A casa

Há muito tempo que não retornava àquele lugar, onde outrora fora um lar para uma menina desesperada e que nada sabia da vida. Entrei na casa e comecei a recordar como fora minha infância, cheia de vida e dores, cheia de amor e desamor, cheia de tudo menos cumplicidade. Recordo-me bem de como as pessoas que lá habitavam tratavam-se, às vezes amorosos e outras simplesmente perversas.

A casa era grande, porém vazia, espaçosa, mas estreita. Uma casa construída do suor e da dor, que se impregnaram tanto em sua estrutura, que jamais fora feliz, às vezes fora perto de ser, mas perto não é o suficiente para quem quer saber como é ser feliz. Ela era branca, porém manchada de histórias nada e muito felizes.

Entrei nela e comecei a observar tudo a minha volta, o quarto onde outrora fora o refugio de uma menina que possuía vergonha ser quem era e em consequência disso, vestiu-se de mascaras por anos, até finalmente conseguir libertação longe dali, e nunca mais voltou. Olho o quarto e sorrio ao ver um desenho que há muito fora desenhado, não sei se com tinta ou dor, nas paredes brancas e tristes daquele lugar. Era algo incrível de se presenciar, sabe? Como os humanos procuram qualquer coisa a qual se agarrarem, mesmo sendo um simples desenho, era incrível presenciar como a dor nos faz escolher tudo com mais simplicidade. Saio do quarto e paro na sala, olho ao redor e pouco a pouco me recordo de lá, onde quase sempre era o grande palco para a dor.

Um teatro é composto por um palco e nele atuam os atores para que a plateia, ávida e sedenta por historias falsas, está a assistir. Assim como o teatro, aquela sala era palco de dores, não fisicamente, mas verbal e psicologicamente, pois sabe, as palavras são uma grande arma quando utilizadas corretamente, e eles sabiam utiliza-las. E chorei. Não um choro compulsivo, mas um que só derramava lágrimas que a muito fora guardada nas entranhas de uma menina que fora jovem demais obrigada a crescer, apenas para poder consertar os erros e viver os sonhos das pessoas a sua volta.

Comecei a andar e vi o quarto que guardava os maiores e mais doloridos segredos de todos, e continuei até chegar ao próximo cômodo, onde aos poucos, durante minha vida, vi pessoas amadas adoecerem e morrerem. Doeu, doeu mais do que qualquer coisa que vieram a me falarem quando descobriram, finalmente, quem realmente sou. Quando finalmente criei coragem e retirei minhas máscaras, eles utilizaram das palavras para cortar o que já não poderia mais ser ferido, por que já era quebrado demais, mas ainda conseguiram. Contudo, a dor de perder à quem amamos não é nada comprado as palavras, a dor das palavras conseguimos, de certa forma, aguentar, mas a dor da perda é desesperadora e devasta qualquer mente sã e digna. Saí daquele quarto que me trouxera lembranças, às quais eu guardava há muito no submundo da minha mente, e fui para o cômodo mais temido.

O quarto dos segredos.

Entrei, olhei ao redor, e turbilhões de memórias tomaram conta da minha mente atormentada por fantasmas que nunca queriam descansar. Me apoiei na mesinha do computador, e fui até a cama onde sentei-me e as deixei virem a tona, por que quando você guarda muita dor uma hora elas têm que sair para darem espaço para o resto da confusão que sua vida tornara, as lembranças.

Lembrei-me com um pesar, como eu costumava sorrir sem estar feliz, como costumava ser quem não era por medo da rejeição, e ela veio. Recordei de como minhas máscaras eram agradáveis e seguras, por um tempo; por um tempo consegui usa-las sem que me causassem tanta dor, sem que me sufocassem. Era engraçado como a mentira de sermos quem não somos se torna real quando você à torna um mantra, eu mentira sobre mim, meus gostos e anseios, menti sobre tudo. E nunca consegui deixar ninguém se aproximar realmente de quem era ou poderia ser, tinha muito medo de despedaçar-me e perder-me na confusão dos sentimentos. E assim foi, minhas máscaras tornaram-se minhas fies confidentes, e eu aguentei muito para quem se acostumou com a solidão, elas eram um presente.

Mas elas quebraram devido ao peso que carregavam, e veio à rejeição. Viram os monstros e demônios que escondera por muito tempo atrás dela, viram como eu realmente era, me viram despida de fingimento. E começaram a proferirem palavras doloridas demais para uma jovem que nada da vida sabia a não ser que não se conhecia o suficiente para caminhar só.

E parti. Parti e deixei pessoas amadas para trás, pessoas amadas e perversas, às vezes penso que poderia ter sido mais fácil se não tivesse omitido por tanto tempo minha dor e desespero. Mas as coisas acontecem por algum motivo.

Comecei minha jornada, no começo não conhecia a vida e nem tampouco suas armadilhas. Andei muito tempo só e sem jamais aceitar a ajuda de ninguém. Andei até meus pés doerem e quase poder tocar a lua, até achar minha primeira parada. A casa de varanda. No início achei-a encantadora e acolhedora para quem a muito aprendera a andar sozinha. Subi os degraus e bati na porta da casa, uma criança a abrira.

- Olá - disse com uma voz tremula, por ver tamanha ingenuidade a minha frente.

-Olá – respondeu o menininho - porque andas a sós?

- Porque a vida é muito dura para quem não conseguir segurar suas máscaras muito tempo, meu jovem menino.

- Sou jovem sim, moça. Mas a mamãe me falou uma vez que pessoas com o seu olhar, deixaram suas bonecas caírem em um poço. Isso é verdade? - Indagou o menino de olhos azuis curiosos a me fitar.

No início, não consegui entender a pergunta, mas depois compreendi; minhas bonecas, minha alma.

- Decerto, jovem rapaz, uma mãe sábias possuístes. Que ela o ensines o direito de amar e ser quem és, que lhe ensines como é a vida e não o deixe crescer mais que o necessário.

E sai, não olhei para o menino ao sair, porque sabia que fora incompreensível o que falastes para ele agora, mas um dia ele lembraria e me agradeceria. Voltei à rua, onde tudo era brilhoso, menos eu mesma. Andei e andei, até ver uma árvore cheia de maçãs e lembrei que não comia a muito tempo e tampouco dormia, dirigi-me a ela e ia arrancar uma maçã quando ouvi uma voz:

- Quem pensas que és para vir me comer e saciar tua fome, sem falastes nem um mero “oi”? - Indagou uma voz que não consegui destingir de quem era.

- Quem és? - Perguntei espantada.

- Ora mais! Quem mais seria senão eu? A árvore à qual irias usufruir sem ao menos falar quem és. - Respondeu raivosa e magoada a macieira.

- Perdão, não sabia que árvores poderiam falar ou sentir.

- És uma bárbara! O que seus pais a ensinaram?

- Não muito sobre a vida. - Indaguei com os olhos cheios de lágrimas e sorri.

- Não precisas sorrir porque és educado, afinal sorrir não pode ser tratado futilmente assim, jovem menina. Não odeies aqueles que nada sobre a vida a ensinaram, eles a protegeram estavam. Cuidado ao andar pelas ruas da vida, jovem moça. Ela não é nada agradável com quem andas sozinha e machucada, e perdoe-me, não sabias que machucada pelas pessoas amadas estava. Pegue uma maça, coma e vá. Siga o caminho do sol, porém jamais o pergunte nada, ele gosta de pedir à ajuda da lua, que traiçoeira és. – Disse, e parou. Depois de um minuto, ouvi um ronronar parecido com roncos, e presumi que ela adormecera. Que pena, tinha várias perguntas a fazer sobre a vida.

Segui meu caminho como a macieira dissestes, e sem jamais perguntar nada ao sol. Vaguei por mais tempo que consigo relembrar, e finalmente compreendi algo: a dor da partida é preenchida com o vazio de nunca conseguirmos achar outro lugar para chamarmos de lar, e retornei a casa que muito trouxera-me dor, mas que ensinou-me como a vida é. Por mais difícil que veio a ser, as pessoas mais amadas por mim, também me ensinaram sobre a vida e seus truques.

Retornei do meu devaneio e percebi que estava a chorar ao relembrar de como aprendera como a vida é, e como ela pode nos ensinar. Levantei-me da minha tão conhecida e confidente cama, onde passara muitas noites em claro a chorar, porque o peso da dor era tamanho que não conseguia mais suportar, e sorri. Sorri ao relembrar em como consegui aguentar, dei meia volta. Andei por todo cômodo tentando memorizar tudo, uma última olhada para o desenho estranho de uma jovem arrasada pelo segredo de ser quem era, um olhada para o palco que fora utilizado muito para magoar e fazer sorrir. Sai, peguei a chave, e tranquei a porta. E sai, sai sem jamais olhar para trás novamente.