"Barracão do Mal-Querer" = Outro conto escrito em 1982 e reencontrado agora.

   Ninguém se lembra mais de quando foi que Rosa apareceu na favela. Sabem apenas que foi uma das primeiras a montar ali o seu barraco. Séria, calada, bem apessoada, impressionava à primeira vista pelos imensos olhos verdes e muito tristes.
   Durante muitos anos viveu só no barraco, dos mais humildes, mas onde imperavam a ordem e a limpeza, um arrumação tão impecável que servia de exemplo para as vizinhas. Saía pela manhã, bem cedinho e voltava ao fim da tarde, com o pôr do sol. Disputada pelos homens, defendia-se com seu mutismo instransponível. Dela não se arrancava um sorriso, um trejeito comprometedor ou uma única palavra encorajadora.
  Um dia ela voltou acompanhada. O homem a quem se abraçava carinhosamente foi observado, julgado e analisado por centenas de pares de olhos assombrados:
- A Rosa! Quem diria...
- Sujeitinho à toa, tá na cara...
- Isso não dura nada, cês vão ver...
- Cara de cafajeste da pesada. Metido a bonitão.
  Os comentários femininos foram mais favoráveis:
- Rosa custou mas escolheu um tipão...
- Será que ela me empresta um dia desses?
- Gostosão que só vendo...
   Trancaram-se, Rosa e seu homem, no agora bem melhorado barraco, e de lá só saíam para comprar bebidas e comidas. No resto do tempo faziam amor, e em muitas noites os vizinhos dormiram embalados nos doces gemidos de Rosa.
- Pelo jeito o magrelo dá conta do recado até de sobra...
- Hoje a Rosa tá gemendo menos. O que será que ela tá fazendo?
- Acho que o cara é brocha. Tem cara disso...

   Rosa vivia um sonho de amor. Imersa em si mesma, vivendo só para o seu homem. O “homem da Rosa”, como passou a ser chamado, não precisou declinar seu nome, logo batizado de “o da Rosa”. Quando ela saía para o trabalho ele dormia. Quando ela chegava faziam amor. Uma lua-de-mel intensa, contínua e duradoura. Uma entrega mútua total. Uma para um, um para uma todas as noites, várias vezes por noite.

- Gigolô, cafajeste, vagabundo, igualmente eu falei quando ele pintou por aqui.
- Tu tá mais é com inveja. Mulherão a Rosa.

  Um dia o “homem da Rosa” começou a modificar-se. Passou a sentar-se no degrau da entrada, depois a puxar prosa com uns e outros. Dentro de pouco tempo conhecia todo mundo, saía sempre para jogar sinuca ou tomar uns tragos na venda. De tanta atividade Rosa não gostou nem um pouco.
- Tu é meu. Só meu. Tu tens que viver pra mim. Num tava bom do jeito que tava antes?

   A idéia trágica chegou de mansinho, criou corpo, ganhou adeptos. O “homem da Rosa” cismou que a favela precisava de um tal “Barracão da Alegria”. Um barracão onde todos se reunissem para dançar, conversar, trocar idéias, conviver, enfim. Chegava a interromper o ato sexual para explanar a ela suas idéias. Explanava-as a um ouvinte cada vez mais desgostosa. Rosa antevia com ciúmes e um profundo desgosto o rival para seu amor obsessivo, possessivo, ciumento ao extremo. De nada lhe valeram os argumentos de poucas palavras. A idéia, como uma bola de neve, crescia a cada movimento e faltava apenas um nadinha para se tornar realidade.

    O “homem da Rosa” demonstrou uma insuspeitada vocação para a liderança. o comando lhe fluía da boca, da voz, como se tivesse nascido para mandar. Em pouco tempo eram centenas de favelados a obedecer suas ordens. Traziam madeiras de longe, pedaços de fios, latas, portas e janelas velhas. De tudo ia aparecendo e o barracão tomando forma rapidamente. E Rosa definhava.

  "Barracão do Mal-Querer”,”Barracão do Mal- Querer”, “Barracão do Mal-Querer”. De tanto Rosa repetir acabou por, extra oficialmente, batizá-lo de “Barracão do Mal-Querer”. O “homem da Rosa”, por brincadeira, e de mau gosto, escreveu logo por baixo da placa onde se lia “Barracão da Alegria”, o outro nome: “Barracão do Mal- Querer” pelo que diz minha Rosa.” Um dia a placa caiu e não foi reposta. Ficou mesmo “Barracão do Mal-Querer”.

   Festas, forrós, xaxados, sambas, escola-de-samba, festas infantis e de fim-de-ano. De tudo acontecia no Barracão e o “homem da Rosa” cada vez mais entregue às suas funções de animador, administrador, cobrador, dono, enfim, da alegria da favela.
Cada vez menos tempo para Rosa, que um dia sumiu sem que ninguém a visse ou pudesse dar a menor pista. Simplesmente sumiu.

   O tempo passou, que a função do tempo é passar e acabar com todos nós, e ninguém mais soube ou quis saber de Rosa.
Rosa, outrora amante em tempo integral, era agora uma mendiga ocasionalmente. Quando a fome apertava, pedia um de comer e voltava ao cantinho que escolhera para abrigar sua dor-de-cotovelo. Ambição? Só uma: acabar com Barracão do Mal-Querer, seu fim de felicidade.

    Fim de festa. Os retardatários somem pela favela adentro com seus preguiçosos passos de bêbados cansados de dançar. Uma figura encurvada aproxima-se sorrateiramente do “Barracão da Alegria”. Em uma das mãos tem uma lata de gasolina e na outra uma caixa de fósforos. É Rosa. Rosa despeitada. Rosa vingativa. Rosa mal-amada e cheia de ódio, que esperara até que saíssem todos para concretizar sua vingança: ver aquele barracão nojento virar cinzas.
    Ateia fogo e, feliz, põe-se a dançar em frente à monstruosa fogueira.
    Em segundos a favela em peso desloca-se para a sua sede da alegria. Rostos sofridos, consternados e impotentes aglomeram-se em volta da grande construção improvisada. Sem reação, sem ódio, sem revolta. Só com pena, muita pena. Apenas olhando.
Olhando Rosa que canta, que dança, que pula de alegria vendo seu terrível rival mergulhado na ardência do fogo.
- Ô Rosa, tu é malvada mesmo, mulher. Teu homem tá dormindo lá dentro. Ele se mudou praí desque tu foi se embora.
- Ele tá lá dentro? Ele tá lá dentro? Meu Deus do céu! Ele tá lá dentro...
   Desesperada de dor, de arrependimento, acordada da loucura vingativa, Rosa atira-se desesperada pela porta em fogo do “Barracão do Mal-Querer” segundos antes que o teto, em brasa viva, desabasse sobre os outros escombros.
   Naquela noite na favela muitas crianças tiveram pesadelos e todos os casais fizeram amor.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 13/08/2007
Reeditado em 13/08/2007
Código do texto: T605810
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