Olhos azuis, manto rubro

Quadros. Pinturas e fotografias. Centenas. Diversos estilos. Todas representando a mesma pessoa, a misteriosa mulher que transformou a sua vida para sempre. Algumas, ele mesmo pintou, tendo se dedicado ao aprendizado desta arte apenas para este fim. A maioria, artistas renomados que ele foi contratando através das décadas. As fotografias, eram todas de lindas modelos que tivessem alguma semelhança com ela. Porém, nada até agora, nem lente nem pincel, conseguiu representá-la a contento.

Seu olhar se demora sobre uma das imagens. Uma fotografia que ele mesmo produziu e tirou no início dos anos oitenta. Já se passaram quase trinta anos. Ontem. A modelo, a mais parecida com sua musa, provavelmente já deve estar beirando a casa dos cinqüenta. Impressionar-se-ia em vê-lo com exatamente o mesmo aspecto de outrora? No quadro, ele pode observar com atenção todos aqueles intrigantes símbolos azuis pintados em seu busto. Lembra-se exatamente deles. Em detalhes. De seu brilho, que até hoje se reflete em seus olhos. Foi como tudo começou. Ele se lembra. Inclusive daquilo que não presenciou. Foi há muito tempo...

***

Uma noite a cada ano, ela visitava outro mundo. Diferente do seu. Um mundo onde a magia se escondia sob lagoas, atrás de espelhos, e além das trevas. A maior parte do povo deste mundo não acreditava mais em mágica, mas, às vezes, sob especiais circunstâncias, ou em determinadas datas, era capaz de sentir os seus efeitos. Era um local estranho para ela, considerando-se que era feita de pura energia mística. Este era o seu mistério.

Uma noite a cada lua, ele saía para caçar. Séculos de vida, força e velocidade sobrenaturais. Belo e poderoso. Imortal. Mas possuía duas grandes fraquezas. A luz do sol o feria gravemente, podendo até mesmo chegar a matá-lo. E ele precisava beber sangue humano regularmente para preservar a sua longa existência. Ah, a fome! Esta era a sua maldição.

Ela tinha por missão tocar a vida de alguém. Seu instinto a fazia descobrir quem ajudaria sempre no momento exato. Devia trazer um pouco de magia. Manter a chama acessa. Mudar um destino. Isto garantia que ambos os mundos continuassem interligados, e que o seu não cessasse definitivamente de existir. Encanto para este mundo, vida para o dela. O portal sempre era aberto perto de uma antiga floresta. Florestas eram lugares mágicos.

Já perdera a conta de quantas décadas faziam desde que se transformara naquele ser de pesadelo. Sanguessuga. Vampiro. Demônio. Não era exatamente o que ele imaginava, mas foi precisamente aquilo que ele pediu. Era capaz de sentir a vida pulsando nas veias de suas vítimas a metros de distância. Seu território de caça era a área de uma velha floresta nas proximidades de sua vila. Florestas eram lugares sombrios.

Vagava tranqüila, já após sua viagem interdimensional, enquanto ia tentando descobrir exatamente o que faria desta vez. Já transformara um escravo num rei, e já ajudara um jovem a conquistar a sua amada. Já dera a dica da música perfeita para um harpista, e já encantara um cego para que voltasse a enxergar. Já levara uma dama ao baile mais importante de sua vida, e já auxiliara um garoto a fugir das garras assassinas de seu padrasto. Gostava do que fazia. E isto a fazia feliz. Até que pôde sentir uma alma negra e atormentada se aproximando, sorrateiramente.

Espreitava, silencioso, esperando por alguém que pudesse lhe ser fonte da vital bebida. Não importava sexo ou idade, tampouco classe social. Quando a fome vinha, imperativa, só lhe restava obedecer. A sensação de prazer era indescritível. Por milésimos de segundo, era como se o seu coração voltasse a bater. Vida. Até que pôde sentí-la. Nenhum ser humano tinha um aroma tão forte e agradável. Estonteante. Vários metros de distância ainda os separavam, mas era como se a noite inteira tivesse se iluminado, como num passe de mágica. Seguiu em direção à luz.

Num instante, ela teve certeza de que a sua busca terminara. Era ele. Seu objetivo. Já sabia exatamente o que fazer, tal era a sua natureza. No momento certo, ela sempre sabia. Só faltava deixá-lo se aproximar, todo confiante, com seus céleres passos e suas presas protuberantes. Sim, à sua maneira, ele era extremamente elegante e altivo. Ela estremeceu. Num átimo, sentiu o toque de sua pele, tão gelada. A última coisa que viu foi o intenso negror dos olhos dele transformando-se em surpresa.

Sua pele era tão alva quanto a dele. Mas era morna. Deliciosamente. O luar era refletido nos inúmeros cristais que adornavam seu vestido, tornando-o multicolorido. Em seus braços, e em seu busto entrevisto através do decote, era possível ver pintados diversos símbolos azuis. Era ilusão, ou eles realmente brilhavam em sua pele? Quando ele surgiu em sua frente e a abraçou, ela não esboçou reação alguma. Como se o esperasse. A pele frágil do pescoço se rendeu ao fio de seus dentes, e ele pôde saciar a sua fome cruel.

Definitivamente.

***

Tenta conter a torrente de lembranças. Afinal, é esta a noite, e ele tem muito o que fazer. Uma noite a cada ano. Assim como ela. A noite dela. Levanta-se de sua poltrona e sai a verificar se os animais estão prontos. Sua missão é grandiosa, mas não impossível. Não para alguém que tem a eternidade ao seu favor. Ele acredita nisso.

Pois quando o sangue dela entrou em seu corpo, ele pôde sentir a magia fazer efeito. Transmutação. Ela o surpreendera, e não o contrário. Misteriosamente, seus olhos se tornaram profundamente azuis, e ele quase pôde resgatar dentro de si o significado perdido dos símbolos que ela trazia pelo corpo. Muito mais do que a mera lembrança de como ela era bela sobrevivera dentro dele. Ele sabia. E ele ia se redimir.

Hoje, ele tem certeza de que tudo aquilo teve a sua razão de ser. Intuitivamente, ele sabe o que tem de ser feito. Sempre. Fazer as pessoas acreditarem. Impedir o fim de um mundo que, ele sente, também é seu. Pois nunca mais precisou se esconder da luz do sol, e muito menos tirar outra vida. Como se a fonte de sua vida eterna agora escoasse de outro local, antigo, nobre.

Sentir o calor em sua própria pele sempre o anima, e ele parte empolgado para levar sorrisos e sonhos por onde passar. Em apenas uma noite, ele precisa estar ao lado de todas as pessoas do mundo. Ou pelo menos, de todas as crianças. Quando conseguir, os dois mundos se tornarão um só novamente. E ele voa rapidamente pelo globo, e sabe que, ano a ano, está mais próximo de conseguir. No fundo, ele próprio é apenas mais uma criança, e esta constatação basta para fazer com que sua risada de puro entusiasmo possa ser ouvida ecoando pela noite. Ho, ho, ho!

Conto originalmente publicado no Amigo Secreto Literário de Natal, Fábrica dos Sonhos (2010).

Renato Arfelli
Enviado por Renato Arfelli em 31/12/2015
Código do texto: T5496209
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