O OLHAR DA FERA (PARTE DOIS)

Conhecendo e aprendendo com suas próprias limitações.

O medo. O medo sempre fora meu mais mortal inimigo; eu era um homem que vivia com medo; medo de perder o que tinha, medo de sofrer pelas mãos do inimigo, medo de enfrentar a luta, na qual eu poderia morrer. Eu, Axel, era um homem medroso …, se bem que, não era bem isso que eu pensava …, aliás, eu sequer pensava sobre isso …, apenas levava a vida como ela podia ser levada. Freida gostava de mim por ser assim. Ela sempre achou que um homem corajoso era um homem morto e que a coragem conhecia o limite da espada, e apenas dela. Por isso ela gostava de mim.

Muitos dias se passaram sem que eu tivesse notícias de Eijavick, e depois de tanto tempo eu esquecera dele e de suas palavras; continuei fazendo o que sempre fizera, cuidando da terra indomada, comendo, bebendo e trepando. Freida não era uma mulher muito atraente. Na verdade ela era uma gorducha baixinha, de peitos grandes, face bolachuda, mas que tinha seus atributos de fêmea, e sempre me fizera um homem satisfeito.

É verdade que, algumas vezes, trepei com Edda, pois no frio do norte, todos precisamos nos aquecer. Aconteceu, inclusive de dormimos os três juntos: eu, Freida e Edda, e minha mulher não me condenava por trepar com Edda, que ela achava útil e necessária, muito embora dissesse que ela não era bonita.

Edda era a típica saxã de corpo esguio, alta, nem muito magra, nem muito gorda, mas com detalhes anatômicos que a tornavam atraente aos olhos de qualquer homem; seus olhos grandes e negros jamais confidenciavam sua verdadeira história. Eu já nem me lembro ao certo como ela veio morar conosco. O que me lembro é de Freida retornando do vilarejo trazendo-a consigo. Disse que o velho Knut queria livrar-se dela, já que ele não a desejava e que ela não servia aos seus interesses como deveria.

Edda jamais contou sua história para nós …, apenas alguns fragmentos surgiam quando tínhamos uma conversa amena a beira do fogo em dias gelados, ou noites sem luar. Suas feições maltratadas revelavam que sofrera ao longo da vida, mas, mesmo assim, ela optara pelo silêncio, deixando o passado no passado. Verdade é que, ao longo de nossa convivência, eu Freida e Edda nos tornamos um trio que desfrutava das poucas coisas que a vida nos proporcionava, e fazíamos dessas pequenas coisas as razões para nos sentirmos felizes na medida do possível.

E tanto uma como outra sabiam que eu tinha medo …, jamais me envolvera em uma contenda, mesmo que fosse necessário; preferia negociar …, trocar, comerciar em vez de resolver tudo pelo fio da lâmina de uma espada. Isso se mostrou ruim em algumas ocasiões, pois, meu medo me obrigava a recuar em situações que, mesmo favoráveis a mim, somente seriam usufruídas se eu me usasse da força …, e, assim, eu acabava me tornando um perdedor.

Knut sempre me dissera que melhor um negócio ruim do que uma contenda sem fim; e eu achava que ele tinha razão. Mas isso mostrou-se muito prejudicial …, especialmente em uma certa ocasião. Alguns meses depois que Eijavick partira, eu fui procurado por Knut, o novo, filho de Knut, o velho; ele viera me alertar que alguns saqueadores do norte haviam passado pelo vilarejo, tomando tudo que podiam, e causando dor e sofrimento aos aldeões. Seu pai o enviara para que me alertasse desses homens que ainda rondavam a região em busca de peles, comida, cerveja e tudo o mais que pudessem levar consigo.

Agradeci a informação e fiquei preocupado, imaginando o que faria quando esses homens surgissem em minhas terras …, não demorou para que eu fosse obrigado a tomar um partido. Foi numa tarde em que o sol esmaecido tentava brilhar no horizonte …, eles vieram a galope, em suas montarias de batalha, gritando e urrando como animais selvagens. Ao vê-los, chamei por Freida e Edda e ordenei que elas se embrenhassem na floresta ao fundo da casa. Mesmo sabendo que a distância era relevante, mandei que elas corressem e somente parassem quando se sentissem seguras.

Freida olhou para mim com tristeza no rosto e Edda amarrou a cara, dizendo que preferia ficar e lutar. “Hoje não é dia de luta!”, eu disse, enquanto as ajudava a reunir algum alimento para a fuga. “Se hoje não é dia de luta …, quando será?”, ela ousou me enfrentar. Tive ímpetos de esbofeteá-la, mas o olhar de Freida me fez desistir de tal gesto. Empurrei-as para a fuga, enquanto observava a aproximação do inimigo.

Assim que elas desapareceram além dos montes de neve atrás da casa, eu corri até minha pequena oficina; abri o velho baú de madeira, e olhei para a espada que havia forjado na juventude. Olhei para aquela arma por alguns minutos, indeciso quanto ao que fazer …, cheguei a tocar em sua empunhadura, mas depois de alguns segundos recuei. Fechei o baú e peguei a foice que eu também forjara. Saí em direção ao pequeno muro de pedras que cercava a casa. Fiquei olhando, enquanto meus inimigos aproximavam-se ameaçadoramente.

Suas montarias negras, com o focinho coberto por protetores de couro encimados por chifres de animais mortos, interromperam a marcha relinchando nervosamente e fungando um bafo esfumaçado. Eram quatro no total. Todos eles usavam armaduras de couro curtido, protegidos por pesadas peles de animais. Todos tinham o rosto coberto por elmos de metal com formatos inquietantes.

O mais alto deles, saltou de seu cavalo e caminhou até onde eu estava; ele parou em frente ao muro de pedras, retirando o elmo e mostrando seu rosto; tinha muitas marcas profundas na pele que eram coberta por uma barba rala; o olhar agressivo não tinha brilho, apenas um negror que trazia a morte como sombra. Ele sorriu, exibindo os poucos dentes amarelados. “Era meu fim!”, pensei, empunhando a foice para o alto, tentando amedrontá-lo com minha arma, embora eu soubesse que o medo comia minhas entranhas.

-Você quer brigar, camponês? – ele perguntou com uma voz rouca e profunda.

-Não, eu não quero! – respondi, procurando esconder meu temor entre as palavras – Eu sou de paz …

-Então, entregue a mim o que tens de valor! – ele me interrompeu bruscamente – E iremos embora sem ferir ninguém …, afinal, você é apenas um camponês …, és inofensivo. Ele terminou a frase para, em seguida, gargalhar, sendo seguido por seus companheiros.

-Nada tenho que lhes possa ser útil – respondi, sem abaixar a foice – Não tenho nada de valor, e por isso lhes peço que vão embora …

Sem responder, o homem que estava à minha frente desembainhou sua espada e avançou eu minha direção. “Ao que parece, camponês, você quer sentir o poder da minha espada …, é isso?”, ele disse em tom ameaçador, enquanto seus companheiros saltavam de suas montarias, sacando suas armas; um deles trazia um machado de corte duplo, e mesmo sem retirar seu elmo, eu podia sentir a morte em seu olhar. Enquanto um tremor percorria meu corpo, retrocedi dois passos, pensando em como me livrar daquela ameaça iminente.

O sujeito com a espada na mão, pulou o pequeno muro e correu em minha direção; eu tentei fugir, mas acabei por tropeçar e ir ao chão; virei-me sem conseguir levantar e vi quando a espada do saqueador descia em minha direção. Levantei a foice e procurei absorver o impacto do golpe, o que funcionou, pelo menos de início, já que meu oponente implementou toda a sua força sobre a espada.

Senti meus braços tremerem, enquanto via a lâmina aproximar-se de mim …, para minha sorte, os asseclas do meu agressor ficaram parados, olhando e se deliciando com meu suplício; usei a parca força que ainda me restava e ergui a foice para, em seguida, empurrá-la para o lado, e com ela a lâmina da espada. Isso fez com que meu agressor perdesse o equilíbrio, apoiando-se sobre um dos joelhos flexionados. E sem esperar pelo contra-ataque, levantei-me e corri em direção ao pequeno celeiro ao lado de minha oficina.

Entrei e passei a travessa na porta afastando-me dela, ainda esperando pelo pior. Houve um silêncio atemorizante do lado de fora, e eu rezei para Odin, desejando que os saqueadores tivessem desistido e seguido seu caminho. Mas, não foi o que aconteceu …, ouvi gritos e risadas, que me obrigaram a correr até a parte de cima do celeiro, onde podia observar o lado de fora, através de uma janela minúscula que lá havia.

Dois dos homens estavam saqueando minha casa, e depois de jogarem para ao lado de fora, tudo que consideravam sem valor, atearam fogo aos objetos, enquanto reuniam aquilo que lhes interessava, inclusive alguns alimentos que eles decidiram saborear ali mesmo. Suado e com a respiração ofegante, observei a tudo incapaz de pensar em esboçar uma reação. O medo, meu inimigo íntimo, me impedia de reagir. Eu preferia permanecer onde estava, torcendo para que eles se satisfizessem com o butim, e partissem o mais depressa possível …, pena que, em meu interior, eu sabia que isso não aconteceria.

Repentinamente, ouvi gritos e lamúrias vindo em direção à casa …, e meu coração pulou no peito quando vi, estarrecido, que os outros dois homens haviam capturado Freida e Edda; eles as traziam à força; Edda tinha um laço amarrado no pescoço e era arrastada pelo chão frio, gritando e vociferando palavrões; Freida era trazida pelo braço, e mesmo não oferecendo resistência, vez por outra, seu algoz a empurrava até que ela tropeçasse e caísse ante suas gargalhadas viscerais.

-Hum, parece que teremos uma noite e tanto! – comentou aquele com a espada, que parecia ser o líder deles – Onde encontraram essas putas?

-Perto da clareira, logo depois da floresta – respondeu aquele que trazia Freida pelo braço – E essa aqui tem uns peitões! Acho que vou saciar minha sede!

Enquanto riam, os outros dois homens rasgaram as roupas de Edda, e depois de olhar atentamente para a saxã desnuda, fizeram comentários ofensivos …, eu podia sentir o clima animalesco no ar, pois, ainda naquela noite, minhas duas mulheres serviriam aos prazeres libidinosos daquelas bestas furiosas e de violência desmedida.

Sem entender a razão que me impulsionava naquele momento – se ódio, fúria ou revolta – eu me levantei e desci até a parte debaixo do celeiro; com o coração aos pulos e o sangue fervendo nas veias, tomei um talho de ferro pontiagudo que eu mesmo fizera e rompi as velhas tábuas da parede mais ao fundo do celeiro; com muito esforço, consegui abrir um vão e me esgueirei por ele, até conseguir ficar do lado de fora.

Sorrateiramente, circundei o celeiro e pulei através do buraco existente na parede de pedras da minha oficina, chegando até o baú onde estava minha espada; ao tomá-la nas mãos, senti algo pulsar dentro de mim, como se uma força até então desconhecida, tomasse forma em minhas entranhas, incitando-me à violência …

Nesse momento, ouvi ruídos na porta da oficina; escondi-me na parte mais escura, já que a pequena tocha presa na parede oposta, oferecia pouca, ou quase nenhuma, luminosidade. Em silêncio, notei que dois vultos adentram …, era o saqueador que trazia Edda amarrada pelo pescoço como um animal. Ele a jogou sobre o chão duro e frio e começou a despir-se, denunciando o que pretendia fazer. Ele estava tão excitado que não percebeu quando eu o rodeei, aproximando-me com a espada em punho.

Sem demora, enlacei-o pelo pescoço, apertando com força, e, em seguida, enterrei a espada na lateral de seu dorso desnudo; nem sei como consegui imprimir tanta força ao golpe, pois pude ouvir, nitidamente, o som do metal quebrando e esmagando ossos enquanto rasgava a carne do sujeito. Como eu apertei sua garganta com muita força ele não conseguiu gritar, apenas soltando um longo suspiro com o ar escoando de seu corpo quase inerte. E quando senti o contato do sangue quente dele escorrendo por minha mão, soltei o corpo que desabou como um saco de batatas pelo chão.

Edda, que a tudo observava com olhar estupefato não foi capaz de pronunciar uma sílaba sequer, até mesmo porque eu me aproximei dela e fiz sinal que se mantivesse calada, pois a ameaça ainda não acabara. Ouvi quando aquele que parecia ser o líder, ordenou ao outro – que ele chamou de Boors – que fosse até a oficina ver o que estava acontecendo com a escrava saxã. “Diga a Svein, que não machuque demais a saxã, porque eu também quero me divertir!”, ele comentou com o tal de Boors, que caminhou em direção à oficina.

Meio desajeitado, puxei o corpo inerte do meu inimigo para longe da porta e posicionei-me atrás dela, esperando …, Edda encolhera-se no fundo da oficina, procurando afogar toda a sua vontade de gritar …, o tal Boors surgiu na porta e avançou para dentro do recinto mergulhado em penumbra. Como ele era mais alto e mais largo, eu sabia que não teria a mesma sorte que tive com seu companheiro, por isso, levantei-me rapidamente, e apoiando um pé sobre a bigorna próxima de mim, projetei-me no ar, caindo com a lâmina apontada para a nuca de meu inimigo.

Mais uma vez, o golpe foi certeiro! A lâmina rompeu os ossos do pescoço e de acordo com o ângulo que eu desenhara com meu movimento, ela desceu, até surgir no meio do peito de Boors; ele não tivera tempo nem mesmo de suspirar, pois o sangue golfava por sua boca. O ruído seco de sua queda sobre o chão não foi suficiente para chamar a atenção dos dois homens que ainda restavam. Inclinei-me sobre o corpo e saquei de sua cintura a espada de lâmina curta que os guerreiros costumavam carregar e caminhei em direção da porta …, eu estava decidido a enfrentar meus inimigos que ainda restavam

Senti a mão trêmula de Edda segurar meu braço; olhei para ela e vi seus olhos repletos de pavor pelo que poderia acontecer …, e foi a primeira vez em minha vida que o medo não mais me dominava, mas eu o controlava, como aquele que doma uma fera desconhecida, um animal traiçoeiro e arguto, mas que, naquele momento estava sob meu comando, obedecendo à minha vontade. Eu sorri para ela e segurei sua mão …, nada mais foi feito …

Saí para fora da oficina empunhando as duas espadas e gritei para o forasteiro: “Deixe minha mulher em paz, antes que seja tarde!”. O sujeito voltou-se na minha direção, enquanto empurrava Freida para os braços de seu companheiro. Ele sacou sua espada, ao mesmo tempo em que o outro levantava seu machado de lâmina dupla.

-Contenha essa vaca arredia, Solveig! – berrou meu oponente, enquanto desembainhava sua espada – Ela será meu prêmio quando eu acabar com esse camponês abusado! Aliás, como se chama, camponês?

-Porque lhe interessa saber meu nome? – perguntei, sentindo o medo coçar minhas entranhas.

-Porque eu, Hagar, sempre quero saber o nome do homem que morrerá na ponta de minha espada! – ele respondeu com um tom de escárnio.

Hagar, um homenzarrão musculoso, brandiu sua espada no ar, livrou-se da pele de urso que o protegia do ar gelado, exibindo seu tórax esculpido, e onde se viam várias ferimentos e cicatrizes, os quais ele exibia com orgulho. Lembrei-me das poucas lições de Knut, o velho, acerca do manuseio da espada, e me preparei para o inevitável. Hagar avançou em minha direção, erguendo a espada para desferi-la contra mim.

Fintei de um lado, e depois do outro, e seus golpes perderam-se no ar; isso deixou meu oponente mais furioso, e quando ele fez um voleio para a esquerda, eu inclinei-me para a direita, escapando do golpe frontal que ele tentara me acertar; antes de retornar à posição de combate, girei o corpo levemente agachado, e deixei que meu braço acompanhasse o movimento, finalizando com um golpe lateral na coxa esquerda de Hagar, que, imediatamente, urrou, vendo o sangue escorrer pelo ferimento.

Desatinado, ele partiu para cima de mim com toda a sua força, projetando a espada contra mim de cima para baixo; flexionei os joelhos e tentei aparar o golpe com minha espada; fui bem-sucedido, mas, o peso de Hagar sobre meu corpo, fez com que eu escorregasse para trás, caindo com as costas sobre o chão gelado. Hagar continuou imprimindo força sobre mim, inclinando sua espada para frente e tentando perfurar minha garganta.

Chutei a lateral do seu joelho direito com força …, a dor lancinante além de fazer Hagar gritar, fez com que ele perdesse o equilíbrio, caindo para o lado. Era o momento em que o mais rápido teria a vantagem de levantar-se, e foi o que fiz. Tentei golpeá-lo, enquanto ainda estava caído, mas Hagar aparou o golpe com sua espada e me empurrou para trás.

Novamente estávamos ambos de pé; Olhei para Freida, que estava presa nas mãos de Solveig, o gigante do machado, e vi o pânico em seu rosto; as lágrimas escorriam silenciosas por sua face rechonchuda, e seus lábios estavam apertados como retendo os gritos em sua garganta. Hagar também olhou para ela, e depois voltou a me encarar com um olhar de escárnio.

-Prepare-se, camponês! – ele bradou cheio de si – Depois de matá-lo, vou foder essa puta até sangrar, e quando estiver cansado dela, farei-a minha escrava, até vendê-la para os povos além do continente, como que vende uma porca velha e gorda!

Ouvindo aquelas palavras, que jamais soaram daquela forma, senti uma enorme onda de furor crescer dentro de mim; era algo indescritível, mas que possuía uma energia assustadora …, todo meu corpo fremiu e meus olhos encheram-se de uma raiva que, desta vez, não cegava, muito menos me atemorizava, pelo contrário …, ela me transformava em outra pessoa …, outro homem …, eu não era mais Axel, o camponês …, eu era Axel, o vingador!

Parti para cima de Hagar, golpeando-o com a espada várias vezes seguidas; cada golpe era mais rápido e mais forte que o anterior, e o bárbaro recuava, sentindo o peso de meus golpes; por mais estranho que pudesse parecer, meus golpes se sucediam sem que eu sentisse cansaço. A cada novo golpe, minha energia se renovava, e pela primeira vez na minha vida, eu sentia algo que misturava uma sensação de prazer, com uma fúria controlada …, uma fúria sobre a qual eu tinha controle!

No fim daquela saraivada de golpes, Hagar mal conseguia segurar sua espada …, mas, orgulhoso ele não se renderia …, eu teria que matá-lo …, e se não o fizesse seria eu a morrer. No instante em que Hagar aparou um golpe por cima, eu girei a espada no sentindo do seu contragolpe, e deixei que ela o atingisse na linha da cintura, provocando um corte longo e profundo.

Hagar olhou para baixo e viu o sangue jorrar pelo corte, enquanto parte de suas vísceras também se projetavam para fora …, ele mal conseguia respirar, e depois de deixar cair a espada, foi ao chão de joelhos bem na minha frente; eu me quedei inerte …, não sabia o que fazer e uma onda de cansaço invadiu meu corpo e minha alma. Virei a espada e me apoiei sobre ela, flexionando uma das pernas …

Nesse instante, ouvi o grito desesperado de Freida; mal tive tempo de olhar para trás e ver Solveig jogá-la ao chão e levantar seu enorme machado na direção dela …, em desespero, levantei-me e tentei correr em sua direção, embora eu soubesse em meu íntimo que não haveria tempo suficiente para salvá-la do golpe inevitável do bárbaro.

Enquanto corria, ouvi o relincho marcante de uma montaria …, olhei por cima do ombro e reconheci Leika, a égua de batalha de Eijavick; o guerreiro de olhar de fera, saltou de sua montaria com sua espada “esmaga ossos” nas mãos. “Ei, Solveig! Deixe a mulher de lado e venha lutar com um homem! Ou você se esqueceu de como se usa esse machado?”, Eijavick vociferou as palavras enquanto corria na direção do guerreiro do machado, que, por sua vez, reconhecendo a figura de seu oponente, sorriu e correu contra ele.

Achei que seria uma luta longa e duríssima …, mas, eu ainda não conhecia Eijavick, apenas conhecendo sua fama …, e naquela noite esta fama mostrou-se verdeira e fatal. Solveig partiu para o ataque, mas errou os dois primeiros golpes; Eijavick fintou, golpeou sobre a túnica de couro do oponente, e depois de esquivar-se de mais dois golpes, perfilou-se com a espada apontada na direção do inimigo.

“Solveig, você se esquece que, ao mesmo tempo em que o machado é mortal, ele também é lento!”, disse ele, enquanto esperava pelo avanço do inimigo; Solveig avançou com o machado erguido, e mal teve tempo de respirar, quando Eijavick fintou para o lado, deixando a lâmina de sua espada no caminho.

Enquanto o machado caía, a “esmaga ossos” golpeava os joelhos do brutamonte que urrou e caiu; Eijavick, como era de se esperar, não deu trégua ao oponente e enterrou “esmaga ossos” na altura da cintura de Solveig, que ainda lutava consigo mesmo para sobreviver.

Depois de sacar a espada das costas do corpo inerte, Eijavick voltou-se para mim, gargalhando euforicamente. Freida correu e me abraçou e Edda apareceu vinda da oficina, cobrindo-se com a pele de urso de Hagar, e juntando-se a nós.

-Mas porque você ri, guerreiro? – perguntei atônito e também irritado com aquela gargalhada inapropriada – O que há de tão engraçado em enfrentar quatro homens apenas com a espada?

-Errado, Axel! – ele gritou, cessando a gargalhada e encarando-me com aquele olhar que eu aprenderia a respeitar para sempre – Não havia um homem com uma espada …, havia um guerreiro tomado pela fúria, que, suprimindo seu medo, enfrentou e venceu seus inimigos …, você, agora, é um guerreiro …, o camponês deixou de existir definitivamente!

Meu olhar abalado e perdido mostrava claramente que eu estava compreendendo aquelas palavras, mas ainda não conseguia aceitá-las. Olhei para minhas mãos sujas segurando a empunhadura da espada e vi que elas não tremiam; minha respiração estava controlada, eu era senhor de mim. “Mas, como isso aconteceu?”, perguntei, ávido por uma resposta.

-Aconteceu, Axel! – respondeu Eijavick, com voz pausada e solene – Aconteceu porque você compreendeu suas próprias limitações e aprendeu com elas, transformando seu medo em fúria e sua hesitação em coragem …, isso faz um bom guerreiro que sempre lutará o bom combate! Agora, vamos …, vamos beber e comemorar …, depois cuidaremos dos mortos …

Deixando-me ali, pasmo e estupefato, Eijavick dirigiu-se para minha casa, gritando por Edda para que ela lhe trouxesse cerveja. E enquanto minha escrava saxã corria para dentro de casa, eu olhei para Freida e vi em seu olhar a confirmação das palavras de Eijavick …, Axel, o camponês havia dado lugar a outro homem, que sabia lidar com seu medo, e com sua hesitação. Essa era a qualidade do bom guerreiro: aquele que transforma sua desvantagem em vantagem, não se arvorando na confiança excessiva e sabendo exatamente a linha que separava o combatente valoroso do bárbaro sanguinário.

Segurando a espada em uma das mãos, e abraçado à minha mulher, caminhei em direção da casa, absorto em meus pensamentos e na preocupação de como seria minha vida a partir daquele dia. Apenas de uma coisa eu tinha certeza: aprender a lidar com minhas limitações e com meus inimigos interiores fizeram de mim um outro homem; um homem que precisava extravasar essa fúria que nascera dentro dele, assim como precisava de comida e água para sobreviver …, sobreviver já não cumpria seu papel em meu linguajar …, era preciso viver!!

Dormimos todos juntos, na única cama que ainda prestava, com o calor da fogueira nos aquecendo. Eijavick abraçara Edda, que não rechaçou o guerreiro; eu imaginei se Edda tinha a intenção de partir com ele …, assim como me perguntava se eu partiria com ele. Eram perguntas que eu preferi deixar para responder no dia seguinte …, ou no outro …, ou no outro ...