Identidade perdida: a metamorfose da guerra

"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe." Oscar Wilde 

"Escrevia-a com a pena da galhofa e atinta da melancolia,e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio." Machado de Assis 

Na noite abafada e brilhante do dia 31 de Dezembro de 1999, nascia um pequeno bebê (pequeno mesmo) em um hospital do Paquistão. A hora foi 23:59…não, assim não. Para ser mais preciso, ele nasceu 00:00. Ou seja: nasceu no ano-novo (ou seria no ano-velho? Dúvida, não?) O frágil bebê chorava muito, muito, muito…e, nesse momento de gritos e lágrimas, seu pai lembrou-se da célebre frase do filósofo persa Rumi: “Choramos ao nascer porque entramos neste mundo agitado, barulhento, triste e solitário.” Falta uma coisa. O nome do menino: Mohammed Said Ali. No instante em que ele surgiu no mundo, as linhas do destino se entrelaçaram com a vida do pequeno bebê. Os olhos dele se combinavam com o céu noturno como se o tecido negro do universo estivesse dentro de seus pequenos olhos…enfim: ele era especial.

O menino dos olhos negros cresceu, mas continuo frágil. Na escola, ele era proibido de praticar as atividades físicas. Porém, existia um lugar que compensava (compensava e muito) a proibição: a biblioteca. Assim, ele mergulhava nos livros de história, filosofia, política, ciências…todo tipo de livro chamava a atenção do garoto. Todavia, dentre muitos, o preferido de Said era a coleção de histórias chamada “As Mil e Uma Noites.”

O mundo rico e complexo de histórias, todas entrelaçadas pelos fios mágicos de Xerazade, o encantava desde muito cedo, quando seu pai leu para ele a história de Alladin. Depois de escutá-la, ele sonhou que um dia poderia viajar pelo mundo, lutar contra a injustiça, conquistar corações, tudo isso e mais, apenas utilizando um tapete mágico – como Alladin. Ele queria viajar pelos mares, pelos lugares misteriosos, desconhecidos, como Simbad, o Marujo; ou conhecer os 40 ladrões e Ali Bába. Enfim, queria conhecer, experimentar, sentir - tudo.

Porém, o livro que mais influenciaria sua vida seria: “O poder das palavras”, escrito pelo filósofo persa, Avicena (que Allah o guarde e o proteja.) A obra era magnífica: explicava o poder, esmagador, que as letras, as palavras, possuíam. O livro relatava as diversas revoluções ocorridas através de escritores fracos e frágeis (fisicamente, é claro.) A obra ensinava, também, como a escrita mostra, explica, quem somos. Quem sou eu? Existe apenas o “eu”? Ou são vários “eu-s” que coexistem dentro de mim? Essas eram algumas perguntas que o livro indagava. Said ficou encantado. Daí em diante, ele sonhou que seria um escritor: um mestre das palavras.

As condições da família de Said Ali não eram muito favoráveis. O seu pai, Mohammad Ali, trabalhava como mercador nas feiras do Paquistão, vendendo roupas feitas por sua esposa – mãe de Said – Ayasha Ali. Porém, as vendas quase sempre não davam lucro. Assim, Said e sua família passavam enormes dificuldades. Uma delas era a educação: Said estudava em uma escola pública que ficava uns 20 quilômetros de sua casa, e quase sempre faltavam professores.Assim, ele compensava essa lacuna com idas regulares à biblioteca. Enquanto isso, os “mais favorecidos” estudavam em escolas onde professores não faltavam; onde a alimentação era abundante e, mais importante, ficava uns 200 metros de suas casas. Mas Said se dirigia à escola feliz e alegre (ele agradecia a Allah por sustentá-lo todo santo dia.)

                                   

O sonho do pequeno e frágil garoto do Paquistão crescia cada vez mais: ele, a cada dia, descobria o poder que as palavras possuíam. Ele queria usar as letras para ajudar os oprimidos, os fracos, as mulheres que sofriam agressões de seus maridos, as crianças que eram obrigadas a se casarem com homens infinitamente mais velhos…ele queria ser um herói para o seu país. Para isso, todo dia ele lia e escrevia, freneticamente. O menino, mesmo aparentando ser frágil, era muito esforçado. Ele gostava, além de escrever, de estudar a história de sua religião – o Islã. Ele e sua família se dirigiam, toda sexta-feira, à tarde, à mesquita mais próxima de sua residência para realizar orações à Allah (o misericordioso, o misericordiador.) A religião era sua força.

O único lugar em seu país, que era possível estudar literatura ou letras, era a magnífica universidade chamada “Casa do Saber – o lar de Avicena.” A instituição era belíssima: sua arquitetura foi construída matematicamente (com perfeição dos deuses.) As cores que a formavam eram branca e verde e seu nome pendia, logo acima da entrada principal, em letras douradas – da cor do sol – atraindo a atenção de todos que passassem por ali. Além disso, a Ágora-Árabe detinha os melhores professores e estudiosos de todo mundo. Contudo, dentre esses, um se destacava – aquele que dava nome à instituição: Avicena, o apóstolo da razão. Esse estudioso trouxe contribuições para muitos campos de conhecimento humano: astronomia, psicologia, geografia, filosofia, medicina…são muitos!

Said Ali ficou encantado com a instituição e, doravante, passou a se dedicar para o ingresso. Os exames de admissão ocorriam anualmente – mais precisamente nos dias 25 e 26 de Novembro. As provas de admissão estavam relativamente próximas. Ele tinha que correr contra o misterioso tempo. Logo, passou a estudar dia e noite (mas, você sabe que ele já fazia isso antes mesmo de querer ingressar.) Contudo, ainda se dirigia, com sua família, para as orações nas sextas-feiras. Não podia abandonar seu grande senhor dos mundos, Allah. A mesquita o encantava desde pequeno. Os raios solares que atingiam os ladrilhos coloridos e produziam uma espécie de “mini-arco-íris” no chão, fazendo da mesquita a morada do deuses (ou apenas de Allah.) Ele se sentia no céu…

                                   

Passando alguns dias (ou diria, meses) finalmente os exames de admissão chegaram. Entretanto, não devemos nos preocupar: Said estava mais do que preparado. Ele pegou os documentos, os materiais, as roupas, tudo que era necessário e se dirigiu para a universidade – as provas eram realizadas na própria instituição (isso dava uma inspiração para o pequeno muçulmano.) Andando até o local da prova, Said foi inundado por indagações: “Serei um bom escritor?” “O que hei de escrever, qual tema, assunto?” “Será que Avicena gostará de mim?” Essas perguntas que qualquer principiante faz a si mesmo. Ele passou pela feira do Paquistão – a principal feira – de cabeça baixa, pensando, até chegar ao local da prova. As provas eram realizadas em uma sala especial, denominada simplesmente como “Sala de provas.” Said mostrou sua identidade ao aplicador das provas e entrou; sentou-se na primeira cadeira. Os exames de admissão seriam aplicados a uns 3 ou 4 minutos.

Os minutos logo passaram e ele começou. A prova era, visivelmente fácil; além do mais, ele estudou muito. A fez sem dificuldade: foi o primeiro a terminar e sair da sala. Ele saiu da universidade confiante. Passou pela feira muçulmana com um sorriso tão brilhante como a luz das estrelas. O brilho que seu sorriso emanava refletia nos objetos metálicos que os comerciantes estavam vendendo, fazendo do lugar um mar de sorrisos: um mar de felicidade. Ele chegou em casa e seus pais perguntaram se ele fora bem; e ele responde, convictamente, que sim: “Excelente!” Agora, bastava esperar 5 dias até que o resultado de todas as provas fossem enviadas às casas dos estudantes. Eram 5 dias que não passavam, eternos. Contudo, para o pequeno Said, não era problema.

À noite, Said entrava no reino dos sonhos, onde tudo podia acontecer; onde tudo podia ser visto, imaginado, falado, pensado. Nesse mundo tudo se misturava: o possível e o impossível, o bem e o mal, a verdade e a mentira…enfim, tudo. Ele imaginou seu futuro como escritor. Ele sonhou como seria sua vida, futuramente. No sonho, inesperadamente, todas as personagens religiosas da história – Buddha (o “desperto”), Yeshua (Jesus,“O Rei dos reis”), Mohammed (o “Recitador”) e muitos outros que, aqui, ficam indescritíveis, convivam em harmonia – em paz. Said imaginou o quão bom isso seria. Porém, ele sabia que, na prática, isso dificilmente ocorreria.

                                 

Os resultados chegaram pelo correio paquistanês pela manhã. A mãe de Said entregou o resultado (na verdade, era uma carta que continha os resultados.) Ele a abriu e sem surpresa: tinha passado, facilmente. Agora tinha que organizar os documentos para levar à universidade para fazer sua matrícula. Depois disso, ele e sua família se dirigiam para a instituição: todos muito felizes. Afinal, não tinha recursos para pagar uma instituição particular para o pequeno e frágil filho - “o menino dos olhos negros”- como o dirigente da mesquita gostava de chamá-lo. Eles chegaram e fizeram a matrícula; depois foram para casa descansar: afinal, fora um dia corrido. As aulas seriam ministradas depois de 2 meses após a matrícula e Said estava mais que ansioso.

                                   

Em lados opostos do globo terrestre, duas organizações – digamos, criminosas – estabelecem planos: um, para atacar; outro, para se defender (ou, atacar, também.) As duas organizações chamam-se: Tio Sam e Qaeda - (“Base”, “Alicerce”.) As duas possuem poderes que, quando utilizados, podem produzir catástrofes. Na verdade, uma criou a outra: o Tim Sam criou a Qaeda. A organização islâmica foi desenvolvida graças aos ataques que Tio Sam realizava nas regiões Árabes, principalmente no Paquistão. Assim, criou-se uma corrente de ódio – terror— muito grande na maioria das pessoas. Contudo, o Tio Sam ganhava da Qaeda em número de pessoas. Logo, era necessário contratar mais pessoas para a organização Árabe – preferencialmente, jovens. A Qaeda mesmo proferindo um ideal justo, na realidade, era má em sua essência – afinal, fora construída sobre o ódio. O líder supremo da organização, Laden Bin, disse aos seus subordinados que deveriam recrutar jovens do Paquistão porque o lugar era o mais populoso entre os países árabes. Assim, foi feito…

Os membros da Qaeda arrumaram-se e partiram para o Paquistão – a organização localizava-se no Irã. Todos caminharam para o aeroporto clandestino com maior entusiasmo; afinal, ganhariam mais membros: tornando a ordem (como eles gostavam de chamá-la) mais forte e resistente. Ao entrarem nos aviões, eram muitos, a imagem de jovens sadios, inteligentes, fortes, que iam compor a ordem preencheu suas mentes como um sonho. Eles sonhavam, desde sempre, em acabar com a organização que destruiu seus sonhos: eles eram produto do rancor e do ódio.

Os aviões pousaram sem nenhum problema no aeroporto Mohammad Paquistã, o maior aeroporto do Paquistão. O foco, inicialmente, deles, era a majestosa “Casa do Saber – Lar de Avicena”. Eles pesquisaram bastante e concluíram que a instituição era, ou seria com o início das aulas, um mar de jovens destinados a “grandeza suprema da alma” como proferiam. As aulas iniciariam no dia seguinte, e eles estavam bem preparados para atingir a mente dos pequenos e frágeis seres daquela universidade e região.

                                             

O sol pendia no horizonte com sua luminosidade espacial e com seus raios majestosos afluindo nas casas dos Paquistaneses. Um desses raios capturou o jovem Said Ali e o fez acordar. Ele se levantou da pequena cama olhando para as nuvens com um olhar sonhador e um sorriso que o transformava, decerto, no garoto mais alegre daquele País. Hoje seria um grande dia: as aulas na universidade se iniciariam. Era preciso se apressar para não as perder. No primeiro dia, as aulas seriam sobre produção escrita, eloquência na fala, dialética e gramática Árabe – o essencial para qualquer escritor. Ele se dirigiu à cozinha para tomar sua refeição. Depois de comer, ele se arrumou, pegou seus materiais e foi para a universidade (não falou com seus pais porque estavam na mesquita.)

Said passou pelo tão conhecido mercado muçulmano olhando para tudo e todos. Porém, os mercadores estavam cabisbaixos como se alguma coisa estivesse vindo, do além-mundo, para o Paquistão. O jovem ficou pensativo diante dessa cena não-comum nas feiras, onde, todos os dias, havia danças, mulheres bonitas, mercadores gritando para lá e para cá – incessantemente. Mas, hoje, tudo ficou no mais profundo silêncio. Ele continuo andando até chegar no seu destino.

O Lar de Avicena estava com as portas trancadas e havia algumas pessoas em volta da instituição que ele não conhecia: usavam uns panos negros na cabeça, envolvendo o pescoço, e possuíam o olhar de morte, terror, pânico. Diante desta cena, o pequeno Said percebeu, intuitivamente, que aquelas pessoas não eram de boa índole; e resolveu caminhar de volta para sua casa. Contudo, suas pernas não se mexiam; era como se ele estivesse tomado por uma força externa mais forte do que ele, que o envolvia com braços e pernas, prendendo-o no chão. De repente, uma dessas pessoas misteriosas olhou para ele e começou a caminhar em sua direção. Um vento gelado percorreu todo seu corpo. O estranho chegou perto do frágil garoto e perguntou (ele falava Árabe): “Olá, meu jovem. Sei que está assustado. Na verdade, todos ficam quando nos veem. Mas não tenha medo: estamos aqui para mostrar a todos o verdadeiro caminho da salvação, da luta verdadeira, santa.” Said escutou essas palavras em silêncio; nem mesmo sua voz ousava sair de sua garganta: tinha medo. Ele perguntou, curioso como era, que caminho era esse de salvação. O estranho respondeu: “Ora, o caminho verdadeiro é a luta contra os porcos estrangeiros que querem pegar nossas terras. O Tio Sam, meu jovem, devemos lutar contra ele e destruí-lo: o caminho verdadeiro é a Jihad!”

A palavra que entrou nos ouvidos do frágil paquistanês o fez brandar. Afinal, ele conhecia muito bem esta palavra: Jihad, que significava “A guerra santa.” Porém, ele sabia que a Jihad não era o que o estranho disse; não era sobre destruir alguém: era o caminho para acabar com o mal que há dentro das pessoas para promover o bem. Ele tentou dizer isto. Mas quando as palavras iam sair de sua boca o estranho olhou-o com desaprovação e disse: “Chega de papo. Agora, venha comigo, juntos dos outros, para ser um novo membro da ordem.” Ele protestou.(Nesse momento, ele cogitou sobre onde estariam os policiais, as pessoas que cuidavam da segurança de seu país…será que todos sumiram?) O estranho o segurou pelos braços – ele se debatia desesperadamente. O homem misterioso não conseguia segurá-lo completamente; assim, chamou mais duas pessoas que estavam na porta da instituição de ensino. Quando os ajudantes chegaram, pegaram Said facilmente e o levaram para juntos dos outros, à força. Ele gritava muito. Said olha para os lados e viu que muitas casas estavam sendo invadidas pelos homens misteriosos. Eles estavam pegando muitos jovens. Said se desesperou…

O momento em que ele é puxado bruscamente pelos estranhos, ele vê seus sonhos, seus objetivos, tudo que ele imaginou para o futuro – suas alegrias, ganhos, feitos, tudo – se desprendendo dele como uma cobra que deixa a pele morta para trás. Como uma bomba que é jogada em um prédio que detona tudo e todos: transformando tudo em pó. Sonhos? Não, não…sonhos não existem neste mundo de guerra e sofrimento, onde os amores são quebrados, laços familiares destruídos, esperanças mortas. O mundo de Said Ali (e de tantos outros que as palavras não descrevem) tornar-se-ão um mundo de mortes, bombas – explosões – quedas de torres (especialmente gêmeas; eles, os estranhos de panos pretos, têm um gosto em acabar com coisas iguais.) Sua mente será moldada por ideologias metamorfoseadas; seu corpo será transformado em uma máquina de matar: será uma pessoa que vive para “acabar com os hereges”. Contudo, como isso ocorre? Como uma pessoa inteligente, um intelectual paquistanês, troca os livros pelas armas? Como se dá este processo?

A pequena história de Said Ali, mesmo sendo “ficção”, acontece hoje: crianças, adolescentes, adultos, ou qualquer tipo de pessoa, principalmente aquelas situadas em países conflituosos, começam a se transformar em seres estranhos, diferentes deles mesmos, moldados pelo exterior: pelos conflitos políticos e ideológicos. Jovens com sonhos destruídos, mediante a intervenção militar de países egoístas (como o chamado Tim Sam.) Essas intervenções trazem à tona um mar de ideologias escondidas que apenas esperam para serem libertadas.

O que nos molda? Aliás, melhor: nós somos moldados, influenciados, pelo exterior? Como? Ora, os acontecimentos, sejam eles bons ou ruins, nos transformam de um jeito ou de outro. Os bons exaltam nossa personalidade. Os ruins, tiram nossa identidade: nos tornam cegos-ideológicos. Como uma lagarta que saiu do casulo, Said Ali – e muitos outros jovens – revelam as depressões, sofrimentos, angústias, tudo de ruim, às pessoas que quebram o casulo à força. Nasce o novo-Said, ou novos eu-s: seres que obedecem ao sofrimento e a destruição. Nascimento? Não: criação. De agora em diante ele será um — “iirhab”: terrorista.

(À Said, meu caro amigo.)

dux Cheshire
Enviado por dux Cheshire em 27/04/2017
Reeditado em 27/04/2017
Código do texto: T5982316
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