Redenção às avessas

Dia com céu ensolarado. À tarde ventos intensos.

- Boa tarde, Dama! - A moça empinou o nariz.

- Boa tarde, Cavalheiro! - O moço virou a cara para o outro lado.

- Boa tarde, Vacante!

- Uau, uau, uau! - e após cheirá-lo, o rabo parecia um alegre para-brisas. Tendo o focinho cofiado por duas mãos intrusas, ficou por ali mesmo. Desanimou de ir para casa.

Fora Vacante, apenas o céu o ouviu. Trovões ribombavam. Relâmpagos desenhavam riscos de fogo. Como previsto no dia anterior, ameaça de chuva.

O Bicho que desejava boa tarde aos transeuntes berrou em resposta aos ruídos ameaçadores de chuva: "Uma boa tarde e educação não estupram mulher e homem nenhum; agora, a falta dela, o orgulho, a empáfia, o engradecimento, a soberba, a falta de escrúpulo e a ignorância, sim!"

E foram, tanto ele, como Vacante procurar abrigo na loca debaixo da ponte. Local barulhento. Diferente da metereologia que comete lá seus erros, o ambiente era desrespeitoso com o diálogo dos civilizados.

À noite, a barulhada danada de chuva se juntou ao local, mas ficou nisto. Os barulhos e riscos de fogo da chuva foram dormir com o boa noite do Bicho; menos os desrespeitosos e intensos ruídos do local. Não admitiam e pelo rodar da carruagem, manterão a palavra de não admitir, uma ou muitas boas-noites!

No dia seguinte, de um salto desengonçado, Vacante pulou dos aposentos e caiu cedo na aragem. Estava atrasado para a viagem à floresta, acontecimento que ficara sabendo pela boca do Bicho. Teria que chegar cedo para pegar o ingresso que o credenciava a participar do simpósio: "Final da Empatia e o início do estupro coletivo da bicharada".

O Bicho era um bicho comum, daqueles que dizem ser de carne, racionalidade, político e ossos, mas seu semblante mudou da água para o vinho, ou melhor, do dia para noite, quando remexendo as quinquilharias que depositam nas esquinas das ruas, uma folha que sobrevivera aos ataques e derrames de lixo, escrita sobre o resumo do livro "Ensaio à Cegueira", do português, prêmio Nobel de Literatura, José Saramago. Após lê-lo, nunca mais voltou ao normal. Foi a redenção às avessas ao que prega o conteúdo do livro.

Como explica a professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva:

"... esse Ensaio sobre a cegueira pode ser lido inversamente como um ensaio sobre a visão. Esses cegos chegaram ao fundo do poço de onde puderam ver surgir suas fraquezas, sua arrogância, sua intolerância, sua impaciência, sua violência, a monstruosidade dos universos concentracionários. Mas assistiram também à sua própria força, à sua solidariedade, à sua generosidade, ao seu espírito revolucionário e à revisão de seus próprios preconceitos. Este, repito, é um ensaio sobre a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus clichês, da verdade, do poder e até dos gêneros literários nesse romance que, como se sabe, se quer ensaio. Porque este não é tão-somente um romance cujo assunto é a cegueira, mas também um ensaio entendido como experiência, experimentação que revele a possibilidade de enxergar para além das aparências, para além dos seus próprios limites convencionais." (SILVA, 1999: 294)

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 08/04/2017
Reeditado em 08/04/2017
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