O lado abstrato da Natureza

Presentes em todos os lugares do espaço físico urbano, de diferentes formas, cores e tamanhos, abrigando e sendo abrigadas, lá estão as árvores. De raízes fortes, fracas, troncos pequenos ou majestosos, com muitos ou poucos galhos, flores e/ou frutos, uma delas acolheu sem distinção de cor, sem discriminação de classe, com vento, com sol, com chuva, um montinho enroscado de capins secos.

São dois, ou melhor, duas estrelinhas penosas dividindo o mesmo humilde ninho. Uma aconchegante depressão arredondada e pequena de capim. Santo capim santo seco. Resmungões e famintos, é ver a mamãe, disparam a fazer friu, friu, friu! Não faz muito tempo, questão de semanas, o espaço era imenso, grande para os dois ovinhos da renovação. Chovendo ou não, frio ou não, sol ou não, carinhosamente, a mamãe acolhia-os debaixo de si e eles entendendo o apelo, ficavam quietos. Se por acaso algum deles se rebelasse e rolasse para fora do aconchego, com o bico a mamãe zelosa empurrava-o para debaixo dela. Tratava-os igualmente e não permitia, de maneira alguma, que saíssem de seu poder.

Evoluíram. Ficaram fortes o suficiente, para uma hora qualquer, quebrarem a resistente casca de calcário cozida. Toc, toc, toc..: "Pronto, aqui estamos, mamãe! Apresentaram-se para a vida. "Mamãe está imensamente feliz por saber que vieram ao mundo fortes, sadios e vigorosos". Cada um mais viçoso e alegre que outro. Graças divinas. Cresceram mais um pouco, e agora estão empenujados, comilões e animados para o primeiro voo. "Calma, é o que a mamãe recomenda-lhes, pois, voar não é tão fácil como piar pedindo comida, filhinhos". Deveras, há tempo para tudo.

Mostrando estarem espertos e ávidos para desafiar a liberdade, ficam em pé sobre os dois cambitinhos de pernas, estiram o corpo para frente e para trás, abrem e batem as asas em resposta, dão uns pulinhos e rodopiam no ninho, mostrando que estão em boa forma física. A euforia sem limites, tem por finalidade, dizer para mamãe que são fortes o suficiente para vencer o vento; a chuva, o sol e o primeiro voo nupcial. Porém, os recém-nascidos, filhos da luz e sobreviventes do escuro, com as experiências vividas pelos pais, estão cônscios que a vida permite um sem números de gambiarras, porém, a morte é cruel e qualquer descuido, é vida bela que voa. Se cair do galho, espatifa no chão; e não será a relva que irá lhes proteger e amenizar o baque.

Mamãe é racional, durona, de poucos pios, não perde tempo em dar-lhes um abre-olhos, alertando-os que o primeiro sintoma de maturidade é quando o filhote deixa de ser egoísta e reconhece que a vida não é feita apenas de sim. Em muitos casos, um não oportuno é mais profícuo e necessário ao progresso e evolução do ser de asas, que um sim motivado apenas pelas circunstâncias e aparências. "Friu, friu, friu, friu para ocê, mamãe!"

"Cautela filhinhos, pois não há nada que combata a morte; e o despreparo para voar, pode apressá-la. Comida não é tão difícil de conseguir, quanto passar sem ser visto pelas garras de cães, gatos, humanos e outros predadores". "Ai, que medo"! Mas mamãe também já lhes instrui que quem tem medo de mergulhar nas profundezas das incertezas, preferem continuar nadando no segurança do raso. Sábios, eles entendem que toda advertência resume-se a palavra cautela.

E sempre que ela sai para conseguir uma minhoca mole para os queridos degustarem, eles confabulam: "Mamãe é verdadeiramente educadora e sabe das coisas." Olham-se, sorriem e friu, friu, friu! "Mamãe é guerreira e voa mesmo, para nos alimentar". - respondi o outro.

Acima de dois filhotes de penas, carne, ossos e friu, friu, friu, eles são irmãos bem humorados e se dão muito bem. "Friu, friu, friu, friu filhinhos, aprendi a lição com vocês!"

Orgulho da mamãe é pouco! Porém, a matriarca nunca deixou de ensinar-lhes que eles são, como família, população ou em sociedade, a soma de suas ações e gregarismo. Este foi o ensinamento, o amadurecimento necessário e bastou para os filhotes baterem asas e sobreviverem às suas expensas. E tanto a mamãe, quando todos os dois, jamais usaram os ventos alheios. Nunca voaram com as asas dos outros. E deveras, nem precisam; pois, descobriram com o tempo, que as árvores, os frutos e os elementos da Natureza são para todos; e por ser, cada um deles possui a sua iguaria na mesa e o pedaço de terra para esgaravatar, por direito. De olhos abertos, porém fechados para o egoísmo, nunca quiseram saber sobre a quantidade alimento e o tamanho do quinhão de outras espécies de aves e pássaros possui.

Reconhecendo e exercendo-o com severidade, nem precisaram assinar o estatuto da Natureza, que diz que "Todo ser de penas e quatro patas é humilde, simples, igual e justo, até que o pio, o sibilo, o coaxado, o zunido e referências mais não sejam mais autênticas e originais de cada espécie...; e em síntese, por mais densa e perigosa que sejam, qualquer um delas goza da mesma liberdade de voos, caminhadas e gorjeios nas matas e florestas".

- E em espaços urbanos também, mamãe... não esqueçamos nunca da lição. Friu, friu, friu...

Estão adultos, são grandes e sábios pais, mas não esquecem nunca, as manias e legados que receberam quando eram filhotes...; vez e sempre, abram as asas e dão um abraço bem achegado, na mamãe. Se por um lapso de memória, esquecem, ouvem: "venham, cheguem mais perto; e tragam os meus netos também...; família assim, obediente, disciplinada, ordeira e cada um assumindo o seu papel no nicho ecológico, dá gosto de dizer "eduquei no passado, continuo sendo educadora e sou integrante dela, no presente".

E quê lindo e divino presente a Natureza contemplou os integrantes dessa família de penas e incessantes friu, friu, friu...; afinal, voar livremente, sem as amarras e preocupações conscienciais que as prendem as lufadas de ventos não vencidas, ainda é o salutar balsamo de gorjear a liberdade plena. E obviamente, faz sorrir os corações dos honestos.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 24/11/2017
Reeditado em 24/11/2017
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