro extra e pagar contas atrasadas, ficara sabendo. O tapete no chão acumulava poeira, o que o fez espirrar compulsivamente. Assim como a parede da cozinha, a da sala estava descascando, ou melhor, rachando. As rachaduras eram grandes e profundas, pequenos pedaços de tijolos caíam do teto também apodrecido. A casa parecia desabar aos poucos.

— Onde esteve? — sua mãe apareceu do nada naquele ambiente escuro. Vestia uma saia jeans velha e uma blusa branca surrada. Nos pés, um chinelo de borracha desgastado.

— Há quanto tempo a senhora não limpa essa casa?

— Não sei, talvez uns dois ou três meses. Onde esteve?

— Tem muito mais que isso, mãe. Tá tudo apodrecendo aqui, as coisas caindo aos pedaços, a casa caindo aos pedaços!

— E só agora você percebeu isso, Chris!?

— Você precisa fazer alguma coisa, sair daqui, ir pra outro lugar!

— Que outro lugar? Não existe outro lugar pra mim e pro seu pai. Ou pra você...

— Eu não tô falando dele! Ele não se importa, nunca se importou! Deixa ele aqui!

— Ele nunca se importou, assim como você, Chris. Olha só o que você tá dizendo...

— Eu me importo sim!

— Você é igual a ele, por isso nem se falam. Onde você esteve, Chris? Procurando emprego? Não se conformou até agora com a verdade? Esse é o fim, meu querido. — as palavras de sua mãe lhe soavam estranhas, ele não conseguia entendê-la.

Então, pela primeira vez em tanto tempo, ele a observou. Sua mãe estava enrugada, com a pele seca e murcha cobrindo o corpo cadavérico que antes fora tão bonito; seus olhos eram profundos, com olheiras grandes e sem vida; os dentes, podres, precisavam de reparos urgentes; o cabelo era ralo, sem brilho e manchas de diferentes cores, verdes, negras e brancas, se espalhavam pelo corpo. Pareciam manchas de mofo. Dela caíam pequenos pedaços, e ele não sabia dizer se eram de sujeira, de pele, de carne. Ela se desintegrava, parecia um cadáver.

Teve vontade de vomitar, e foi correndo ao banheiro. Imundo. A descarga não funcionava bem, o chuveiro e a pia não funcionavam bem. Parte do azulejo estava destruída e a outra parte, suja. O cheiro que emanava daquele lugar aumentou sua ânsia de vômito. Entretanto, sem comida no estômago, pôs pra fora sua bílis. Agora não sabia como limpá-la, havia somente meio rolo de papel higiênico ali. Decidiu deixar como estava e chorou. Chorou de desespero por ter voltado, pelo horror que a situação lhe causava, de nojo e de medo, principalmente de medo. Se sentia em um conto de terror, queria que aquilo fosse ficção, um pesadelo longo, mas era sua realidade.

Foi até o quarto de sua mãe para ver se seu pai se encontrava naquela mesma situação. Ele tinha se levantado há pouco tempo e estava sentado na beirada da cama. Seu estado de decomposição era mais avançado, ele fedia muito. O cheiro podre saía de todo seu corpo e se misturava com o fedor de álcool de sua boca e da pequena garrafa quase vazia que ele carregava e bebia sofridamente. Mais magro, mais enrugado e mais manchado que a esposa, se decompunha mais rapidamente e não conseguia falar. Emitia apenas um grunhido estranho e doloroso, como se quisesse avisar ao filho de alguma coisa.

Chris olhou aquela cena assustado e percebeu que o quarto de seus pais também tinha profundas rachaduras que aumentavam de tamanho e profundidade velozmente. O barulho de cimento rachado o assustava. O teto também se desfazia, e uma parte dele caiu, quebrando-se em mil pedaços. Chris se assustou, mas seu pai ficou imóvel, na mesma posição, apenas olhando para o lado e fechando os olhos. Então, seu filho tentou tirá-lo de lá, mas foi em vão. Ele não queria sair, não tinha forças e nem motivos para fazê-lo, estava tudo acabado.

— Não seja tolo, não tem volta. — a voz de sua mãe soou grave atrás dele. —Há muito tempo não tem volta. — um pedaço da parede tombou.

— Me ajuda, me ajuda...— Chris queria tirá-los dali, mas não foi atendido.

— Você não entende nada, garoto. Se acha muito esperto mas não passa de um menino arrogante. Eu fico com ele, como fiquei a minha vida toda, coisa que você não fez.

— Por que isso tá acontecendo? O que tá acontecendo?

— Você se distanciou demais pra perceber qualquer coisa nesses anos todos. E agora está de volta, inutilmente. Tanta dor, tanto vício, tanto ódio. Isso tudo acaba com a gente, Chris. A gente apodrece por dentro, aos poucos apodrece por fora. O ambiente apodrece, por fim. É tanta falta de amor que o corpo não aguenta.

— Eu realmente me importo...

— Cala essa boca. — o corpo do pai estava caído nos braços de Chris, as pontas dos dedos penduradas por um fiapo de carne.

— Eu não tenho culpa de nada disso, aquilo foi um acidente!

— Mentiroso! — ela gritou.

— Eu juro...

— Mentiroso! Vai embora daqui! — ela gritou mais alto, e a falta de ar que veio em seguida lhe fez tossir. Com o impulso da tosse, perdeu alguns pedaços do corpo.

Ele marchou em direção ao seu quarto, correndo para agarrar suas coisas que estavam ali. Ao entrar, percebeu que as paredes também tinham rachaduras, mas em menor quantidade. Mesmo assim tudo ia desmoronar em pouco tempo. Pegou suas bolsas e antes de sair em direção à sala, ouviu um barulho forte que vinha do quarto de seus pais. Acercou-se. Outro pedaço no chão, ele deitado no colo dela, os dois olhares sem vida, os dois esperando a morte que dava as caras lentamente. Ou que já havia chegado, não sabia ao certo. Ele os olhou pela última vez e ela lhe fez um sinal para que saísse. Então, Chris saiu.

Foi até a cozinha, e viu o teto caído sobre a pequena mesa redonda. Na sala, a situação era pior, pois os sulcos nas paredes eram mais profundos e tudo se desfazia mais rapidamente. Já não havia sofá e nem televisão, ambos eclipsados por grandes pedaços de concreto desabado. O telhado se decompunha e chovia pedaços de cimento e de telha. Alcançar a porta de saída ileso foi difícil, porém ele conseguiu. Ao chegar do lado de fora, sentiu o vento bater em sua cara, agachou-se e chorou um pouco mais. Dessa vez de alívio. Não queria morrer ali, naquele lugar, daquele jeito sombrio e bizarro. Sentiu-se insensível por pensar assim, mas era seu verdadeiro sentimento. Observando melhor a casa, a viu rodeada por uma sombra negra, uma sombra que não cobria a vizinhança, nem a praça que havia em frente, nem nada mais. Apenas sua casa. Seria coisa de sua cabeça? Seria uma fantasia o ruir de sua família, o ruir de seu antigo lar?

As pessoas caminhavam devagar, como em toda cidade pequena. Crianças brincavam tranquilamente de bola, de pega-pega ou de esconde-esconde, enquanto senhores e senhoras se sentavam nos bancos da pracinha e observavam sem pressa o vai e vem pacífico de homens e mulheres. O céu estava azul e o dia, ameno. O ar balançava as folhas das árvores, o chafariz do centro refrescava os habitantes que passavam propositalmente rente a ele e os pássaros cantavam. A casa desabou. A cidade parou. A essa hora, Chris já se havia afastado o suficiente para não ser ferido ou sentir-se sufocado pela fumaça gerada pelo desabamento. Uma última lágrima escorreu pelo seu olho. Ele esperava que aquelas pessoas ali presentes viessem falar com ele, afinal, o viram sair daquele lugar em ruínas minutos antes. Afinal, precisava de um pouco de apoio. Entretanto, ninguém se aproximou. As pessoas passavam ao seu lado, inebriadas pela velha casa em ruínas, e faziam um círculo no lugar da tragédia. Aproximou-se pra ver o que comentavam, pra ver se lhe diriam ou lhe perguntariam algo. Mas era como se ele não existisse.

— Já não era sem tempo dessa casa desabar. — escutou um senhorzinho dizendo. — Há tempos estava em ruínas.

— Mais que isso, abandonada. Há alguns anos ninguém vivia aqui. — respondeu uma mulher de meia idade que caminhava com as compras na mão.

— Alguma coisa sombria tinha nesse lugar, vocês não acham? — perguntou uma terceira pessoa.

— Muita dor. Depois que um dos filhos morreu atacado por um cachorro, os pais culparam o outro garoto que estava junto e fugiu de medo, sem dar ajuda. O pai começou a beber e a mãe se tornou uma pessoa vazia, sem vida. — disse com serenidade o senhor.

— E o marido se suicidou depois de agredir a mulher até a morte. Tem uns dois anos isso. — completou a dona de casa que levava as compras.

— E o outro filho? — perguntou uma mulher mais nova.

— Saiu de casa para estudar, mas também morreu. Isso há menos de quinze dias. Era distante dos pais, quase não aparecia por aqui. Parece que sofreu um acidente na estrada. — falou o senhorzinho.

— Terrível. — concluiu a mulher mais nova.

— Muita dor. — refletiu a mulher com as compras.

Eulálio Marques
Enviado por Eulálio Marques em 08/11/2015
Reeditado em 09/11/2015
Código do texto: T5442102
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.