Refúgio 2

As melhores lembranças são daqueles dias de feriados, ou finais de semana de inverno, de quando eu ficava sentada na janela do teu “quartinho de escrever”, imersa na história de um livro, ou perdida no brilho do sol refletindo nas águas do laguinho, e tu envolvido com teu novo romance. Talvez nem percebesse que continuava ali, fazendo companhia a ti, mesmo que fora do alcance dos nossos sentidos, perdidos cada um em seus afazeres, pois mesmo nos feriados tu não largavas teu trabalho. E eu gostava de ficar observando teu jeito, que desde o início, sempre me encantou tanto.

Então eu descia até a cozinha, fazia um chá pra nós dois, de hortelã, camomila e mel, que sempre fora um dos nossos favoritos, levava uma caneca pra ti, pra não atrapalhar teu trabalho. Deixava uma caneca quentinha do teu lado, com alguns biscoitinhos de e aveia, porque eu sabia o quanto tu gostava, e o quanto valorizava as coisas saudáveis. Foram sermões intermináveis até eu me render e começar a levar essa tua “imposição” de vida saudável. Claro, fácil não foi, já que sempre fui muito chata pra comida... mas hoje eu vejo o quanto essa mudança foi boa pra mim.

Então tu me olhavas, com aquele olhar terno, de quem agradecia pelo mimo, mas que não queria ser grosseiro ao pedir para o deixá-lo escrever sem perturbações.

Eu ti deixava só, descia. Sentava lá no jardim, no nosso banquinho, mas sem fazer nada de mais, ficava meditando um pouco, ouvindo o som do vento batendo nas folhas das árvores e o som da água do laguinho mexendo e batendo nos pilares do nosso pequeno deque particular, onde ficamos sentados por horas a fio, conversando sobre qualquer bobagem, ou planejando nossas vontades a serem realizadas, molhando as pontas dos pés na água, enrolados em um cobertor nos dias de inverno mais rigoroso.

Mais ou menos umas duas horas depois de eu descer o sol começa a se pôr, e eu sinto uma presença se aproximar e sentar do meu lado, no banquinho. Éras tu, que pela ausência dos óculos, indicava o final das idéias ou o cansaço por longas horas de trabalho. Tu me abraçavas, me acalentava com cuidado, pra não desmanchar meus pensamentos, que logo já estariam desfeitos, e eu estaria de volta à nossa realidade. E tu me aconchegavas nos teus braços, onde eu podia repousar minha cabeça no teu peito e escutar teu coração batendo pra mim, pela nossa presença constante dentro um do outro, sempre.

E ficávamos assim até sentir cansaço, e sentir vontade de entrar em casa de novo. Já estava escurecendo e o ar ficando mais gelado.

Nossos invernos sempre foram gostosos. Assistíamos nossos filmes favoritos, quantas vezes fosse possível, tomando chocolate quente e comendo pipoca, embaixo das cobertas. Quando no fim de um bom filme, surgiam as lágrimas, tu, como sempre, começavas a me fazer cócegas, pr’eu parar de chorar e não perceber que tu estavas engolindo choro também. Porque sempre quis se mostrar mais forte que eu. E nas cócegas, tu sempre ganhavas, porque era a forma de me fazer perder as forças e me entregar. Tu prendias as minhas pernas sentando nelas e segurava meus braços com as tuas mãos, então me maltratava a soprar minha barriga, o que mais me matava de rir, tirava minhas forças. E eu tentando escapar, coisa que era praticamente impossível, porque tu sempre (me) ganhavas. Então eu me entregar de vez, pelo cansaço, e fingia um desmaio. Adoro fazer isso e ver teu desespero tentando me acordar! Eu ria por dentro. Depois que tu me soltavas, levantavas, andavas de um lado pro outro, todo preocupado, que com certeza era fingimento, pois tu sabias que eu adorava fazer esses teatrinhos, eu entreabria os olhos devagar pra ver se tu estavas olhando, tu fingias não perceber e sentava do meu lado, ignorando totalmente aquele corpo fazendo-se de morto do teu lado. Ia se escorando em mim e aí sim chegava minha vez. Eu me vingava de ti pelas cócegas, e tu todo homenzinho, se fazendo de insensível às cócegas, até não agüentar mais e soltar aquela gargalhada alta, rouca, tão gostosa de ouvir, igual criança levada depois de aprontar alguma coisa pelas costas dos pais. Então segurava firme a risada e me segurava forte de novo, segurando meus braços com força, me imobilizando. Sempre adorei essas nossas guerrilhas de risadas e cansaço. E o jeito como tu me segurava pra eu parar, e a expressão do teu rosto ficando séria e terna, como tu olhavas fundo nos meus olhos, me fazendo parar de rir, devagar, mergulhada nos teus olhos, me vendo refletida nas pupilas negras e nas manchinhas castanhas que eu tanto gostava de olhar, pra imaginar desenhos, formas... tu ias ti aproximando do meu rosto, fechando os olhos e me beijando de leve, no meio das minhas risadas soltas, tentando não rir junto, até acalmar e pararmos de rir, e a respiração ficar mais forte e ofegante, e os beijos tão grandes, que se tornavam maiores que a boca. Sempre gostei desse teu jeito, de me envolver, de conseguir transformar meu choro tímido em riso solto, de me embalar e me proteger de qualquer medo, e me arrastar pra dentro de ti, sem ter mais vontade de sair. Do jeito que eu ti sentia fazendo parte de mim, de como nos tornávamos um.

Sempre gostei dos nossos finais de tarde, dos banhos demorados, passeios de barco pelo laguinho. Das idas ao cinema, ao teatro, pra assistirmos aquela mesma peça já assistida milhares de vezes. Os shows, os jantares com os amigos, os jogos de cartas e os papos sem fim, deitados à noite, na varanda de teto transparente do nosso quarto, brincando de encontrar constelações que só existiam pra nós.

Nossas formas diferentes que se encaixam. Nossos gostos, muitas vezes opostos. Desse teu jeito, que às vezes me parece indiferente demais, que me deixa intrigada, que me faz pensar horas sobre o que me tornei por ti, e o que tu ti tornaste por mim. Desse meu sufoco que é teu também, dessa falta de espaço pra quem quer crescer e viver. De encontrar pedaço do meu espaço em ti e querer que tu encontres o teu pedaço de espaço perdido em mim também.

Mas eu gosto ainda mais das lembranças que virão. Das histórias que faremos, e dos planos que realizaremos.

Essas lembranças que nos (me) vêm...

Gabibis
Enviado por Gabibis em 11/08/2007
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