Carta do Vazio endereçada ao Oco amigo!

Amigo Oco, ou Oco amigo, eu em meu quarto, olho para o teto e uma luz tênue e pálida ofusca minhas vistas. Fico perdido entre o que é, e o que deveria tal ofuscação. É uma luz que gera uma sombra na parede. Uma sombra de um rosto esquálido, talvez. Tudo não passa de um talvez! Lépido, talvez e já passou. Sou tomado por um mal súbito. Meu corpo estremece e tal qual o porco do mato, animal que você deve conhecer pelo nome de queixada, bato os dentes e de tanto cometer esse tique nervoso, estão aparados feito aparadores de barba. Fios de uma mesma navalha. Por sorte minha mulher está viajando, senão, aparava-lhe os lábios... língua não a satisfaz mais. Enquanto eu perdi, a libido dela aumentou. Um cai e o outro sobe. Com a desculpa que vivemos tempos modernos, deve estar me traindo. Depois de quase meio século peidando debaixo do mesmo cobertor, seria conveniente pedir o divórcio, Oco amigo?

Abro os braços e agarro as laterias do catre. Elas ainda estão aqui firmes, potentes, rijas, suportando minhas neuroses. Em momentos de profundo estresse depressivo, sempre há um anjo que nos protege e auxilia.

Levanto nas pontas do pés. Meus dedos trêmulos relutam em levar-me aonde meu sistema nervoso quer que o leve. Com muito custo, aproximo e abro a janela. Reparo o movimento lá fora. Fora meus pensamentos que insistem em permanecer no marasmo existencial, nada está perdido. Pelo contrário, tudo tem cor. Aparentemente, nada está esmaecido e até um espontâneo sorriso banguela tem sua beleza, porém, não há nada mais terno, solícito, sensível e belo, do que um pássaro/pai regurgitando o alimento no bico do ingênuo e faminto filhote. Por um segundo, tal cena vista tira-me do ceticismo e a vida torna-se movimento e fluidez de energia.

Águas que rodam as pás dos moinhos que alimentam a fome. Cada moinho tem uma finalidade. O movido pelos ventos inspiram os poetas, enquanto que os movidos pela água, fazem girar as pás, que por sua vez, transformam energia em trabalho, resultando em milho esfarelado. A pedra mó esmigalha, dilacera. Quando usada de forma racional e prestimosa, a inteligência humana é capaz de movimentar o mundo. A mente racionaliza o problema, os pés e as mãos são os veículos transformadores; e os sentidos, órgãos e tecidos auxiliam, são os coadjuvantes nas tarefas renovatórias. Motivo d´eu implorar aos meus, que faça-me ser, o que era. Nada melhor para um cão que caiu da mudança e vagou o dia todo à procura de algum cheiro conhecido, e ao cair da noite sombria, encontra um lar que o abrigue. Sem obrigação de cuidar da divisas da mansão, claro! Abanando o rabo, farejando o reencontro com seus donos. Quanta alegria paira no ambiente, tornando-o amistoso. E saudosista, por fim. É proseado para o resto da noite. Provavelmente papo que não acabe tão cedo entre os dois. Um fareja e o outro acaricia.

Um curiango pia uma canção parecida adágio. " A vingança é um prato que se come frio". Vingança de quê contra quem? Sem visão do que é, arrepio ao ouvir o mistério de ser possuído por essa audição. Ouvir e nada ver; ver e nada ouvir. A morte está em qualquer parte, em qualquer ato banal, até na bola ovalada do ovo cozido que se recusa descer o túnel frio da garganta. Tédio entalador. Confabulo com meus botões. Desabotoei a camisa de cabo a rabo e cada um dos botões ouviu um pouco de lamento para a casa. Fechei-a toda... reticente que fiz mal; pergunto agora para meu subconsciente.

Como um robô, caminho pelo quarto. Meus braços acompanham os movimentos compassados dos pés. Um, dois... um, dois. Vou e volto, amigo oco. Aii minha canela. Uma ou outra batida contra as quinas dos móveis. Ingratos e insensíveis não saem do lugar. Quase sou multado por isso. Também não noto por aqui as cores das luzes dos semáforos guiando os motoristas e pedestres. Também puderas, perdi minha CNH nem sei em que ano. Cachaças e mais cachaças. Postes e mais postes. Multas e mais multas. O que esperar de alguém que chegou ao estágio que me encontro? Encontro as despedidas nos desencontros.

Talvez não se lembre de alguns detalhes de meu quarto... vou lembrá-lo: meus olhos fitam a mandala. São círculos maiores que diminuem para os menores e ambos, todos convergem para o centro. Minhas vistas seguem os círculos. Um deles é birrento e não quer seguir o comboio. Diz que seu diâmetro, zaroio algum irá diminuir. À muito custo, se rende. Agora quem faz birra são os meus olhos: rodopiam dentro da órbita. Quê dança mais estranha. Bailando, trás de volta o pio da cotovia. Ah, disse que é curiango, pois bem, do curiango. O símbolo mandala é um procissão, onde todos vão para o interior... interior de quê?

Impressão minha. Agora sim o curiango retoma o pio. Pia curiango sua solidão em mata densa, curiango? Pio triste... lamentoso. Uma poesia cantada para os mortos. Ventos não tem onde se deitar, mas os raios de sol sim. Curiosos entram nos ambientes sem permissão. Tenho-os como poeira, que assentam em qualquer lugar e por isto, dão trabalho. Trabalhar dá trabalho, concorda amigo Oco.

São raios fracos. Temo que não sejam raios de sol; ou deve ser a lua procurando o que não perdeu aqui no quarto? Quem poderia ter morrido. A morte espreita a agonia da vida pelos olhos dos vivos. Os urubus, donos de funerária também. Se assim for, significa que ainda vivo e isto é basta. Não, não foi isso que disse? Tenho problemas com a fonética, como sabeis, falo enrolado. E quem enrola, ganha as eleições para Presidente. Nunca o vejo com tino para o poder. Sem gaguejar para falar Oco amigo... Por favor, nada de cacofonia. Encarecidamente, não. Choro até permito, mas cacofonia ao falar Oco amigo, não; mil vezes não! Por enquanto, ficamos assim...

As correntes de vento se alteram, mudam de lugar e o passeio ruidoso da brisa fresca adentra o quarto. Intrusas. Por ser mais leve, as correntes de o ar quente vão saindo de mansinho; mas antes, resistindo a invasão, circulam pelo ambiente, debatendo-se frente a frente com o ar frio. Chegam a denominador comum e quem ganha com o entendimento sou eu. Equilíbrio e ponha equilíbrio nos desequilíbrios. Respire com moderação. Os pratos de uma balança em equilíbrio explicam o ocorrido. Moderação sempre. As portas batem. Os souvenirs balouçam um vai e vem atropelado, tilintam festivamente no fio que sustenta a lâmpada. Por sua vez, a assanhada que ilumina o escuro, dança uma tocata indecente tocada pelo vento.

Aos poucos meus sentidos são sentidos e consigo ver lua e estrelas. Agora os conceitos não são apenas aceitos, mas palpáveis. Retorno à cama. Estiro o corpo sobre ela. O colchão parece-me macio, suavemente macio, como nunca estivera. Levo as mãos nas laterais, apalpo para senti-las e a armação de madeira não está mais no mesmo lugar. Em qual e por qual tapete estaria voando Sherazade. Divagação apenas... sonhos e imaginações transportam o sonhador para o etéreo, para o Nirvana e lugares os quais o tapete não poderá alcançar. Apalpei novamente as laterais e as travessas de madeira agarram-me fortemente. Estou seguro, são e salvo. Meu corpo foi abraçado, adorado pela proteção dispendida a mim pelas tábuas. Nesse ínterim, ouço uma voz mitológica me dizer que não existe ser nenhum que queira e caminhe em direção à proteção. Recuo ou sigo? Reforçou dizendo que é unicamente para essa finalidade, que os humanos rezam a vida inteira; porque os animais deitam como asnos e despertam como jumentos. Numa toada, só; bate a pedra mó. Deve ser meus neurônios, com razão e inteligência e tudo que estão esmigalhando. Nem queria dizer, tenho que assumir que estou em frangalhos. Árvore que não seu fruto, não tem galho... não serve nem para queima em fogões à lenha!

Aliviado por voltar à realidade e ser eu materializado, fiz o sinal da cruz e adormeci! Despertei para escrever esse conto e voltei a adormecer. Provavelmente nunca mais acorde, porque sonho que se sonha só, é apenas sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha a dois, fatalmente será realidade. Eu e você Oco amigo. Porém, sonhando solitariamente, ao escrever este, veio-me a dúvida se eu havia passado por uma paranoia repentina e através dela, atingido o Nirvana contido na eternidade. E entre sustos, medos, desafios e topadas nos móveis, prefiro manter-me aqui dopado. Tudo nasce, cresce, tudo por um tempo serve, depois incomoda e desaparece. Efemeridades, somente. Não valemos um peido, Oco amigo! Por favor, sem cacofonia.

Aos leitores, foi um prazer tê-los sempre lendo os meus escritos, dando seus pareceres nos comentários, enfim, agradeço pelo aprendizado e atenção a mim dispensada, mas viver o mundo, o qual os gigantes admiram o horizonte, tomam para si os raios solares; dominam vales encantados, pisoteiam os solos das matas intocadas nos fiordes e alcantilados, e os pequenos fazem-se de súditos e parasitam-lhes à sombra, não é digno de ser apreciado e querido por mim. Pena! Para a morte que nos sorri a todo instante e diz que num momento qualquer eu, ou o ente, ou o amigo Oco a seguirá, o vazio não existe. Para o bem da verdade, tanto o Oco amigo quanto o Vazio existem e uma vez, uma única vez na vida se encontram na morte. Como gostaria de saber o que você, Oco está pensando. Por mim, você pensaria que está cheio do Vazio 24h por dia. Oco e Vazio: são inseparáveis e escrevo em nome do vazio... não seria você que me lê, o Oco. O Oco amigo! Afinal, somos amigos fieis e inseparáveis, ou estou sendo traído por outro que se intitula Vazio? Saiba que eu jamais trairei você, Oco amigo...

Adeus para todo o sempre e através dessa, peço vênia!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 14/10/2017
Reeditado em 15/10/2017
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