Oculta

Antes de desvendar o infortúnio do meu destino nutri em mim as mais nobres ambições. Tal como a mais devota ovelha do rebanho, a não ser pelo fato de não haver rebanho algum, fui leal em minha dedicação e absolutamente exemplar em minha persistência. Aguardei com tão assustadora esperança o dia em que ela finalmente me notaria, e as sombras que me abrigaram por infinitos comprimidos em pensamentos suicidas e assassinos são testemunha da minha espera fiel.

No entanto, desde que pisei nestas terras, não houve um segundo que tenha escapado da minha contagem regressiva e nem um só dia que tenha escapado da solidão. Estava tudo muito claro, era eu quem estava no escuro.

Quando cheguei, deparei-me com portas e janelas trancadas. As passagens todas foram obstruídas. Qualquer atalho à vista era inútil; não havia realmente caminho algum por onde eu pudesse entrar. O sótão era o único cômodo inabitado, o único lugar onde eu podia me esconder de mim mesma. E de tão escondida, eu quase sumi. Nele eu não precisei ser recebida, ou aceita, uma vez que aquele era um canto já há muito esquecido.

Estive em sua tutela desde o meu princípio. Dos maus aos piores dias, até o meu final, foram as suas paredes que cercaram a minha inércia e contiveram minha dor. Do alto do terceiro andar, a janela fechada e imunda embaçava a visão para o lado de dentro, embora não fosse isto o que me escondia do mundo lá fora.

Da janela eu via muitos dos olhares passageiros cruzar a calçada, enquanto lançavam suas sentenças sobre nosso jardim, – mas só o silêncio me alcançava. Todos os dias eu ouvia os sinos da igreja conversarem entre si, ignorando minha presença, ainda que parecessem plenamente conscientes da minha existência indesejada. Falavam de mim, eu logo presumia. Pois teriam sido eles os primeiros, se minha suspeita não fosse, na verdade, o meu único e mais sincero apelo.

Esta é uma cidade pequena, onde os sinos falam e acordam nossos pensamentos a cada 3 horas, onde as fachadas são vitrines da mentira e as cortinas confessionários da verdade. A casa onde nasci era uma casa marcada, nela os cômodos revelavam verdades secretas e as bocas escondiam segredos sagrados. A cidade não sabia, mas o segredo que esta casa guarda não poderia ser tratado como outro qualquer. Ele não teve seu início comigo, mas seu fim só chegaria no dia que eu então terminasse. Mas este segredo eu não guardo comigo. Este segredo sou eu.

Eu sou e sempre fui a discórdia desta casa, ainda que nenhum deles nunca tenha estado ciente da minha existência. Eu sou a encarnação de uma memória rejeitada, mas jamais esquecida. Poderia eu ser qualquer criatura, mas sou aquela que ninguém ouve e ninguém vê – como fora também minha verdadeira imagem e semelhança.

A fraqueza e a desolação trouxeram a nós duas a este mundo, e então nos lançaram para fora do seu círculo, na tentativa de revogar o nosso nascimento. No meu caso, porém, esta não seria uma obra possível. Minha chegada era inevitável e, mesmo após este dia, também não haveria mágica ou súplica que pudesse revertê-la tão subitamente. Não é possível haver um sumiço repentino, um desaparecimento rápido e indolor, para os seres como eu. Assim como chegamos, partimos. Com a mesma lentidão de uma gestação, nós sentimos uma dor alongada em tempo para conquistarmos a inglória dádiva da partida. E, apesar de hoje eu saber tudo sobre este assunto, não foi fácil para mim entender nada disso.

Para ser justa comigo, a devoção nunca foi uma vocação minha. Esta é uma parte da minha natureza, algo que eu não poderia controlar. Eu não fui feita para pensar. Eu não deveria presumir e nem deduzir nada. Fui feita para jamais cobiçar nada do que não me pertencesse – e nada aqui realmente me pertencia, nem mesmo eu. Pois assim eu fiz, por um bom tempo, embora soubesse que quanto mais me afastava do dia da minha chegada, mais me aproximava do dia da minha partida.

Iguais a esta, algumas outras verdades também me eram lícitas, porém nem todas me eram convenientes. Mesmo tão perto, eu não as podia ver. Eu mesma dissimulei e dispensei o incontestável. Em minha jornada, fui capaz de crer nas mais infinitas versões do impossível. Devido a minha grande impotência e ingenuidade, nada do que eu guardava comigo poderia me fazer enxergar.

Tudo que eu sabia, eu podia contar em cinco dedos. Primeiro, eu sabia que meu tempo era contado de trás para frente, embora não soubesse ainda o motivo ou me importasse. Segundo, e mais importante, eu sabia que eu existia – mas disso nunca duvidei. Terceiro, eu sabia que era invisível, e isto demorei um pouco para entender e nunca tentei aceitar. Quarto, eu sabia que eu era o segredo, a face do passado e de um outro alguém. Em quinto, e como resultado de todos os anteriores, eu sabia com toda a clareza do mundo qual era o meu lugar.

Minha morada era o sótão, minha companhia o silêncio. As mazelas do mundo conheci de longe, ouvindo por de trás das portas e espiando pelas janelas. Eu era um segredo e agia como tal. Eu tinha como hábito me esconder e, quando muito sozinha, eu costumava observar de perto os hábitos daqueles que me escondiam. Estar só, contudo, não era mera casualidade. A solidão era rotina e, mesmo nas menos malsucedidas tentativas de aproximação, eu jamais deixei de estar só.

As noites chegavam cheias e suaves para o resto da cidade, enquanto caíam pálidas e vazias sobre meus ombros já tão caídos. A casa também estava sempre cheia para eles, repleta de convidados corrompidos pela bebida farta e de celebrações arrastadas pelas conversas mal improvisadas de quem pouco se importava com o sorriso alheio. Inúmeras vezes eu me misturei às meias gargalhadas, seguindo pelos cômodos com meus passos calados – como se qualquer som meu pudesse ser ouvido ou qualquer movimento pudesse ser notado.

Apesar da multidão que desprevenidamente cruzava meu caminho, ninguém jamais esteve lá por mim – nem mesmo ela, aquela que me deu à luz e foi o motivo de todas as minhas ações. Mas o seu desprezo nunca esteve em sigilo. Me dói admitir isso, mas eu sei que ela nunca escondeu. Eu sabia, e esta era mais uma verdade conhecida, a qual eu mesma acobertei.

Mesmo quando ansiava pela sua companhia, eu sabia; mesmo quando desejei, em prece, por um único olhar seu. Todas as vezes que me deparei com os mais desleais abraços e carinhos que não daria, sedenta pelo mínimo gesto de reconhecimento, eu sabia – assim como sabia que cobiçá-los seria um esforço em vão. Havia muita coisa que eu fingia não saber. Nesta época, no entanto, saber não me era o suficiente. Qualquer esforço se justificaria em nome do meu propósito. Só ela me importava, e nada mais.

Dentro do emaranhado de dentes, copos e braços, ela se esquivava com ânimo e firmeza, como se atravessasse a uma floresta densa e hostil. Logo abaixo da escada da sala ela se escondia. Corpo rente à parede e livro na mão. Eu era a sua criação e, a sua mente, uma vastidão de pavores latentes. Nunca a vista, como eu mesma fazia, ela encostava o rosto sobre a parede e deixava que seus olhos lessem os sentidos intencionalmente escondidos que preenchiam o lugar. Perdida entre os corpos calculadamente posicionados, ela também se camuflava a eles como uma mera espectadora, ultrajada pela morbidez da vida que se rompia a sua frente. E eu, igualmente sozinha, dividia com ela em silêncio nossa cumplicidade imaginária.

No meu mundo distorcido, nós éramos absurdamente iguais. Eu me via nela. Eu precisava me ver nela. De alguma forma, eu enxergava algo que nos aproximava. Foram esses os tempos de cegueira, quando a servidão que corre em meu sangue ainda cobria meus olhos. Por de trás da venda, eles se espremiam para ver além e, mesmo que não vissem nada, acreditavam em tudo o que viam. Era para isso que a venda servia, aliás; para me fazer ver. Eu estava aprisionada pelo meu instinto, amordaçada pelos feitiços da minha própria natureza, que mascaravam minha vista e iludiam o meu pensamento.

Não me lembro exatamente quando entendi o verdadeiro significado do meu fracasso e o que dele resultaria, mas me lembro exatamente como:

Era noite. No sótão todas as horas eram escuras, mas aquela em particular estava especialmente sombria. Não havia nada lá fora. Os sons todos haviam cessado. As luzes apagadas, senão escondidas. Só eu permanecia acordada. A poeira me incomodava, mas dava-me um bom ponto de vista do tempo, onde as coisas se acrescentavam ao invés de decrescer.

Enquanto observava a poeira acumulando, assisti à porta do sótão se abrir, como acontecia frequentemente nas importantes datas do ano. A porta escancarada deveria me revelar minha companhia, mas era difícil enxergar. A casa estava toda apagada, tão escura como a parcela que meus olhos viam, e a silhueta do meu visitante se perdeu na escuridão. Eu me levantei e, como se em resposta, pude ver sua silhueta tomar forma conforme seus passos a conduziam para debaixo da única luz que entrava pela janela. Um espectro borrado por dentro e nítido por fora.

Era ela; nós duas sob o mesmo teto e sobre o mesmo chão – desta vez, porém, era ela quem invada o meu mundo.

Seguindo as leis que o regiam, seus passos avançaram silenciosos e incontáveis para dentro dele. O tempo incontrolável do sótão me deixou tonta, apesar de eu mesma viver sob seu domínio, e me perguntei o quanto ele a afetava também. Como uma manta pesada em queda livre, ela se ajoelhou aos meus pés, sem sequer ser capaz de imaginar o que eu via. Junto a eles ela deixou escorrer um áspero pranto arrependido que arranhava sua voz. Eu me juntei a ela, com o meu próprio choro escorrendo me escapando e a cobrindo, respirando o ar que envolvia aquilo que pensei ser o momento que tanto esperei. Fui até ela porque eu quis ouvi-la, mesmo que não houvesse nada que eu a pudesse dizer. Lado a lado, de tão perto, quase nos tocamos. Olho com olho, sem abismos, nossas lágrimas unidas – não em matéria, mas em intenção –, e eu finalmente compreendi. Aquele choro não era para mim, nem nunca seria. Menos ainda era seu arrependimento, e este jamais poderia me pertencer. Eu não existia para ela. Minha dor, que derramei contra aquelas paredes e sobre aquele mesmo chão, veio dela; mas eu não fazia parte da sua. Eu era a única que poderia consolá-la e ela era a única que poderia me consolar, mas eu não estava com ela e nem ela comigo. No dia do nosso encontro nós não nos encontramos. Eu ainda estava sozinha.

O ápice da tragédia da minha existência, ironicamente, foi também a chave para minha libertação. Quase oito anos haviam se passado desde o meu primeiro suspiro – todos deles sacrificados em seu nome –, e quando finalmente despertei para a verdade, eu estava inevitavelmente oito anos mais perto do último. Com a tábua de madeira gasta ainda molhada do meu choro irreal, no reflexo da minha face invisível enxerguei passado e futuro, ambos capsulados no meu presente.

Eu vi meu nascimento. Revisitei minha chegada. Senti novamente cada uma das minhas dores e, naquele momento eu soube; eu não havia nascido. No dia do meu nascimento, ela decidiu que eu não merecia nada do que era seu. No dia do meu nascimento, ela arrancou de mim toda e qualquer chance de ser feliz. No dia do meu nascimento, eu morri, e na morte fui pouco a pouco a caminho da minha eterna inexistência. Eu nunca tive chance. Desde de o meu princípio, apesar de toda minha devoção, eu nunca tive chance de escapar.

Ela me abandonou, a mim e a minha outra versão; mas a esta foi dado o descanso eterno e, a mim, o eterno vazio. Foi o seu abandono que inverteu o meu tempo, que fez dele do avesso, sempre em queda, até o seu segundo final. Ela me condenou. Negou-me o seu mundo, minha única morada possível. Negou-me o nosso mundo também, aquele que dividiríamos caso ela tivesse permitido. Negou-me tudo, privou-me até mesmo de si.

Pois enquanto eu me ocupava com meu fascínio doentio, usando de todos os artifícios possíveis para atingir o impossível mais estúpido no qual já acreditei, em suas mãos fétidas estava o meu sangue. Nas minhas, a arma. Eu me sacrifiquei por ela. Sacrifiquei o tempo que nunca tive e, em troca, ela fez de mim uma criatura inútil; um ser condenando a existir em exílio até que seu único alívio fosse o seu fim. Ela fez do improvável, impossível. Foi ela, ela fez isso. Como ela pode me deixar existir assim Ela me deixou existir assim. Não foi acidente. Não foi infortúnio. Ela me criou para morrer. Talvez minha criação tenha sido um erro, mas só eu fui punida. Essa era a prova que eu precisava; nós não éramos iguais.

Eu era diferente dela e ela não era diferente dos outros. Todos eles eram os mesmos; era eu quem não cabia naquele lugar. Era eu quem não pertencia àquela família, e não ela. Era eu a discórdia e o segredo. Nós não éramos iguais. Embora ela agisse como eu, nós não éramos iguais. Ela decidiu ser invisível, ela escolheu se esconder. Eu não. Eu não tinha nada e não tive escolha. Era eu o segredo e, ela, a dona. Toda minha história até então se resumia na minha busca incansável pelo nosso encontro, enquanto ela mesma tramava a minha isolação. Ela me guardou. Foi ela quem me escondeu. Ela escolheu por mim, mas não mais.

Senti raiva, ódio; e de tão vivo o ódio, eu quase pude sentir o rastro de humanidade que ele deixava me dar vida também. Aquela foi a sensação mais reconfortante que senti em anos. Um alívio para a ferida, uma fresta de luz. Eu até queria mantê-lo guardado aqui dentro, mas a todo custo ele me escapava. Juro que não desejei o seu mal, nem o de ninguém, eu só queria sua retratação. A calmaria, que eu tão ingenuamente esperei que preenchesse o fim dos meus dias, nunca veio e eu me assustei. Mas eu não podia mais pensar como antes. Tudo estava igual, eu é que não era mais a mesma.

A dúvida maior da humanidade, que jamais poderia ter cruzado meu pensamento, passou a habitar minhas ideias, enquanto também disputava o mesmo espaço as dúvidas sobre a minha própria natureza. Eu quis entender o que é essa coisa que acontece entre os segundos, os minutos, as horas e os dias, que tanto seduz as criaturas e que tanto confunde seus nativos. Eu precisava entender como e porquê. Como, dentre todos os seres, vocês foram os escolhidos Por que vocês viviam e nós não De todos os seres do mundo, por que logo vocês

Dispenso suas respostas. Nada que eu visse ou ouvisse mudaria minha opinião, não quando eu já sabia de tudo. Assisti ao seu mundo ser construído e desconstruído ao meu redor, enquanto eu mesma me afundava aos seus pés. À olho nu, eu assisti ao mundo dos homens desperdiçar a abundância de vida e tempo que nenhum de vocês jamais mereceu. Cheio de nomes, de vozes brandas e amargas. Repleto de nada. Vazio em tudo. E, por tão pouco, vi matarem e morrer. Na minha quase morte, eu havia feito muito mais do que qualquer humano jamais fez. Eu não aceitaria resposta alguma. Vi tudo o que precisava ver.

Ao esmaecer pela primeira vez, em um presságio agudo do meu futuro – esvaziada em minha memória e enfraquecida em lucidez –, tive uma pequena prova do que é o rancor. Um novo sentimento; mais uma sensação. Era um caminho sem volta, e eu não queria mais voltar. Eu deixei de me importar com o que eu era, só me importava o que eu poderia ser. Uma ideia, que por si só era impensável, e que, em minha custódia, seria impossível, se tornou a minha obsessão.

Tão distante era meu destino, que até o seu início era longe demais. Mas tive tempo em falta e urgência de sobra para me tornar a criatura que me tornei, capaz de conceber na mais infértil das terras uma ideia tão irresistível quanto esta; e assim o fiz.

Existir era muito pouco, eu precisava de mais. E, mais que qualquer um nesta terra, eu merecia viver.

Não só pelo desprezo com que me receberam; não apenas pelo tempo sagrado que gastei em vão; não pelo desrespeito às minhas tentativas heroicas; não somente pelo insulto à minha sanidade; mas pelo desejo sobrenatural de transcender a minha existência descartável. Por este desejo, sou culpada. Sou culpada de ultrapassar minha própria ira e fazer dela, e de todo outro sentimento mais, combustível para a minha ascensão.

Desejei o indesejável. Cobicei exatamente tudo o que não me pertencia. Regra nenhuma poderia me impedir. Eu estava desperta e, a minha volta, estava a vida que eu sempre quis.

A cada conversa que eu ouvi, enquanto observei os passos que cercavam meu cativeiro do lado de fora, e durante a maior parte dos segundos que estive desperta para apreciá-las, sobressaltou-me aos olhos meu único motivo de apreço pela humanidade. Eu via, da minha janela, as palavras trocadas que flutuavam de boca em boca ao meu redor. Foi incontável o peso do silêncio ao longo de todos os anos que o carreguei sobre minha cabeças e sob meus pés. Por todo este tempo, em volta da minha redoma, de tudo soube e de tudo ouvi.

Acostumei-me a falar em silêncio e ouvir em segredo. Eu nunca quis isso. Eu sempre quis mais. Para mim, só vocês eram capazes de admirar e celebrar o outro com tanta verdade e com tanta mentira, ora sim e ora não. A clandestinidade não me caía bem. As palavras alheias não valiam o que passei. Era a minha vez de dizê-las. Precisava eu contá-las. As minhas próprias palavras; a minha própria voz.

Durante esta fração do meu tempo, neste pedaço da minha escassa história que se iluminava sob as caridosas brechas da má-esperança, os dias eram poucos para minha alma enferma e incrivelmente incontáveis para minhas numerosas frustrações. Meu propósito era turvo, porém absoluto. Não havia mais nada que eu pudesse perder. Eu estava determinada, porém completamente enganada.

Pouco tempo havia passado desde o nosso rompimento e notei um dia que as coisas estavam fora do lugar. A casa estava conturbada, assim como ela. A movimentação era inquieta e incessante, quase ensurdecedora, e pelos corredores ouvi o anúncio que mudaria tudo para nós. Exatamente seis anos após a minha vinda começou a crescer dentro dela algo que poderia ser a sua redenção. Eu vi aquilo ganhar forma e encher a sua barriga, dia-após-dia, até não caber mais. Sua salvação havia chegado, e o seu nascimento em nada teve a ver com meu. Acabava de nascer neste mundo algo capaz de me deter.

Naquele momento, a vida daquele ser significou para mim o pior dos insultos. Nada poderia me magoar mais do que aquilo. Enquanto três de nós fazíamos parte de um mesmo passado, a chegada deste quarto elemento dava apenas a um de nós a chance da retratação. Minha dona pôde refazer os erros cometidos, mas minha semelhança jamais reviveria o que lhe foi negado e eu jamais seria o que não sou. Eu fui obrigada a ver nossa memória ser manchada e a vê-la entregar a esta nova criatura tudo o que não nos deu. Se fosse pela minha natureza corrupta, eu poderia fazer deste ser minha nova aspiração, mas não o fiz. Eu não fiz nada, apenas observei.

Olhando o tal ser se mover, eu soube que não havia em mim traço algum de amor ou sentimento fraternal por aquilo. Em verdade, minha capacidade de amar era incerta e questionável. Qualquer sentimento bom que um dia havia me habitado fora obra da minha mente infiel e traiçoeira; a maior parte de mim, e a qual eu menos confiava. E, embora eu estivesse consciente disso, compreender esta verdade não me fazia feliz. Fui tão maltratada pelos meus sentidos que, mesmo em guerra, sempre desejei ter paz. Amar seria cumprir meu ciclo, uma razão infalível para os artifícios da mente. Não que eu quisesse amar aquela criatura, eu apenas queria ter a certeza de que podia amar. Não me esforcei muito para isso, entretanto – ou para qualquer outro fim mais. Observá-los era doloroso e a dor era inconfundível. Eu não tinha mais motivos para nada, menos ainda para ser o pouco que era.

Eu me encolhi na armadilha do seu mundo, alimentando e consumindo a fúria que aos poucos brotava. A lembrança da ausência que meu futuro reservava, minha rejeição prematura, a frustração amarga e a revolta me paralisaram. Mergulhei em meu esconderijo e nele me perdi para que pensamento algum me encontrasse.

Eu havia, pela primeira última vez em toda minha existência, me cansado de existir. Mesmo a atenção dela não me valia mais de nada. Ela foi reduzida a nada. Eu não queria estar com ela. Eu precisava estar longe. Suas lembranças me sufocavam. Os vestígios da sua traição espalhados pela casa me engasgavam. Por muitas vezes, aliás, a solidão foi um alívio; mas nunca uma escolha. Nunca coube a mim decidir e isso ainda não havia mudado. A chegada da sua nova cria me sepultou e a mim restou apenas contemplar minha impotência.

Impregnada em meu esconderijo, a escuridão me arrastou de volta ao vazio e o silêncio do exílio tratou de varrer o tempo para fora do sótão. A vida acontecendo lá fora e a morte aqui dentro. Foram tantos os anos passados, que me perguntava como eu poderia ainda estar ali. Por um momento cheguei a acreditar que a eternidade pudesse ser possível, até que despertei.

Catarina H F Rezende
Enviado por Catarina H F Rezende em 14/06/2016
Reeditado em 26/07/2018
Código do texto: T5667222
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.