Espírito Santo Enfurecido

"Não sei por que é tão distante e inacessível o porto da paz, do amor, da felicidade!" - indagava o canoeiro Santo.

"É por que a ignorância é uma prisão, mas nem todos querem viver sob o domínio da liberdade democrática". - rebatia sua consciência, que também pode ser chamada de Espírito.

A melhor forma, a maneira mais subjetiva, mais sublime de exercer inteligência é sendo perceptivo. Por falta de percepção, morre o lobisomem, morre o gato, morre a jararaca, morre o rei da selva, morre a iena, morre a barata, morre o elefante, morre o dono do mundo, morre a insignificância do Homem.

Longe, bem longe, vinha a multidão. O furacão devastador desce rodopiando. Endemoniado. Uns altos, outros baixos. Negros. Brancos. Mancos e coxos também. Bronzeados e albinos com perucas vermelhas. Havia inteligências para todos os gostos. Ao ouvir o disciplinado séquito, deu meia-volta e escondeu-se numa moita. Entocado roendo as unhas, ficou espiando feito bicho-do-mato. Assustado feito cão sem dono; como cachorro babando enlouquecido sob o espetáculo pirotécnico. Os dias e as noites se alternavam entre escuridão e luzes. Incêndio e golfadas de água. Tapou os olhos. Firme, obstinado, o tropel dos bate-palmas, bate-latas e manda-paus pisoteava as folhagens. Impossível contar quantos!

Soltando fogo pelas ventas, um bando urrava daqui. Outro berrava de lá. Um queria uma coisa; outro reivindicava outra. Mas em verdade, o bando de cá se unia-se ao bando de lá para formar o todo, porque a união faz a força. E a força representa a conquista. Palavras de ordem ribombavam, comprimiam-se procurando lugar no espaço. Silenciavam de vez em quando. Esquisito silêncio; e parecidas bumerangue, retornavam de instante em instante. Ao retornar, a turba arrepiava os cabelos, franzia as testas, fechava-se em copas e o impropério de palavras estava de volta à Terra. Patas afiadas. Operante. Irada. Raivosa: "cerca daí, que eu rebato daqui. Quebra daí, que eu destruo daqui. Rói, fura, saqueia o saco, amigo Paco".

- Dá na canela... na moleira... "no imbigo"... na medalhinha de São Expedito! Suma com o sentinela, Miguelito. - heroicamente bradavam os coadjuvantes da balburdia.

Bem mandado, Miguelito não só fez o solicitado, como passou a mão num boneco que estava vestido na vitrine. Despiu-o e mandou os restos mortais na rua. Ao cair estatelado no meio fio, a cabeça e o resto do corpo se dividiram em dois. Trêmulas, agonizantes, suas pernas sambavam; pedalavam no ar. Caíram desfalecidas. Era o fim do manequim; nunca mais seria atrativo para os olhos dos andantes. A cena arrancou aplausos e assovios da turba. Não contente, gritavam em uníssono: "Judas, Judas, Judas, pau nele! Venham todos à malhação de Judas, o traidor... Levado ao hospital, a família espera pelo laudo do IML para saber a causa-mortis.

Passado a procissão da discórdia, ou a doideira do Espírito Santo, fato que não ocorreu em horas, muito menos em dias, os cães saíram das locas rastejando. Trôpegos, os gatos lamberam a sujeira do rebuliço. E entre o alívio, o corpo dolorido pela posição incomoda, a fraqueza devido à falta de sódio, açúcares, vitaminas, sais minerais na corrente sanguínea, ainda ressabiado se voltariam mais tarde, quem conseguia pensar, indagava com o vento chamado absurdo, um senhor vivido que conhecia bem àquelas paragens e contribuía com o rescaldo, com a contagem do que sobrara, querendo saber dele se por onde segue, caminha a humanidade, teria que andar na contramão, em sentido contrário, pois a maioria, ou todos sempre e invariavelmente detém a razão.

O cordão do Espírito Santo está sempre certo. O erro pertence somente à alguns e naquele instante, somente a ele, pois a democracia foi estudada por longos anos pelos Gregos, para quando implantada, servir o povo, ser útil na inter-relação, dirimir e propor meios de convivência justa e igualitária entre a maioria; e não entre todos.

Retirou as folhagens verdes que o cobria. Sacudiu o corpo, eliminando os pingos de ignorância ocasionada pela

poeira e seguiu viagem. Queria e muito, que o Espírito Santo cobrisse aquele povo, mas com a guerra da paz; porque de atitudes corretas, de conquistas suadas, de Vitórias impostoras, de leis estapafúrdias e amor aos berros, pauladas, pedradas, amotinação, gás lacrimogênio, balas de festim e muito sangue derramado desnecessariamente, bastava o que ele vira.

"Que essa multidão que acompanha o Espírito Santo, que tudo exige e nada oferece, permaneça nas trevas, mas ao menos, tenha discernimento e sabedoria para distinguir, a guerra da paz; bem como, diferenciar o que é a luz do trigo e o joio das trevas.

A ignorância é uma prisão, disto ninguém oscila pendurado no pêndulo da dúvida. Mas, por saber e conhecer os direitos do que é viver em liberdade, deleitando com as leis imperativas da democracia, a sábia matilha que se auto-qualifica como pertencente ao Espírito Santo, ataca em bandos. Certos espécies animais são covardes e nunca atacam sozinhas; mesmo porque os instrumentos de uma banda de música são tocados por um bando...

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 09/02/2017
Reeditado em 10/02/2017
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