A Libertação dos Burros

Narra uma lenda ancestral, contada entre cochichos e segredos à roda da fogueira, as gargantas soltas pela jeropiga a aquecer o rigor das neves nas noites das janeiras que, desde que a terra se foi adoçando e perdendo o aspecto agreste e selvagem herdado da natividade crepuscular, ao mesmo tempo que parte da gleba se amaciava, cedendo ao rendilhado perfurante e persistente das raízes, (uma vez mais que), no venturoso principado das cenouras, todos os asnos eram servos e eram escravos.

Uns menos servis, outros mais escravos, alguns até com cargos de responsabilidade hierárquica na escravatura da burrice, servindo de elo de comunicação e obediência entre as apiáceas de ramada farta e os quadrúpedes de orelhas grandes, mas todos, ao fim e ao cabo, servos de suas altezas: as cenoiras.

O estratagema das ditas era simples: para serem grandes, tenrinhas, suculentas e crescerem apetitosas para as mandíbulas gulosas dos asnos, necessitavam de atenções especiais, tanto no estrume, tarefa esta fácil para os burros, como na lavra dos lameiros e até mesmo na rega. Conseguiam desta forma vencer a reconhecida característica dos burros e dobrar a sua génese teimosa, conhecedoras da incontida gulodice e paixão desmedida por elas, acaso eles quisessem entalar entre as beiças, grandes e rosadas cenouras de farta e viçosa ramada.

E se umas se faziam entendidas os outros deixavam-se levar, sem sequer pensar, os jericos têm a virtude de pensar com a barriga e não com a cabeça, que se estavam a deixar cair na esparrela.

Até que um dia, há sempre um glorioso dia, um asno mais asno do que os outros, ergueu o cachaço aos céus e zurrou tão alto e lancinantemente que todos os lameiros ficaram em sobressalto à escuta:

— Rai’s partam as cenouras! — Desabafou o burro contestatário, julgando-se o arauto e o mandatário de todos os outros burros — Estamos manietados ao jugo truculento das umbelíferas. Temos que nos libertar do fascínio que elas exercem sobre nós! —

Se melhor o zurrou melhor fez finca-pé da rebeldia, exigindo que toda a espécie o seguisse na contestação.

…E encarcerados na sua teimosia, um após o outro os asnos foram definhando, acabando por morrer de fraqueza, caindo aos pés das ramadas trocistas das cenouras, que pelo seu lado se mantinham saudáveis, rosadas e verdejantes, como sempre o haviam estado.

Moisés Salgado