O Melhor do Universo

Ela entrou na sala e o sistema de videoconferência já estava configurado para abrir a janela de conversa dele, embora ela insista em dizer que é mero hábito. Nem bem ela senta e muda seu status para "disponível", vê uma bolinha verde aparecer ao lado do nome dele. Não que eles tenham combinado alguma coisa. Sempre tiveram bom timing, os dois, desde que não tentem combinar nada.

- Boa noite, querida. - ele diz, e sua voz parece um pouco metálica do outro lado da tela. - Como foi o seu dia?

- Olá! - ela devolve com um sorriso levemente ofuscado pelos flocos de gelo que pareciam flutuar ao seu redor - Foi bastante corrido, mas foi bom também. Contive as revoluções que se instalaram nos Setores B e C do Universo 45, derrotei os demônios-púrpura que assolavam o Universo 203 e fiz os Universos rebeldes 81 e 74 jurarem lealdade ao Véu. - uma pitada de orgulho percorre seu rosto alvo e ossudo, e a nota de desafio é evidente em seu olhar quando acrescenta - E você? Como vão as coisas agora que comanda a Central de Inteligência do país mais poderoso da Terra?

Ele não vacila nem por um momento, encarando os profundos olhos azuis daquela que governa o Véu dos Universos, a dimensão etérea que une todos os Universos existentes. Pelo contrário, seus lábios se contraem num leve (talvez não tão leve assim) sorriso sarcástico quando responde:

- Bastante estressante. Você sabe, tenho muitos inimigos aqui, pessoas que não confiam no meu trabalho, que se fingem de aliados, mas na verdade não veem a hora de encontrar uma forma de me derrubar. - ele faz uma breve pausa, e o momento de suspense trai o cansaço em seus olhos verdes-amendoados. No entanto, logo recupera a pose. - Mas estou sobrevivendo. Hoje impedi duas tentativas de invasão à Capital do país, prendi o líder da facção terrorista do Fimdomundistão e assinei o novo acordo de fronteiras marítimas com o rei de Atlântida. - seu sorriso sarcástico é substituído por uma risada imponente - Mais um dia comum na Central, na verdade.

Por um momento, ela desiste de dar uma resposta e afasta o rosto da tela, apertando os punhos. É tão típico dele, abrir aquele sorriso sarcástico e expor todas as dezenas de conquistas, as dezenas de razões pelas quais é um líder melhor que ela. É tão típico dela, monitorar centenas de Universos sozinha só para provar que pode ser uma líder tão boa quanto ele. Não, melhor que ele. É tão típico dos dois, insistir nessa competição para ver quem é o melhor do Universo.

E ela já se preparava para narrar o episódio da tentativa de anexação do Universo 96 que ocorrera no dia anterior, quando ele abre mão do sarcasmo e decide alterar o rumo da conversa:

- Mas, e então... o que tem feito além de trabalhar?

Por um breve instante, ela fica atordoada. Depois de tanto tempo, ele ainda é especialista em pegá-la com a guarda baixa. Mas ela logo se recompõe e coloca sua melhor expressão de desdém num sorriso gelado:

- Ah, muitas coisas. Semana passada, as fadas do Universo 13 deram uma festa aqui no Véu, e na quarta-feira meu novo assessor me levou para conhecer uma balada psicodélica no Universo 77. E faz quase um mês que sou imbatível nos torneios de luta livre do Universo 151!

- Legal! - diz ele com uma voz que parece metade entusiasmo genuíno, metade ciúme. E, como se ela tivesse perguntado (não que precisasse...), resolveu falar de si - Eu não tenho tido muito tempo para diversão, mas consegui tirar algumas horas para passear na praia com minha família, ver o mar, construir castelos de areia com minha filha... - Como em toda vez que menciona a menina, seu rosto se expande num sorriso paternal - Ao menos ela está feliz que estou mais perto dela agora do que quando era presidente.

Um aperto surgiu no peito dela quando ele mencionou a família. Como sempre surgia quando chegavam nesse assunto. A mente dela forma a imagem da esposa dele, uma mulher alta e esguia de longos cabelos vermelhos, lábios delicados de sorriso fácil e olhos verdes bem claros, da cor da própria esperança. E a imagem da menina, ruiva como a mãe, mas com cabelos ondulados um pouco mais curtos, olhos amendoados cheios de vida e aqueles traços no rosto que a faziam tão parecida com o pai. Não que ela não gostasse das duas - uma mulher romântica e gentil e uma adolescente carente e emotiva, o que havia para desgostar? Só não gostava do fato de serem a família dele, de estarem tão perto dele, de serem a razão para ele estar naquele lugar perigoso, fazendo um trabalho perigoso, há milhas e milhas intergalácticas de distância dela. Mas não diria nada isso, é claro. Ao invés disso, encarou a tela do computador com coragem e perguntou:

- Ah, sim, sua família. Como elas estão?

- Muito bem! - respondeu animado, mas baixou o olhar por breves instantes. - Adaptando-se à nova rotina, ajeitando a nova casa, construindo uma vida nova para todos nós.

- Que bom. Fico feliz por vocês. - Isso não era exatamente mentira, mas também não era verdade. Ela queria o melhor para ele, sempre iria querer, mas sentia falta de quando trabalhavam juntos, os dois contra o mundo, quando ele era presidente e ela era sua assessora, tentando mantê-lo longe de encrencas ao invés de ser lançada em desafios interuniversais. Embora, talvez, ela tenha se tornado a maior de todas as encrencas que ele encontrou.

- Sinto sua falta. - ele disse de repente.

- O quê? - ela indagou. Não entendeu. Não quis entender. Não quis acreditar.

- Sinto sua falta. Éramos um bom time. Ainda somos.

- De verdade?

- De verdade. Às vezes, ainda não sei porque aceitei esse trabalho.

- O Universo quis lhe dar desafios maiores. E você vai se sair muito bem.

Era sempre assim. Trocavam desafios e viviam competindo, machucavam um ao outro meio sem querer, mas, no fim, sempre chegavam naqueles momentos embebidos em melosidade.

- Eu sei. - ele disse, menos entusiasmado do que deveria parecer. - Mas sinto sua falta.

- Também sinto sua falta. - ela finalmente admitiu, a máscara de gelo quebrando-se a seus pés. - O tempo que passamos juntos foi cheio de memórias doces e amargas. E você sempre será a mais doce e a mais amarga de todas.

- Você também. - ele diz, e agora seus olhos ignoram todo o cenário e focam-se apenas na pequena mulher de cabelos dourados à sua frente. - Mais doce do que amarga. Muito mais doce.

- Queria que estivesse aqui. - ousou dizer. Era a verdade, e sentia-se bem em finalmente dizê-la. - Queria poder abraçá-lo uma vez mais.

- Também queria estar aí. - sua voz era um murmúrio, era puro desejo - Queria senti-la em meus braços uma vez mais.

Mas não podiam. Estavam separados pelas milhas, por deveres, por escolhas, e mais algumas milhas. E, naquela noite, depois de se despedirem do mesmo jeito ambíguo de sempre e terem ido dormir - ela em sua enorme cama solitária rodeada dos alarmes de emergência dos Universos, ele próximo à família que amava mas que nunca seria suficiente -, ficaram pensando um no outro.

Porque, para ela, não importava quem vencesse o desafio: ele sempre seria o melhor do Universo. Porque, para ele, não importava onde estivessem ou o que o destino lhes reservasse: ela sempre seria a melhor do Universo.