O Adeus do Rei Goblin

* Uma homenagem a David Bowie *

Havia uma melancolia no ar daquele vale.

Não me lembrava de como o verde era tão vivo. Há muito tempo eu não visitava aquele lugar.

Muito tempo!

Da última vez que estive ali, estava assustada e confusa demais para reparar nas coisas belas.

Ao longe ser erguia uma colina, e todas as criaturas encantadas se dirigiam para lá.

Por mim passaram minúsculas fadas apressadas, um homem nobre e magro vestido de branco, gigantes, cães falantes e coisas do tipo.

E goblins, muitos e muitos goblins. De todos os tamanhos, cores, formas, vozes…

Os segui.

A colina não era muito íngreme, mas havia uma velha goblin com dificuldade de subir. Estendi meu braço para ela. Era pequena, redonda e escura. Tinha orelhas compridas e uma corcunda irregular, mas parecia bastante simpática.

- O que está acontecendo lá em cima? - Perguntei.

- Ora, você não sabe? Um funeral. - Respondeu ela ofegante.

- De quem?

- Do rei. - Respondeu ela.

- Que pena. Faz um dia tão bonito.

Subimos, ora em silêncio, ora comentando sobre o tempo e sobre as pequenas criaturas que brotavam da terra em baixo de nossos pés e quase nos derrubavam.

No topo da colina o vento soprava calmo, espalhando folhas e pétalas pelo ar. Dalí era possível ver o enorme labirinto, agora em ruínas. Aquela imagem fez emergir lembranças e sensações esquecidas há mais de meio século.

Além das ruínas, o castelo. Sim, disso eu me lembrava. Sua imagem ficara eternizada em minha mente como uma pintura gasta, mas que ainda mantém sua beleza.

Vi, a minha frente, uma multidão de criaturas estranhas e fantásticas. Algumas eu nunca vira, outras me pareciam estranhamente familiares. Estavam divididas por um caminho de pedras brancas onde ninguém ousava pisar.

Pela grama verde e macia se espalhavam árvores frondosas e flores coloridas.

Todos pareciam um tanto melancólicos. Era possível ouvir uma música suave ao fundo, mas eu não podia ver quem a tocava.

Ao final do caminho branco, havia uma mesa de pedra oval, ao lado dela uma criatura de beleza indescritível, alta, esguia. Ela tinha olhos tristes e asas douradas muito finas. Aos seus pés um gatinho amarelo lambia a pata despreocupado.

Na mesa repousava o corpo dele. Porém não pude ver muito bem, estava longe e sem óculos. Mas pude enxergar seu manto branco e prateado, as botas negras e pontudas. Os cabelos cinzentos volumosos ainda conservavam alguns poucos fios dourados.

Pairava no ar uma emoção compartilhada por todas aquelas criaturas. Era possível ver em seus olhos o amor e a gratidão. Não havia no lugar nenhum par de olhos (ou conjunto de olhos) que não vertesse lágrimas.

Então me reconheci como parte daquela turba estranha e bizarra. Sonhadores deslocados que encontravam naquele espaço mágico o seu lugar, o seu próprio mundo. Eu era um deles, e compartilhava daquela dor. Todos que ali estavam juntaram sua voz em uma linda canção de despedida enquanto o sol se punha e o céu se tornava escuro e salpicado de estrelas.

E então as lembranças brotaram em minha mente, em uma enxurrada violenta, destruindo as barragens que eu havia construído em minha alma, e elas escorreram como um rio pelos meus olhos.

Eu me lembrava daquele lugar, daquele rei. Era como se tudo tivesse acontecido ontem, quando eu era um jovem garota tentando consertar meus erros. Mas muito tempo se passou desde então, e agora meu rosto estava marcado pelo anos. Lembrei-me da força surgida em mim, dos amigos mais leais que tive, de minha juventude, que passou como o vento.

E em meio a essas memórias, o amor.

Ele havia me amado, a seu modo, e agora essa lembrança era minha novamente.

Quando a lua, tímida, já estava alta, a multidão silenciou. A brisa leve acariciou o meu rosto com seus dedos frios, bagunçando meus cabelos.

E então aconteceu:

O corpo inerte do rei que jazia naquela pedra fria tornou-se reluzente. Inicialmente seu brilho era leve e trazia vida de volta à sua face. Ma a luz tornou-se mais intensa e prateada e já não podíamos mais olhá-lo diretamente.

A luz nos envolveu em um grande abraço caloroso e o corpo do rei se desfez em milhões de partículas luminosas.

Sob os olhares melancólicos de todos, a brisa, como se adquirisse vontade própria, soprou a poeira prateada pelos ares, traçando um caminho resplandecente no céu até se reunir e se fixar em um ponto específico do firmamento, reluzindo, mais brilhante do que qualquer outra estrela.

Ali ficamos por longos momentos, bebendo daquela luz que se derramava sobre nós. A tristeza se cristalizava em nossas almas. As lágrimas correriam uma vez ou outra, mas sempre teríamos as memórias e aquela luz.

O rei goblin havia nos deixado, mas não completamente.

Ele partira para tomar o seu lugar entre as estrelas e para ficar, eternamente, em nossas recordações.

Keila Fernandes
Enviado por Keila Fernandes em 23/02/2016
Reeditado em 22/09/2017
Código do texto: T5553096
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