O OLHAR DA FERA (PARTE TRÊS)

Parte 03: A vida consiste em escolhas …

Um sol esbranquiçado mal tinha surgido no horizonte enevoado e Eijavick estava a me cutucar com o cabo da sua espada. “Acorde, Ferreiro, temos trabalho a fazer”, ele disse em tom de voz rouco. Ainda com os olhos turvados, olhei para ele e tentei responder alguma coisa, mas, infelizmente, ele não esperou por minha argumentação, dando as costas e caminhando em direção à fogueira, onde Edda, já acordada, preparava alguma coisa para comer.

Levantei-me com dificuldade, sentindo o corpo doer e o frio afligir minha pele, arrastando-me até a fogueira, e cobrindo meu corpo com um pele que estava a mão; rapidamente, eu e Eijavick comemos pão e tomamos leite; ele parecia um tanto apressado, já que, ao terminar sua refeição, levantou-se e caminhou para fora da casa. Acompanhei-o sem saber muito bem a que trabalho ele tinha se referido. Ele se dirigiu até a oficina, de onde saiu trazendo algumas ferramentas.

-O que vamos fazer? – perguntei curioso, enquanto seguia o guerreiro.

-Vamos cremar os corpos, homem! – resmungou ele com certa impaciência – Não se pode simplesmente deixá-los a céu aberto!

Arrastamos os corpos congelados até próximo da floresta atrás de minha casa; lá, Eijavick tratou de cavar um fosso largo e fundo, tarefa de qual eu também participei. Arrastar cadáveres congelados não é tarefa fácil, isso eu lhes asseguro, mas ainda pior é trabalhar em terra seca e congelada até suas mãos doerem e o ar tornar-se difícil de ser respirado. Algumas horas depois, jogamos os corpos no fosso, e Eijavick me pediu para buscar um pouco de betume e uma tocha.

Jogamos o betume sobre os corpos, e Eijavick incumbiu-se de atear fogo que demorou para arder; enquanto observávamos os corpos queimando, Eijavick sentou-se em uma pedra e tomou sua “esmaga ossos” para afiá-la com uma pedra que trazia no bolso. Pacientemente, ele afiava a lâmina da espada, olhando atentamente para o fogo. Eu, de minha parte, não proferi uma palavra sequer, pois já aprendera que com ele era preciso aguardar o momento certo para dizer qualquer coisa.

-E então, ferreiro? – ele começou – Que nome dará a ela?

-A ela? – perguntei um tanto distraído – A ela quem? Que nome?

-Para a sua espada, camponês!!! – redarguiu ele um tanto irritadiço.

-E porque ela precisa de um nome? – quis eu saber, provocando o guerreiro impaciente

-Toda a espada precisa de um nome – ele respondeu, percebendo meu interesse – Ela precisa de um nome porque fará parte de sua vida, servirá a você e honrará tuas disputas …, assim como damos nomes aos animais que gostamos, também damos nomes às nossas espadas …, compreendeu, Axel?

Fiquei em silêncio por alguns minutos, para, depois, correr até a casa de lá retornando com minha espada nas mãos. Sentei-me ao lado dele e passei a afiar a lâmina com minha pedra. Permanecemos em um silêncio quase ritualístico …, então, eu quebrei a ausência da palavra.

-Acho que vou chamá-la de justiceira! – disse eu olhando para a lâmina da espada erguida à minha frente – Afinal, ela salvou minha família …

-Espadas não fazem justiça! – retrucou Eijavick, olhando-me com ar frio. Ele respirou profundamente e depois prosseguiu:

-Não são as espadas que fazem justiça …, nem mesmo os homens que as empunham …, quando homens empunham espadas, estão eivados de ira, de ódio, de vingança …, com espadas, homens fazem tudo, exceto justiça …

Fiquei pensando sobre as palavras do guerreiro, e vi-me surpreso com uma ponderação tão equilibrada de quem adora a luta e a batalha. “Mas, você também é assim?”, ousei perguntar; Eijavick olhou para mim e por um instante, pensei que ele fosse bater em mim …, mas, não foi o que aconteceu.

-Eu sou um guerreiro, Axel – ele respondeu com um tom resoluto – Nasci para lutar …, para vencer meus inimigos e com eles meus demônios interiores …, mas, jamais matei alguém que não merecesse morrer …

Eijavick olhou para a vala onde o fogo ainda ardia; seu olhar parecia perdido, viajando por lugares que apenas sua alma conhecia. Eu ainda tentava compreender aquele homem, mas, a cada nova frase ele me deixava ainda mais desconcertado com sua imprevisibilidade.

-Eu conheci Hagar – ele retomou a conversa – Hagar, o Terrível …, era assim que todos os conheciam …, lutamos juntos, como companheiros, amigos e irmãos …, ombreei com ele muitas paredes de escudos e bebemos muita cerveja! E poderíamos estar assim até hoje …, não fosse a ganância …, a cobiça …, isso é como um verme que te come por dentro …, não existem mais amigos, irmãos, não existe mais nada, apenas a cobiça …

Novamente, Eijavick fez um silêncio honroso olhando para a vala ardente. Depois, ele baixou a cabeça e respirou profundamente, para, depois, prosseguir:

-Ele escolheu este caminho tortuoso …, assim como Solveig também; eles fizeram uma escolha, Axel …, e a vida é feita de escolhas …, ao escolherem esse caminho sem volta, eles abdicaram de tudo que é bom, justo e honesto para tornarem-se apenas homens sem história …, sem amigos sem honra …, você é as escolhas que faz, ferreiro …, pode continuar sendo um camponês …, ou pode tornar-se um guerreiro …, a escolha é sua …, e apenas sua!

Ao final de seu pequeno discurso, Eijavick levantou-se e caminhou em direção à casa, sem esperar que eu dissesse algo. Ele sabia que nada precisava ser dito, apenas restava o que deveria ser feito. E essa escolha cabia a mim …, apenas a mim. Fiquei meditando e cheguei a conclusão alguma. Minha cabeça doía e minha espada permanecia sem nome …, Eijavick me deixou circunspecto e indeciso …, mais indeciso do que antes. Voltei para casa …, pensando …, “Dente de Dragão”, o nome me veio a cabeça; esse seria o nome da minha espada, a espada do camponês que era ferreiro e se tornou guerreiro! Estava feito! Entrei em casa com um sorriso no rosto que apenas eu sabia a razão.

Comemos um guisado saboroso preparado por Edda, bebemos cerveja e rimos de tudo e de todos. Eijavick já estava bêbado, e eu também; Freida nos olhava com aquele seu olhar de reprovação, mas, no fundo, eu sabia que ela conhecia meu destino melhor que eu mesmo. O coração de guerreiro batia em meu peito, e, agora, ele tinha mais razões para bater forte …, eu precisava seguir meu destino, mesmo que isso custasse caro àqueles que mais amava.

Era fim de tarde e Eijavick se divertia com o corpo de Edda que parecia gostar de pertencer a ele. Havia algo naquele casal que me dizia que ali se iniciava uma relação que prometia ser mais que apenas desejo carnal. Na cama, eu e Freida nos olhávamos pensativos. Eu queria dizer a ela do ímpeto que pulsava dentro de mim e da vontade de seguir Eijavick até os confins da terra, experimentando o sabor da batalha e o prazer da liberdade …, mas, infelizmente, as palavras recusavam-se a sair de minha boca …, eu não queria magoá-la. Freida era uma boa mulher e não merecia sofrer mais do que já sofrera ao longo de sua vida.

Repentinamente, ouvimos rumores vindos em direção da casa; ouvia-se cavalos e homens!

Eijavick levantou-se com a rapidez de um felino e mesmo desnudo pegou “esmaga ossos” e caminhou em direção da porta; eu também me levantei, peguei “dente de dragão” e segui atrás dele. Abrimos a porta e do lado de fora haviam quatro cavaleiros, trajando armaduras de couro escurecido, botas longas e elmos romanos sem penugens. Seus olhares, mesmo protegidos revelavam uma frieza de arrepiar almas. Eijavick os encarou por alguns instantes, até que, baixando sua espada ele os saudou com alegria incomum.

-Sejam bem-vindos, amigos! – ele saudou em tom esfuziante – Eu os esperava apenas amanhã!

-A viagem foi boa e não víamos a hora de reencontrá-lo, meu irmão! – respondeu o mais alto deles, saltando de sua montaria e caminhando na direção de Eijavick.

Eles apertaram a mão direita envolvendo-se em um abraço fraternal; logo, os outros cavaleiros saltaram de suas montarias e vieram juntar-se a Eijavick. Eles se cumprimentavam como se fossem velhos amigos …, e logo eu descobriria que eles eram muito mais que isso. Eijavick cumprimentou a todos e depois perguntou-me se podíamos recebê-los. Eu concordei, mas quis saber quem eram aqueles homens.

-Estes, Axel, são os melhores guerreiros que conheço! – ele me respondeu com tom alegre – Vou apresentá-los a você no tempo certo …, agora peça a Edda que prepare comida, porque esses homens são os mais esfomeados que conheço!

Já caía a noite quando terminada a fausta refeição que Edda fizera questão de preparar, e enquanto conversávamos, Eijavick incumbiu-se de apresentar cada um deles para mim. O mais alto deles, cujo nome era Haraldson, era Danês; era um homem alto e corpulento de pele clara, rosto marcado e cheio de sulcos que escondiam sua idade; não parecia ser velho, mas também não era jovem; sua arma era um machado de duplo corte que ele chama de “Pata de Urso”, e o exibe com orgulho, especialmente as marcas no cabo que enumeram quantos já morreram por suas lâminas. Era um homem de sorriso sarcástico e voz gutural.

Lothar era um guerreiro da Númidia de pele escura e ar solene; seus olhos negros e profundos pareciam explorar sua alma enquanto olhava para você; Eijavick confiava muito nele e nas suas opiniões que eram sempre ouvidas e ponderadas; tinha muitos desenhos pelo corpo que pareciam escarificações, e que ele dizia serem as marcas de sua origem nobre; sua arma era a lança – uma longa e uma curta – que ele chamava de “Dentes de Cobra”; era também um ágil espadachim e conhecia cavalos como ninguém.

Bjorn era das terras além das geleiras e seu jeito grosseiro era sua marca registrada; não tinha trelas na língua e dizia tudo o que pensava; a sua espada de lâmina longa ele dera o nome de “Caninos Brancos”, e seu fiel companheiro era um lobo que ele salvara da morte, e em retribuição, o seguira desde então.

Finalmente, tínhamos Ragnar, O Ousado; era um jovem das tribos germânicas, que nada temia, e por isso, todos os demais tomavam conta dele para que não os metesse em encrencas demais; era um exímio arqueiro e sua espada, que mais parecia um gládio romano, ele dera o nome de “Garra de Águia”

-E este, meus amigos, é Axel! – Apresentou-me Eijavick – O ferreiro que é camponês, mas descobriu sua alma de guerreiro!

-E como ele se tornou guerreiro? – quis saber Harraldson, com tom irônico.

-Ora, homem! – exclamou Eijavick – Ele matou Hagar, O Terrível!

No mesmo momento, todos olharam para mim incrédulos e surpresos. Imediatamente, Eijavick tratou de contar o que acontecera naquele dia, e, ao final, os homens permaneceram embasbacados.

-Axel, estes são meus companheiros! – disse Eijavick em tom solene – Eu os escolhi para ombrearem comigo no bom combate …, entrego minha vida a eles, assim como eles entregam suas vidas a mim …, assim nós escolhemos viver …, como amigos, companheiros e irmãos …, e agora, cabe a você decidir …, qual será sua escolha?

Eu olhei para cada um daqueles homens e em seus olhares eu vi confiança, honra e fraternidade, e isso para mim já era mais que suficiente …, porém, olhei para Freida que estava acocorada em um canto da casa, silenciosa como de hábito. Fiquei fitando seu olhar, a espera de que ela me demovesse da decisão que pulsava em meu coração e em meu espírito …

Todavia, eu já sabia que o silêncio de Freida era uma gritante declaração; ela olhou para mim e sorriu! Eu me levantei, caminhei até ela, e puxei-a pela mão; olhei bem dentro de seus olhos sofridos, e beijei sua testa. “Eu vou, mulher, porque preciso ir”, eu disse em tom de sussurro. Freida olhou para mim e depois de um sorriso tímido, ela respondeu: “Eu sei que você vai …, porque você tem que ir …, porque você deve ir, apenas te peço uma coisa …, aliás, eu te suplico uma coisa”.

-O que você pedir eu farei! – respondi de pronto.

-Quando sentir que é o momento – ela prosseguiu com seriedade no rosto e na voz – Volte para sua casa …, eu estarei te esperando

Nos abraçamos aos gritos e saudações dos guerreiros. A vida é feita de escolhas, e eu tinha feito a minha!

Bem cedo, pela manhã, estávamos prontos para partir; eu estava ao lado do cavalo que fora de Hagar e que desde sua morte ficara a minha espera; “Não somos nós que escolhemos nossas montarias, Axel, O Corajoso, mas são elas que nos escolhem”, disse Eijavick enquanto montava Leika. “E ao que parece, esse cavalo já escolheu quem irá montá-lo …, lembre-se: a vida é feita de escolhas”, e terminou dizendo. Assim que montei o cavalo, via Edda saindo de casa; ela vestia uma túnica escura, peitoral de couro curtido, calças de algodão e trazia nas mãos uma lança e um escudo.

Tomou uma montaria dos guerreiros mortos, que ainda pastava pelos arredores, subiu nela e olhou orgulhosa para mim. “A vida é feita de escolhas”, pensei …, e Edda fizera a dela. Olhei para Freida que apenas abaixou a cabeça em resignação. Uma tristeza tomou conta do meu coração em deixar minha mulher só, mas a escolha estava feita.

Partimos rumo a um destino que apenas Eijavick conhecia e que eu, certamente, também conheceria em breve. Ao passarmos pelo vilarejo, parei na forja do velho Knut e pedi a seu filho que cuidasse de Edda; ele olhou para minhas companhias e depois de acenar com a cabeça disse: “Trarei Freida para morar aqui no vilarejo e cuidarei de tuas terras …, vá em paz, meu amigo!”.

Eijavick cutucou a barriga de Leika que depois de dar uma empinada saiu em disparada, sendo seguida pelas demais montarias; eu fui o último a partir, olhando para o vilarejo em que fora criado, e que, naquele momento tornava-se uma página a ser virada. No caminho ladeei com Eijavick, e seu olhar era uma incógnita. Cavalgamos um bom tempo sem proferir uma palavra sequer, até que ele quebrou o silêncio:

-Fique calmo, Axel, o Corajoso …, fizestes a escolha do coração, e escolhas assim tem um preço …, quando retornares tudo estará como antes …, ou não …, isso realmente não importa …, o que importa são as escolhas que não nos fazem melhores nem piores, apenas no tornam senhores de nossos destinos …

E assim partimos rumo a um destino desconhecido, ansiando por coisas que sequer imaginávamos como poderia ser …, e somente nos restava seguir em frente!