A Lenda de Ditinho Cabeçudo

A lenda de Ditinho Cabeçudo

Conta-se, lá atrás, quando os homens pretos estavam deixando de ser escravos; que em uma pequena cidade do interior vivia; mais ou menos uma centena de pessoas. Era uma dessas cidades formadas nas beiradas da linha do trem e o acontecido ocorreu quando os operários tinham acabado de construir a estrada de ferro. A cidade ainda era pouco mais que um arraial. E foi numa noite de lua crescente que Ditinho nasceu, nasceu Benedito, mas logo virou Ditinho e por ter nascido com uma cabeça enorme, logo virou, Ditinho Cabeçudo.

A estrada de ferro dividia a cidade, do lado de cima da linha viviam os brancos ricos, os que tinham todo dia panela cheia e roupas que não eram rasgadas ou remendadas. Do lado de baixo os brancos pobres e os descendentes dos escravos, comiam quase o que a terra dava (quando dava), pequenas hortas, alguma caça de quando em vez, peixe ali não havia, o rio ficava do lado de cima da cidade.

Ditinho foi crescendo meio mais ou menos, conforme Deus permite, mas era uma criança feliz, vivia nos matos, conhecia os caminhos, dizem que falava com os animais e diziam até que conhecia os encantos da mata. Tinha uma coisa que incomodava muito Ditinho: queria saber as coisas, queria saber o nome dos rios e das montanhas, as geografias das coisas. Queria saber dos fatos já acontecidos, dos avôs, dos bisavôs (lhe disseram que isto se chama história), queria saber quantas bananas tinha numa penca (que também lhe disseram chamar-se matemática), queria aprender a magia das letras. Mas não havia no povoado quem lhe ensinasse essas coisas.

Quando Ditinho se aventurava a percorrer o lado de cima da cidade, as crianças brancas mangavam dele: “Lá vem o Ditinho Cabeçudo udo udo udo! lá vem o tição! lá vem o negrinho pestilento!” e por aí ia. Uma dessas crianças brancas, de nome Leonardo, filho do Manuel da venda, era quem mais judiava de Ditinho, xingava, troçava, batia, judiava muito, só sabia fazer maldades. E Ditinho chorava e voltava para sua taperinha, junto de sua mãezinha (pai não tinha), e a mãe acariciava sua cabeça grande, seus pixains e também chorava.

“Não tem jeito Ditinho, vida de negro e de pobre é assim mesmo”.

Mas, Ditinho Cabeçudo vivia sonhando em aprender coisas.

Ocorre que do lado da tapera de Ditinho, numa árvore velha, morava um bem-te-vi. Ditinho gostava de conversar com ele (o nome do bem-te-vi era Bastião). De tanto escutar Ditinho falar, chorar, querer aprender as coisas do mundo; um dia Bastião levantou voo e foi para bem longe, para uma cidade bem maior, chamada São Paulo, sabia que lá encontraria ajuda para Ditinho. Pousou numa praça, lá pelos lados onde se chama hoje, Luz e viu sentada num banco, uma mocinha magrinha, branquicela, feinha até, que soluçava. Bastião falou:

- “Que vossa mercê tem?”

- “Tenho nada não seo bem-te-vi, sou professora e não consigo posto nessa cidade para ensinar.”

- “Vai para minha cidadezinha, lá tem menino que quer aprender.”

- “Não posso, não tenho dinheiro nem para comer.”

Bem-te-vi Bastião levantou voo, voou até a estação, entrou em um guichê, pegou uma passagem de trem, voou mais um pouco até uma banca, bicou uma banana e voltou.

- “Pronto, agora já tem o que comer e passagem, pode ir! Procura um menino chamado Ditinho Cabeçudo, ele quer aprender as coisas do mundo.”

Ela foi.

Chegou à cidade, procurou por Ditinho e o encontrou lá na sua tapera, na parte baixa da cidade, chegou e disse:

- “Vim lhe ensinar as coisas do mundo.”

E começaram as lições de noite (durante o dia, Ditinho ajudava a mãe na roça), com a ajuda de uma vela branca. Ditinho aprendia rápido e ficava maravilhado com as coisas, logo também outras crianças quiseram aprender e toda noite; Maria (era o nome da moça) ensinava para todas as crianças e todos que queriam aprender as coisas do mundo.

Um dia, Leonardo (o filho do Manuel da venda) descobriu que os negros e brancos pobres estavam tendo escola e contou para seu pai, que ficou indignado e chamou os velhos da cidade.

- “Precisamos dar um jeito, a negraiada não pode aprender a contar, senão vão saber quanto é 100 gramas de toicinho e eu vou ter prejuízo.” “Negro e pobre nasceram para aprender a trabalhar e a servir, mais nada”.

Combinaram falar com a professora, e foram. Prometeram que se ela viesse ensinar na parte de cima da cidade, dariam a ela, boa casa, boa comida e boa cama. Mas a professorinha não quis e ficou lá na parte de baixo.

Resolveram então, por fim aquilo que chamavam de “pouca vergonha”, (onde já se viu negro e pobre aprender ler e escrever) e combinaram que iriam matar Ditinho e a professora. E os mataram em noite de crescente, no terreirinho que era a escolinha, mataram-nos enforcados.

O bem-te-vi Bastião berrou, atacou, bicou, mas não conseguiu impedir o crime e também foi morto.

Os negros pobres enterraram Ditinho Cabeçudo, a professorinha Maria e Bastião. Construíram um tumulozinho, quase cova rasa e enterraram os três, com muita oração e vela.

O tempo foi passando, passando, a cidade foi crescendo, crescendo.

Em volta do local onde Ditinho, Maria e Bastião foram enterrados foi construído o cemitério dos pobres da cidade, pois até na morte o rico quer se separar do pobre.

Conta-se que muitos anos mais tarde, outras professoras e professores vieram de trem e começaram a ensinar as crianças ricas da cidade. Muito, muito mais tarde vieram professores para ensinar as pobres também.

Conta-se também que, em algumas noites de crescente, no túmulo onde Maria, Ditinho e Bastião foram enterrados aparece uma moça, um menino cabeçudo e um bem-te-vi ao lado de uma vela branca. A moça parece ensinar, o menino aprender e o bem-te-vi cantar de alegria.