Confinado

Todos nós temos nossos sonhos, nossa meta, nosso coelho branco a ser perseguido. Buscar nossos sonhos é o que nos mantém vivos; maldita natureza que nos fez eternamente insatisfeitos, correndo atrás de borboletas feitas de bolhas de sabão que somem em nossas mãos e apresentam novos desejos. Alguns os alcançam; outros passam a vida sem nem chegar perto; outros, depois que os alcançam, não sabem o que fazer depois. Muitos que alcançam sossegam, definham, esquecem das emoções; outros procuram novos desafios. Alguns estabelecem objetivos impossíveis de conseguir, como justa desculpa de continuar vivendo. E tem aqueles que se perdem depois de realizar seu sonho, não sabem o que fazer com o coelho em sua boca. Creio que me encaixo neste último perfil, mas de alguma forma, contra a minha vontade. Vou lhe contar, pois já não tenho muito o que fazer e nada a perder. Espero que sua paciência seja longa, pois eu tenho tempo de sobra.

Desde que recordo de minhas primeiras lembranças - eu não saberia precisar a data - a música se fez presente em minha vida. Não sei se por influência do meio ou alguma falha genética, mas alguns acordes musicais ficam gravados em minha mente, trazendo diversas lembranças. Dizem que nosso sentido mais ligado à memória é o olfato, mas eu discordo. Basta eu escutar uma música e lembro onde estava quando a ouvi pela primeira vez, o que acontecia a minha volta, pessoas que estavam comigo, etc. Não posso dizer que tenho uma memória fotográfica, acho que seria mais como uma memória fonográfica. Com essa característica, seria óbvio que eu teria facilidade de aprender algum instrumento musical. Porém, a vida não é feita de obviedades. Quisera eu ter um ouvido absoluto para reconhecer notas musicais assim que as ouvisse, mas não era isso que acontecia. Eu ouvia a música, mas não era capaz de reproduzi-la.

Apesar desse meu gosto, nunca tive muito incentivo por parte de meus pais para me dedicar à música. Não era uma coisa que iria me sustentar, eles diziam. Se eu não podia reproduzi-las, contentei-me em escutá-las. Cresci em uma época em que não havia tanta facilidade para acessar músicas diversas. Tinha que me ater ao que tocava no rádio. Mantinha sempre uma fita cassete preparada no pequeno microsystem que tinha no meu quarto para apanhar aquela música que tanto gostava e poder reproduzi-la sempre que quisesse e não precisar ficar contando apenas com a boa vontade dos dj’s. Claro que ficava limitado aos sucessos comerciais; vez que outra tocava algo diferente. Era sofrível viver assim.

Depois de começar a trabalhar e me desvincular das orientações paternas, decidi dedicar o tempo livre que tinha, entre o trabalho e a faculdade de engenharia da computação, a aprender a tocar um instrumento musical. Influenciado pela cena musical da época e pela facilidade de acesso escolhi o violão. Comprei o instrumento e foi uma decepção terrível. Imaginei que faria um som mais harmônico quando o pegasse e tocasse as cordas. Claro, não sabia nada de afinação ou acordes. Peguei algumas revistas que mostravam o acordes das músicas e tentei reproduzi-los. Outro fracasso retumbante. Pensei que estaria fadado a ser sempre o ouvinte e nunca o criador e reprodutor da música. Pensei em largar essa coisa de música, retrair-me e aceitar que virar mais um trabalhador de cubículo seria o final perfeito para a vida medíocre que levei até aqui. Mas tinha essa sensação, de que a música fazia parte de mim. Queria poder compor e, nas músicas que criasse, sentir o arrepio nos pelos do pescoço que sinto quando ouço uma música que aprecio. Não sabia exatamente o que alcançar com isso; talvez, influenciado por uma corrente psicodélica dos anos 70, achava que me conjugaria à música em uníssono e viraria uma ser harmonioso celestial. Não queria fazer sucesso, mas confesso que esperava que isso viesse com o tempo. Pelo menos não era minha intenção inicial.

Insisti e continuei treinando. Abandonei a todos para dedicar todo meu tempo livre à música. Estava obstinado a atingir meu objetivo. Minha vida não seguiu a mesma linha. Formei-me na faculdade com certa dificuldade, pois tinha cabeça apenas para outra coisa. Enfiei-me em um emprego mecânico, com salário abaixo do mercado, mas com horário reduzido para ter mais tempo livre. Meu único relacionamento era com meu violão. Passava horas e horas com ele junto de mim, quase sentia-o como uma parte de meu corpo. Meus dedos calejaram, minha mente, sintonizava em notas musicais.

Foram anos assim, e aos poucos aquilo começava a fazer sentido, tudo se tornava tão lógico, perfeito e matemático. O ressonar das notas, aos poucos, ficava reconhecível, tudo se encaixava, tudo era harmonioso. Após 6 anos de dedicação, chegou o momento para o qual tanto eu treinei e tanto esperei. Dominava a técnica musical após anos de treinamento e estudo. Juntei um pouco de dinheiro e comprei uma guitarra para conectá-la ao computador e começar a gravar minhas próprias músicas. Agora bastava utilizar todo este conhecimento e habilidade para criação. Bastava… como se fosse simples e óbvio. Mas se a vida não é feita de obviedades, por que a música seria?

Finda uma batalha, iniciava outra. Como utilizar toda esta habilidade para composição? Sabia combinar as notas, criar melodias, mas nada me agradava. Empilhei composições em minha mesa, sem ter uma que me permitisse algum suspiro. Voltei aos estudos e durante 3 anos, compus diversas melodias, com letras banais, a meu ver. Sonhava em versos, mas todos ruins. Nada que me satisfizesse.

Minha vida pessoal ia de mal a pior, não me fixava em um emprego, sempre alternava entre meses desempregado, outros meses em algum subemprego. Mal ganhava para viver em um pequeno quitinete em um dos bairros mais perigosos da cidade. Tudo isso devido a minha fixação com a música. Começava a desconfiar que tudo não se tratava de uma maldição. Penso eu, que se eu tivesse me convencido naquele momento, estaria livre agora.

Foi golpe do destino (ou do azar) o que veio a seguir, formando um turbilhão de eventos, que mal consegui assimilar. O último subemprego que tive foi em uma lanchonete fast-food. Infeliz eu era, obviamente, como todos que trabalham nisso. Evitava o contato da maioria dos colegas e não tinha muita habilidade com o público, por isso, fui designado para a faxina da cozinha, tirar lixo, limpar banheiros, etc. Serviço mecânico que mantinha minha mente em coisas mais importantes e longe de todos. Durante uma folga para almoço, estava com fones de ouvido, tentando pensar em uma letra para uma melodia que tinha composto na noite anterior quando fui chamado pelo meu chefe em sua sala. Esperei terminar a música, deixei meu celular com os fones na mesa da cozinha e fui ver o que ele queria, sabendo que em breve teria que procurar outro emprego - de certa forma, meu jeito quieto não agradava as pessoas; até os assustava. Não soube eu que havia deixado os fones de ouvido mal encaixados. A próxima música começou e inundou o ambiente. Quando retornei da sala do chefe, cabisbaixo, já pensando qual próximo emprego me esperaria, notei uma roda de funcionários em torno do local onde eu estava sentado. Um frio percorreu minha coluna e pensei que iria desmaiar ao sofrer uma pequena tontura. Senti-me como um ladrão que é pego em flagrante, mesmo sem saber o que tinha feito de errado. Abri espaço entre as pessoas, com vergonha de todos, por ter exposto algo tão ínfimo, peguei meu celular e dirigi-me para o vestiário dos funcionários. Achei ter ouvido algumas vozes de protesto, mas minha mente estava em um turbilhão de pensamentos negativos que não dei atenção; segui minha caminhada decidido. Enfiei-me na sala e fui até meu armário. Em seguida um colega entrou, o Matias, um dos poucos que eu troquei algumas palavras além de cumprimentos matinais. Ele era carioca, então, não quer dizer que ele tinha alguma afeição por mim, apenas ele era simpático e agradável com todos.

O que era aquilo que você tava ouvindo?

Nada.

Nada não faz barulho, que música era aquela?

Nenhuma importante.

Qual o seu problema, por que não quer compartilhar isso conosco? Eu sei que você é bem fechado, mas por que não falar disso?

Por que tu quer saber? - respondi de forma inquisidora, esperando que viessem críticas e alguma gozação.

Em todos estes anos, nunca havia revelado nada que criei para ninguém. Gravava meus sons com guitarra plugada direto no computador e com fones de ouvido para não perturbar os vizinhos - coisas que quem mora em prédios de baixa qualidade, com paredes de grossura de papelão sabe como é.

Calma, calma. Por que toda essa agressividade? Vou contar uma coisa. Aqui na loja temos pessoas que gostam de pagode, de funk, de sertanejo, de mpb, de rock e até acho que o Jonas é chegado em música erudita. E, a única vez em que todos concordaram em questão musical, foi ao ouvir essa música que tava no seu celular.

Pude jurar que vi um riso falso no canto da boca do Matias, não sei se foi alguma ilusão gerada pelo estresse dos eventos, mas eu tinha certeza de que tudo que ele falava se tratava de uma imensa piada de mau gosto. Seguia arrumando minhas coisas para dar o fora dali o mais rápido possível. Ele viu que eu não lhe dava atenção, mas insistia.

Vamos, cara. Qual é o galho?

Segui em silêncio, arrumando minhas coisas. mas ele não desistiu.

Estou te implorando, me diz que banda é essa.

Percebi que ele não ia desistir da brincadeira e resolvi terminar com a história para poder sair dali o quanto antes.

É minha, tá? É minha música. Eu que compus e gravei. Pode falar para os outros e rirem dessa atrocidade.

Ele ficou perplexo. Passei rispidamente entre ele e a porta do vestiário e dirigi-me para a saída de serviço. Todos já tinham voltado a seus afazeres laborais. Achei que teria uma comitiva em frente à porta do vestiário, como se estivessem preparados para uma festa surpresa com zombarias. Pude ouvir Matias, às minhas costas, pedindo que eu o esperasse, mas não dei atenção. Cheguei à rua e fui direto para casa.

Naquela noite, ouvi um barulho estranho ressoando na casa. Demorei um pouco para perceber que era uma campainha. Era a minha campainha. Eu não sabia qual era o som dela, pois nunca havia recebido visitas naquele pardieiro em que eu morava. Meus pais nunca se aventuravam naquele bairro e eu preferia assim. Fui até a porta, um pouco confuso, sem saber muito o que fazer. Abri uma fresta da porta e vi Matias no corredor.

O que tu tá fazendo aqui? - disparei imediatamente.

Mermão, eu preciso falar com você sobre aquela música.

Tu tá de brincadeira. - respondi fechando a porta. Ele a segurou e se botou a falar.

Não faça isso, você tem um dom, aquilo foi demais. Não estou brincando.

Hesitei. Creio que ninguém se prestaria a levar uma brincadeira tão longe. Mas mesmo assim, não conseguia acreditar que alguém gostasse de algo que eu havia criado. Ao perceber este momento de dúvida, Matias aproveitou e se enfiou em meu apartamento.

Vamos conversar, mas antes eu preciso te ouvir.

Mas o que eu não tenho nada para te dizer.

Não, pamonha, sua música, aquela que estava no seu celular. Não vai dizer que você me mentiu.

Naquele momento decidi deixar tudo na mão do destino. Não ia mais fazer força contra a maré nem a favor.

Tudo bem, é minha música, fui eu que criei a melodia, mas não fiz nenhuma letra ainda.

Mermão, eu sempre te observei nos intervalos do trabalho, ouvindo música no seu celular. Sempre achava que você estava ouvindo preces de um culto satanista e que um dia chegaria vestido com um manto negro e uma metralhadora e mataria todos do trabalho.

Ele dava risada enquanto eu o observava perplexo com o que as pessoas deduzem dos outros. Permaneci em silêncio.

Espera aí - ele prosseguiu - não vai dizer que era isso mesmo?

Um leve riso escapou entre meus lábios. Ele também riu e continuou.

Ae mermão. Vamos lá, quero ver o que você tem para me mostrar.

Seguiu a maré; resolvi abrir meu repertório para ele. Desde músicas completas, com melodia, letra e arranjo até projetos inacabados. Não sei como descrever a empolgação dele. Por vezes caminhava de um lado para o outro, dizendo que não acreditava naquilo, que deveria ser alguma cópia. Chegou a usar um aplicativo do celular para tentar identificar algumas músicas, mas obviamente sem sucesso. Eu não conseguia entender como alguém poderia se empolgar tanto com algo que eu abominava.

****

A parte difícil havia passado, depois daquilo, tudo aconteceu muito rápido. Matias conhecia uma pessoa, que conhecia outra pessoa que tinha contato com uma gravadora. A maré seguia me levando pela mão de um canto para outro. Chegava em algum lugar desconhecido e alguém dizia, “toque alguma coisa” e eu tocava. Havia uma certa unanimidade, todos adorava aquilo que eu desprezava. Não vou entrar em detalhes, mas logo já havia a proposta de eu lançar meu primeiro disco. Eu tinha milhares de bytes em canções próprias gravadas no meu computador e foi uma tarefa horripilante escolher 13 para compor meu primeiro lançamento. Deixei a cargo de Matias, que ficou maravilhado com a tarefa.

O disco (na verdade, o CD) foi lançado. Teve todo um trabalho de marketing e jabá que foi bancado pela gravadora - eles realmente gostaram de mim - que levou o meu trabalho direto para o primeiro lugar das paradas musicais. As vendas dispararam; o dinheiro começou a entrar. Meus pais não acreditaram quando contei tudo que havia acontecido. Pareciam felizes, mas senti uma ponta de descontentamento por ter escolhido uma carreira tão insólita.

Não precisava mais me arriscar em subempregos, estava ganhando dinheiro para criar músicas. Mas com o que eu já tinha criado nos anos anteriores, tranquilamente dava para lançar um CD por ano pelas próximas três década. Mas dentre toneladas de acordes gravados, não havia uma melodia sequer que me agradava. Pelo menos, agora eu teria mais tempo para tentar atingir meu objetivo: me satisfazer.

Convites para fazer shows eram centenas, mas negava todos. Não conseguiriam encarar uma plateia. Me sentiria um político corrupto, apresentando algo em que não acredito. Ganhei fama de artista difícil e recluso. Para mim, estava ótimo.

Passei o restante da minha vida ainda perseguindo este coelho invisível sem nunca chegar perto de alcançá-lo. Sentia-me como o Pestana naquele conto do Machado de Assis, sempre infeliz consigo, mas um sucesso com os outros. Foram anos e anos compondo e nada me satisfazendo, até que fatídico destino trouxe o acalento final a todos estes anos de insatisfação. Venci os 27 anos mas não passei dos 43. Um AVC me venceu. Nos meus últimos momentos no hospital, sabendo que o fim se aproximava, senti alegria por finalmente descansar, mas triste por nunca ter atingido aquele objetivo que havia me imposto. Deixei algumas músicas inéditas, para a alegria de meus produtores, que continuaram a encher os bolsos de grana mesmo após a morte da galinha de ouro. Como não esperava morrer tão jovem, não fiz nenhuma preparação para minha morte. Meus pais acharam que seria de bom gosto, um enterro simples, em um buraco no chão. Penso o que teria acontecido se tivesse sido cremado. Pois o que me acontece todos os anos, eu não sei explicar. No dia do meu aniversário, diversos fãs carentes vem ao meu túmulo tocar minhas músicas. E eu sempre desperto para sofrer todo meu calvário novamente. Ao menos, agora, não tenho mais pelos no pescoço.

Sitrucian M
Enviado por Sitrucian M em 04/02/2017
Código do texto: T5902637
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