O PIOR DIA DE UM HOMEM LIVRE - UMA UTOPIA

À cabeceira da cama, meu Smartphone toca o sinal de despertar. Seis da manhã, segunda-feira. Acordo imediatamente, volto-me para minha louríssima esposa-camarada, também já acordada, que me brinda com um belo sorriso alvar - até seus lindos olhos azuis sorriem - e o costumeiro cumprimento matinal:

- Bom dia, querido camarada! - amo aquela expressão e ela o sabe.

Retribuo-lhe o sorriso e o cumprimento, seguido de um rápido beijo, quase protocolar, o mais comum entre pessoas casadas e com filhos mas que ainda sentem necessidade de contato íntimo. A seguir, enquanto ela vai ao banheiro do quarto (não se trata de cavalheirismo, execrável expressão do maldito machismo, e sim de pura biologia que se aprende na escola), eu vou aos aposentos das crianças, para acordá-las para um novo dia. Entre seus resmungos, começa a diversão. O quarto dos meninos, como sempre, é o primeiro; o mais velho (11 anos), também como sempre, levanta e vai cumprir suas tarefas de higiene de cara fechada e sem dar uma palavra, enquanto começo a fazer cócegas e dizer bobangenzinhas ao caçula (7 anos), até que ele finalmente desperta de vez e levanta, ainda rindo. Ao sair do quarto, também rindo, feliz com nossa prole, vejo minha querida esposa e camarada vindo em minha direção, cabelo enrolado na toalha, que me diz, como sempre:

- Deixe as meninas comigo, camarada, e vá logo usar o banheiro. Lembre que (começo a falar ao mesmo tempo que ela, antiga piada íntima nossa) "Cinco minutos lavam o corpo e não empobrecem a Pátria". É uma brincadeira nossa isso de falar ao mesmo tempo, mas levamos este e os demais lemas do Partido realmente a sério.

Após as necessidades fisiológicas, higiênicas e o banho, saio com meu confortável roupão e sandálias, chegando à cozinha. Pergunto só por perguntar:

- Precisa de ajuda, querida camarada?

A bela apenas sorri, enquanto retira o pão quentinho da moderna máquina panificadora doméstica, ainda uma novidade nas Lojas Estatais (ela odeia comprar pela internet, quer, precisa ver e tocar, fazer perguntas, ser convencida). O café começa a encher a cozinha com seu aroma delicioso. Vou à geladeira e começo a apanhar frios, geléias, manteiga, iogurte, enquanto a vejo, após colocar os pãezinhos quentes e crocantes no cesto térmico da mesa, dispor com sua graça natural os pratos, xícaras e talheres e escolher frutas para o desjejum, enquanto os ovos cozinham (nada de frituras), além dos indispensáveis cereais. Me vem à mente outros dos lemas do Partido: "Dois camaradas bem alimentados valem por vinte coitados". Não há como eu concordar mais. À mesa, pouca conversa, há um dia que precisa ser produtivo pela frente. Exceto quando toca a campainha do nosso confortável apartamento de três quartos (todos com banheiro próprio). Minha esposa-camarada, que está mais perto da porta e não por a vermos como uma criada, vai atender. O mais velho sussurra "xi, fomos sorteados de novo". Todos rimos baixinho. Ela volta acompanhada do Comissário do Prédio, um ex-policial, grandalhão e já um tanto idoso. Porta uma feia pistola na cintura, pois um de seus Deveres é nos proteger em caso de necessidade, afinal, não se pode (nem é preciso) possuir armas no Brasil moderno. Ele se aproxima da mesa, olha para as crianças com um ar fingidamente zangado, funga algumas vezes e diz:

- Sinto cheiro de subversão. Há algum Inimigo do Povo aqui?

As crianças deliram de rir. Nem mesmo nós conseguimos nos conter. Exceto pela menina caçula (4 anos), que fala, muito séria:

- Não, Camarada Vovô (todos o chamam assim, é muito querido no prédio), mas se aparecer um eu juro que denuncio!

Ele, ainda com ar pretensamente zangado, diz:

- É bom mesmo, Pequena Camarada, é bom mesmo, senão...

Então não aguenta mais olhar para aqueles grandes olhos azuis, cópias fiéis dos da mãe, e também ri. Após alguns comentários sobre futebol, se despede, não sem antes ter verificado a impecável limpeza e saudável aparência e aroma do apartamento, além da qualidade do desjejum. "Dois Camaradas bem alimentados..."

Desjejum completo, as crianças seguem para escovar os dentes e usar o antisséptico bucal. Sigo para a mesma tarefa logo atrás de minha adorável esposa-camarada. Olho de relance para o relógio da sala: seis e meia. Fazemos isso na mesma pia e ao mesmo tempo, eu e ela, pois isso economiza água e energia. "Quanto menos se desperdiça, mais se tem". Outro sábio lema do Partido, aliás, que vela por nós incessantemente, da concepção à morte. Logo que terminamos nossa higiene final, vamos, ainda de roupão, aos quartos das crianças, ajudar as mais novas a se vestir e calçar. Isto feito, voltamos ao nosso quarto para fazer o mesmo. Quando ela despe o roupão para se vestir, não resisto e a abraço por trás, apalpando-lhe os seios firmes (inacreditável seios assim numa mãe de quatro filhos, penso, para logo a seguir me recriminar por tal demonstração, mesmo que íntima, de odioso preconceito). Ela ri, algo excitada, não há como disfarçar isso:

- Não, camarada, agora não dá.

E se desvencilha, ante minha fingida resistência. De fato, temos que nos vestir logo. Meio que por hábito, olho para o Smart na mesa de cabeceira e falo  apenas "hora", que de imediato aparece na tela. Doze para as sete.

Antes das sete, após desligar o ar condicionado ("Energia poupada é Pátria recompensada"), já estamos todos no elevador, descendo para a garagem. Ao chegar, nos dirigimos à nossa vaga, perto do elevador porque temos crianças, o xodó do Partido, afinal, "A juventude é o futuro do nosso futuro", apregoa outro dos lemas. Logo estamos abrindo as portas do nosso elegante SUV, que merece alguns parágrafos só para si:

Quando casamos, após os exames e entrevistas de praxe, efetuados pelo CSP, o Comitê Social do Partido, um dos mais importantes e prestigiados que, entre muitas atribuições, verifica a compatibilidade física, genética, política, profissional e psicológica entre os postulantes a uma Licença de Casamento, recebemos como Presente do Estado um carro popular 1.0 duas portas básico, ou seja, o necessário a um jovem casal de Trabalhadores, membros do Partido e que declararam o desejo de ter filhos. Ficamos com ele até o limite máximo, cinco anos - após este prazo o Estado declara qualquer veículo de uso civil como "vencido" e o substitui por um novo, mandando o velho para o desmanche e reciclagem. Faz sentido, as fábricas precisam produzir ou haverá desemprego; como já tínhamos dois filhos e a Enfermaria Estatal da fábrica em que minha esposa-camarada trabalha já havia atestado nova gravidez, dirigi o carrinho pela última vez até o CEDV, o Centro Estatal de Distribuição de Veículos, ficando muito surpreso - ainda era muito jovem, digo em minha defesa - quando, ao invés de receber outro carro igual, me foi entregue pelo atencioso e educado funcionário um de cinco lugares e quatro portas, motor 1.4, com ar condicionado regulável e bagageiro com mais ou menos o dobro do tamanho do anterior. Algo envergonhado - não me julgava merecedor de honrarias, que era o que me parecia, um carrão daqueles - perguntei-lhe a razão. Ele:

- Mas Camarada, não crê mais na sabedoria do Partido? Cuidamos de nossas crianças! E as suas já sofreram demasiado em invernos frios e verões abafados, sem mais do que um aquecedor e um ventilador. Eram tempos difíceis mas, como vê, "A Revolução não pode nem deve parar"!

Cumprimentei-o e parti com o novo carro. Em minutos já parecia que jamais havia dirigido outra coisa, aquela direção hidráulica também era uma delícia, a única coisa que levei algum tempo para me acostumar foi o câmbio automático. A partir disso foi só alegria. Cerca de três anos depois, no entanto, minha esposa-camarada anunciou nova gravidez, devidamente confirmada. Antes de seis meses, fui chamado à sala do Comissário de Fábrica em meu local de trabalho, a EECC, Empresa Estatal de Construção Civil, unidade 112. Enquanto aguardava na sala de espera, algo nervoso, tentando imaginar se receberia alguma descompostura por algum erro que não conseguia de modo algum localizar, fui convidado a entrar. O Comissário me convidou com um gesto cortês a sentar diante dele:

- Como está o trabalho, camarada?

- Está indo bem, Camarada Comissário, mas sempre poderia melhorar.

- Como assim? O que falta, camarada? - pareceu surpreso.

- Não sei ainda, Camarada, mas estamos sempre pensando em maneiras de produzir mais rápido sem rodar no Controle de Qualidade.

Ele sorriu largamente:

- Sua equipe é de ponta, camarada. - breve pausa - Mas quem sou eu para dizer que não tentem melhorar ainda mais, é exatamente este o espírito do Partido! Sempre avante! - era outro dos Lemas. Levantei e repeti, com entusiasmo:

- Sempre avante, Soldados do Povo! - então, ante seu olhar benevolente, tornei a sentar e aguardei o que ele tinha a dizer.

- Camarada, consta em meu Controle de Pessoal que a camarada sua esposa aguarda o quarto filho, está correto?

- Já vai de sete meses, Camarada Comissário - respondi, orgulhoso. Ele então disse:

- Após completar seu turno, vá ao CEDV - ele pronunciava "cedív"; nossa empresa ele chamava de "éque" - trocar de carro, no seu só cabem cinco.

Deu vontade de protestar, gostava demais do carro mas, claro, seria antipatriótico contestar a sabedoria do Partido.

Ao chegar à CEDV, qual não foi a minha surpresa ao ser recebido pelo mesmíssimo funcionário da vez anterior:

- Ué, já de volta? Pensei que levassem cinco anos para trocar... - fingiu surpresa, ar divertido. Como fingiu consultar minha ficha no computador. Arreganhou um sorriso para outro funcionário no guichê ao lado e disse:

- Aí, camarada Jorge, tem algum ônibus disponível para o nosso camarada aqui? Parece que vai precisar - ambos riram, bem como outros que, como eu, aguardavam seu novo veículo. Sorri polidamente, mesmo não gostando de ser alvo de gracejos. Ele pareceu notar e, saindo de seu posto, me conduziu à Garagem Popular, onde ficam os veículos à espera de seus novos usuários - porque DONO é o Estado, do qual somos todos apenas uma pequenina parte - e, em tom sério, falou:

- Camarada, desculpe o bom humor, é que você é um dos meus últimos clientes, acabo de ser promovido à chefia do Setor de Distribuição.
Claro, fiquei feliz por ele e meu sorriso, agora genuíno, se alargou. Apertei-lhe a mão e o cumprimentei pela por certo merecida promoção. Após agradecer, demos mais alguns passos e ele me mostrou o novo veículo, que seria usado por mim e minha família pelos anos seguintes: um SUV prata, amplo e belíssimo, motor 1.8, com todos os acessórios. Foi um esforço supremo o que fiz para manter a compostura, tinha vontade de beijar o veículo, de tão lindo. Ainda gostamos - minha família o adorou e adora - muito dele, por um lado lastimo um pouco ter de trocá-lo em breve pela versão mais moderna, com motor 2.0, visual renovado e um monte de airbags e outros dispositivos de segurança, além do novo ar condicionado digital multiponto, computador de bordo com GPS com auxílio à navegação e tantas outras coisas elétricas e eletrônicas a bordo que acho que ainda vamos, eu e minha esposa-camarada, ter que frequentar algum curso online para operar tudo corretamente.


Claro que não preciso de chave, pois é meu dia de dirigir - o fazemos em dias alternados, para não haver machismo ou qualquer outra forma de desigualdade/humilhação social - sequer para abrir as portas ou mesmo ligar o veículo, apenas abrir a porta e apertar o botão de partida do motor. Quem furtaria um carro? Afinal, "Onde não há carestia, não há vilania". E, como todo veículo no Brasil, o computador de bordo com GPS está direta e permanentemente conectado à POLITRAN, a conhecida e benquista Polícia de Trânsito, que monitora todo o tráfego de veículos, redirecionando os veículos via cada GPS para que todos possamos chegar ao destino sem engarrafamentos nem acidentes; um eventual criminoso - certamente estrangeiro, pois Brasileiro algum precisaria fazer algo tão monstruoso - que cometesse uma loucura assim seria detido após rodar apenas uns 100 metros, para proteção da família atacada, primeiro pelo desligamento do motor e trancamento das portas e janelas por controle remoto, e a seguir seria perseguido e capturado. Mas a POLITRAN não é tão bem vista apenas por  proporcionar excelentes serviços de segurança à população, até houve ocasião, amplamente noticiada, quando um Camarada com a esposa já em trabalho de parto, viu se abrir diante de seu carro um corredor perfeitamente reto até o Hospital do Povo mais próximo e, logo a seguir, uma viatura com sirene ligada à sua frente, impelindo o motorista a aumentar a velocidade, tudo em nome da nova vida que estava chegando. Sim, ser integrante da POLITRAN é ser bem-vindo em qualquer lugar, verdadeiros anjos a zelar pelo Povo.

Seguimos por uma das novas vias-padrão de quatro pistas. Como temos crianças para deixar na Escola Estatal de Turno Integral, está afixado nos vidros dianteiro e traseiro o adesivo azul, preferencial para uso da via mais próxima ao acostamento, além de as placas serem da mesma cor. Sete e vinte em ponto, estacionamos diante da escola. Descemos todos, nos juntando a um dos grupos de pais que confiam seus filhos à Comissária Educacional, que os redireciona aos seus respectivos professores. Torço para que não nos entregue a maldita ficha azul, que nos fará ter que conversar com ela à tardinha, quando buscamos as crianças; o mais velho anda numa fase difícil, afinal, está se tornando adolescente. Nossa vez, bingo, expressão severa e ficha azul. Que "maravilha"...

Outra vez no carro, enquanto a levo para o trabalho, na Usina Estatal de Desmanche de Veículos, Unidade 99, onde minha esposa-camarada opera uma máquina elétrica que comprime chapas de aço até estarem prontas para cair no alto-forno, conversamos:

- Camarada, será que este pesadelo vai terminar logo ou... - paro de falar, incerto de como prosseguir. Minha esposa-camarada apenas sorri, antes de dizer:

- O querido camarada se recorda de quando tinha onze anos?

- Mas aí não vale, a Revolução ainda estava no começo, ainda não éramos realmente livres! - protesto.

- Claro, camarada, é uma desculpa que você pode usar sem se envergonhar, mas nosso filho...bom, ele tem desde que nasceu todas as oportunidades para ser o que quiser e puder, deveria usar suas energias para aproveitá-las ao invés de ficar dizendo bobagens e arranjando confusão. Nos arranjando confusão... - aduz, com ar de desagrado. Respondo:

- Bem, camarada, é nosso filho, para o melhor e para o pior. Se ele erra, então estamos permitindo que erre. Talvez devamos fazer uma autocrítica. De algum modo estamos, ainda que inconscientemente, praticando sabotagem?

Ela não responde. Claro, a palavra tem uma carga tão negativa que ninguém suporta ouvi-la dirigida a si (mesmo eu a pronunciei com enorme desagrado). Assim, ela permanece em silêncio durante o resto do trajeto. Sequer me beija ao desembarcar, limitando-se a um "até mais tarde, camarada". Sigo para o meu trabalho algo entristecido, querendo saber o que disse de tão errado e sem encontrar resposta que me pareça válida. É uma pergunta, por desagradável que seja, que merece ser feita, não? Ou Patriotismo se torna apenas uma palavra oca...

Doze para as oito. Estaciono em minha vaga (igualmente bem localizada, tenho prioridade pois preciso buscar esposa e quatro filhos após sair e o Estado deseja que passemos tanto tempo juntos quanto Ele puder proporcionar). Ali pelas dez para as oito, estou com a maioria do meu grupo, recebendo, checando e colocando os Equipamentos de Proteção Individual (é proibido trabalhar sem EPI completo) quando uma coisa rara - e que detesto, como qualquer Trabalhador - acontece. Um dos melhores funcionários, conhecido por seu zelo, o Camarada Augusto, que já recebeu mais de uma dúzia de vezes o chamado P3 (Prêmio Prestes de Produtividade) fala pelo rádio do capacete, voz calma:

- Camarada Supervisor, Camarada Supervisor, ocorrência 2, setor onze.

Eu odeio a maldita 2. Significa "EPI danificado/perigoso, impróprio ao uso". Olho para o relógio na parede. Três para as oito, quando começa o turno. Uma 2 significa que vamos atrasar.

O Camarada Supervisor chega quase correndo (só não o faz de fato porque é contra as normas de segurança, afinal, pode tropeçar, cair de mau jeito e "Trabalhador ferido, trabalho comprometido"). Em instantes um TST (Técnico de Segurança do Trabalho), se reúne a nós. Mal o camarada Augusto começa a mostrar uma das modernas e resistentes luvas de trabalho, com um rasgão que vai da raiz de um dos dedos até metade da palma e uma suspeitíssima mancha acastanhada na área danificada ("sangue", me sussurra o camarada Otávio, membro da nossa equipe, cobrindo com a mão enluvada o microfone do rádio), ouço uma voz logo atrás de mim, ao mesmo tempo em que vejo os Camaradas Supervisor e TST empalidecerem:

- O que aconteceu? O turno está começando, por que estão aí parados?

Nem me volto, conheço a voz: o Camarada Comissário Político! O Camarada Supervisor respira fundo e lhe diz, erguendo a luva danificada:

- Ocorrência 2, Camarada Comissário. Não sei como isso...

- Ah, o camarada não sabe. Em sua opinião, quem deveria saber? Eu, um mero Comissário Político? O Camarada Comissário-Chefe? O Camarada Secretário-Geral do Politburo? O Camarada Comandante da Marinha? Quem, tenha a bondade de esclarecer?

Cada vez mais nervoso, torno a olhar para o relógio da parede. Oito e cinco ou quase isso, é analógico. Pelo andar da carruagem, vamos perder um tempão para o camarada Augusto ganhar uma nova luva e arriscar-se a ficar sem outro P3, algo que sempre nos orgulhou (quando ele ganha, a turma toda também é prestigiada, pois todos sabem que "A honraria a um membro enaltece o grupo". O Camarada Supervisor não sabe o que dizer. O Camarada Augusto também tem pressa, tenta minimizar:

- Camarada Comissário Político, é só o que está fora das normas, basta me dar outra luva e...

Sim, ele quer mesmo começar logo o turno, grande Augusto. Se isto se arrastar demais, ficaremos - ao menos que eu me lembre - pela primeira vez abaixo da cota diária, ou seja, assentar com perfeição no mínimo cem metros quadrados de tijolos no turno de nove horas (e invariavelmente o nosso trabalho é aprovado com louvor pela equipe local do CPNT - Comitê Popular de Normas Técnicas) e meia, com um intervalo de meia hora para almoço e descanso e outros dois de quinze minutos para descanso e um lanche leve.

- Calma, camarada Augusto - diz o Comissário Político, com um leve sorriso benévolo - bem sei que todos querem logo retomar suas atividades, bem sei que são todos patriotas leais, bem sei que todos votaram em mim, mas preciso apurar o que está acontecendo aqui, se foi desleixo, sabotagem ou o quê. Compreenda, sim?

O camarada Augusto nem responde, apenas fecha a cara. Nenhum de nós teme o Comissário Político, o elegemos porque o respeitamos mas sabemos que apenas criminosos como sabotadores, agitadores e boateiros têm algo a temer de um Comissário Político. Trabalhadores leais e competentes como nós nada temem porque nada têm a esconder. Já os casos do Supervisor (trabalhador promovido) e o do TST (especialista promovido) são diferentes, justamente por terem responsabilidades que abrangem praticamente todos os aspectos de uma equipe (Supervisor) ou mesmo várias (TST); entre suas diversas funções está a verificação de todos os equipamentos e ferramentas empregados por uma (ou mais) equipe(s). Para casos assim há um ditado não-oficial entre nós, Trabalhadores, "o medo vem com as barras". Explico: um Trabalhador comum usa um capacete branco liso, sem qualquer adereço; um Mestre de Obras (eu, por exemplo) tem uma barra vermelha na frente e minha função é, enquanto trabalho junto, faço a chamada pré-supervisão (chamamos de PRESUPER) do trabalho executado pelo resto da equipe, mas sem prerrogativas de líder nem qualquer bonificação extra, fui sugerido para a função pelos camaradas da equipe, aceitei e o Camarada Supervisor concordou, apenas isso. O problema é quando se tem mais de uma barra (como o Supervisor, com duas, e o TST, com três); eles sim, ganham coisas como férias remuneradas no exterior e direito a votar e ser votado nas reuniões do Partido, podendo até atingir altos cargos na República. Por exemplo, o atual Ministro da Produção (MinProd) começou a vida como um simples montador de motores em uma fábrica de tratores, daí foi subindo. A maioria de nós, no entanto, não se envolve com isso e prefere morrer a usar mais de uma barra, justamente por não ter estômago para cenas como a que está prestes a se desenrolar. O Comissário Político, dirigindo-se a nós, agora todos agrupados a um canto, com ar de poucos amigos:

- Camaradas, não sei como expressar o quanto sinto pela interrupção mas todos sabem que é necessária, não?

Claro que sabemos, estamos apenas aborrecidos pela perda de tempo. Novamente fica sem resposta melhor que nossas carrancas de desagrado. Então, após um suspiro, ele se dirige ao Supervisor e ao TST:

- Me acompanhem, camaradas, vamos dar uma olhada nos armários dos EPIs, sim?

Ficam a poucos metros, podemos acompanhar tudo de onde estamos.

- Camarada Supervisor, quando foi a última vez que inspecionou um por um, como é o seu Dever - frisa - os equipamentos?

O homem está verde. Balbucia algo como "da última vez que"...

- Qual última vez? Quando?

O homem está tão nervoso que abre a boca várias vezes mas sem emitir som algum. O Comissário se volta para o TST, que acompanha tudo, parecendo horrorizado:

- E o senhor, Camarada? Quando?

- Camarada Comissário, verifico os equipamentos de dez equipes diferentes, fica difícil saber qual...

- Sério? O Camarada não tem uma Planilha? Está me dizendo que o Estado falhou com o senhor, camarada?

O homenzinho se cala, vermelho como um pimentão. Então o Comissário se volta para nós, olha rapidamente para os capacetes, vê a barra vermelha na frente do meu e diz:

- Camarada Mestre de Obras, o senhor tem uma planilha?

Sem desfazer a carranca (tinha acabado de verificar outra vez o relógio, quase oito e quinze), abro com evidente má vontade o zíper do bolso da camisa, embaixo do colete de utilidades, e saco o Smart. Mostro o aparelho sem dizer uma palavra.

- Poderia por gentileza abrir nas atividades de ontem para mim, camarada?

Faço o que ele diz. Entrego-lhe então o aparelho, ainda sem falar. Ele o consulta. Olha então para os outros dois:

- Pois é, o Camarada Mestre de Obras está com a planilha em dia. Camarada Supervisor, poderia ler em voz alta este parágrafo aqui?

Gaguejando, o pobre homem faz o que lhe foi solicitado, lendo com voz trêmula:

- CHECAGEM DE MATERIAL: todos os Camaradas reportaram ferramentas e EPIs em ordem. Verificação visual de material de construção mostra tudo em ordem (logo abaixo as fotos - usando a câmera do próprio Smart - com data e hora, que faço por ser minha função).

- Pois é, camarada Supervisor. Tudo em ordem. EM ORDEM!

- Camarada Comissário, é lógico que o turno da noite...

- Sim, sim, muito lógico, claro que alguém do turno da noite fez cagada e não reportou. Uma pergunta: a que horas o camarada chega aqui?

- Às sete, Camarada, até antes, se for verificar verá que nunca me...

- Claro que nunca se atrasou, camarada, assim como o camarada da segurança; é meu dever notar este tipo de discrepância. Mas o que eu quero mesmo saber é o que ambos ficaram fazendo hoje desde que chegaram, porque verificar as EPIs uma a uma, conforme o Regulamento, é algo que sei que não fizeram. Estou errado?

(Dois homens conversam animadamente enquanto tomam café preto; um deles conta ao outro suas fantásticas proezas sexuais com uma estagiária estrangeira e as inéditas habilidades por ela demonstradas. Ambos riem. Um diz "nossa, essa sim, me deu a maior canseira, vou te contar". Mais risadas.)

O relógio da parede já mostra quase oito e meia. O dia já se me afigura como um dos piores de minha vida, tendo começado com o diacho da ficha azul, prosseguido com aquele problema no carro com minha esposa-camarada e agora...agora isso!

Então finalmente emerge da fábrica um dos aspiras ASTs (aspirantes a Auxiliares de Segurança do Trabalho, uma barra no capacete) com um par de luvas sobressalentes para as manoplas do Camarada Augusto. No que ele as está calçando, interrompo a mijada que o Comissário continua a aplicar no Supervisor e no TST. O aspira parece estar se divertindo com o showzinho. Digo:

- Camarada Comissário, estamos prontos para começar (o camarada Augusto ergue e abana as duas mãos enluvadas, tentando me ajudar), cada minuto que perdermos nos coloca mais perto de falharmos em cumprir a nossa Cota Patriótica, o que nos parece sabotagem.

O Comissário se volta para mim, ar irritado:

- Camarada Mestre de... - parece pensar - ...está bem: Patriotas, avante!

- Soldados do Partido! - bradamos em uníssono e nos dirigimos às ferramentas e logo a seguir para o local que nos foi designado pelo Camarada Engenheiro. Quase quarenta minutos de atraso, vai ser duro...

Está indo mal. Toca a sirene para o almoço e, num golpe de vista, calculo que devemos ter colocado menos de quarenta metros. Normalmente estamos perto de ou, em dias excepcionais, ultrapassamos a metade da cota. Tive que parar meu próprio trabalho várias vezes pela manhã para exortar este ou aquele Camarada (Augusto em especial, que está claramente se sentindo culpado por tudo aquilo) a ir com mais calma, argumentando que "qual seria o mal maior? Deixar de cumprir toda a cota de hoje e compensar amanhã ou cumpri-la só para ver nosso trabalho ser condenado pelo CPNT? Prefiro perder uma hora do que estragar tudo, não somos sabotadores, certo?"

Os homens não querem ir almoçar, preferem ir tocando direto. Discordo e meu argumento é irretorquível: "Dois Camaradas bem alimentados..."

Ficamos num meio-termo, que acabo aceitando (repito, não sou chefe nem líder mas alguém tem que ter voz ativa, pois o Supervisor não dá mais as caras durante a manhã toda), ou seja, cada um come e bebe o que puder em no máximo dez minutos, depois toca direto assentar tijolo de novo. Espero que ninguém passe mal, mas me consolo na ciência de que homens fortes, saudáveis e bem alimentados, quando devidamente motivados, não adoecem. E a motivação é a própria honra coletiva de nossa equipe!

A tarde passa voando, ninguém usa mais do que dois ou três dos quinze minutos de cada intervalo (ambos são à tarde, pois o Partido presume - a meu ver, acertadamente, como sempre - que todos fizeram um bom desjejum pela manhã; apenas à tarde se começa a sentir o cansaço e precisar mais de hidratação) para beber suco de frutas, e o nervosismo diminui bastante. O Supervisor aparece outra vez, com ar envergonhado; dá um que outro palpite (que mal ouvimos) e trata por fim de ficar quieto, observando.

Finalmente toca a sirene, anunciando o desfecho de mais um dia de trabalho. Volta a tensão, enquanto o Camarada Engenheiro se aproxima com seu Medidor e três Camaradas Especialistas do CPNT. Estes, com seus equipamentos eletrônicos, escaneiam as paredes recém construídas, em busca de falhas. Estou com o coração quase saindo pela boca, basta encontrarem um único erro grave que não percebemos e arriscamos perder todo o esforço e sofrimento do dia. Claro, não seremos acusados de nada, no máximo uma leve admoestação por termos deixado nossa impaciência causar prejuízo ao Estado. E é precisamente isto o que todos tememos, pois causar prejuízo ao Estado equivale a prejudicarmos a nós mesmos, nossos familiares e cada Cidadão da República Democrática do Brasil. Creio que eu mesmo jamais me recuperaria inteiramente de tamanha vergonha. Não acredito que haja Gulag ou pelotão de fuzilamento (como li nos livros de História) que seja mais temível do que algo assim. Respiro aliviado, o Camarada Chefe da equipe do CPNT faz sinal com o polegar ao Camarada Engenheiro: tudo de acordo com as normas. Então ele aciona finalmente o seu Medidor que, com seu equipamento, segue para a verificação.

Cem metros e meio! Cumprimos a Cota Patriótica, mesmo contra todas as probabilidades! O Camarada Engenheiro fala ao rádio com entusiasmo, contagiando a todos que o ouvem. Pouco depois o Camarada Comissário Político reaparece, sorridente:

- Não é à toa que o Estado do Povo deposita tanta confiança em seus Cidadãos. O que os Camaradas fizeram hoje será devidamente reportado ao Comitê da construtora! - olha de modo venenoso para o relapso Supervisor, e acrescenta:

- O que todos fizeram - e já o sei - será reportado. - o Supervisor parece encolher diante de nossos olhos. "Do que ele tem tanto medo?", penso, "no pior caso volta a trabalhar em uma equipe, o que tem de mais?"

Apanho o Smart e tento começar o relatório do dia. Está difícil, a mistura de esforço extra, pouca alimentação e hidratação cobra um alto preço, minhas mãos tremem. O Comissário Político nota:

- Algum problema, camarada Mestre de Obras?

- Não, Camarada Comissário, eu consigo.

Ele estende a mão:

- Me permita ajudá-lo, Camarada. Vamos fiscalizar tudo, o Camarada relata e eu escrevo, sim? Todos aqui devemos nos ajudar. "Todos juntos, lado a lado, rumo ao futuro". - acrescenta.

Caso encerrado, enquanto o restante dos Trabalhadores vai limpando as ferramentas, entrego o Smart e dito o relatório ao Comissário Político, muito melhor digitador do que eu, aliás, pois mal falo e já está registrado. O teor é puramente técnico, não há margem para descrever o quão terrível aquele dia foi para nós. Nem interessa, o que queremos é voltar para as nossas famílias. Após as fotos do material, já devidamente organizado e limpo, trato de despir e jogar as roupas de trabalho imundas no cesto da lavanderia; após um rápido banho, me visto com as roupas limpas e de ótima qualidade nas quais cheguei e praticamente voo até o SUV.

Sigo até a usina onde trabalha minha adorada esposa-camarada. Ela continua com mau feitio, mal entra no carro e já pergunta, ar contrariado, pelos "dez minutos de atraso, camarada, há explicação aceitável para isso?"

Bem, há. Resumindo bem, trato de inteirá-la sobre meu dia. Ela demonstra  alguma simpatia. E Patriotismo, claro:

- Nossa, que pena terem arruinado seu trabalho dessa forma. Para mim foi sabotagem daquele Supervisorzinho e do TST. Se fosse eu, os denunciaria.

Não respondo. Que sentido há em fazer algo assim? Não vivemos em uma tirania ou qualquer sistema repressivo, desses que a gente lê nos livros e vê nos filmes. O Estado só quer o bem dos Cidadãos, mesmo os que cometem erros, como foi o caso do Supervisor e do TST. Após a espinafrada que levaram do Comissário Político, tenho absoluta certeza de que serão mais cuidadosos com suas funções. Mas ela insiste:

- Não pensa assim, Camarada?

Estou cansado demais para explicar e acabo de lembrar que ainda temos que apresentar a ficha azul na Escola, e isso nunca é bom. Para não deixá-la sem resposta, digo:

- Não quero pensar nisso agora, Camarada, estou cansado de verdade. Vamos apenas apanhar as crianças e jantar, pode ser?

Ela se fecha novamente. Talvez tenha lembrado da terrível palavra que falei pela manhã, mas mesmo para me desculpar falta energia. Que dia, cada vez pior...

Chegamos à escola com quase dez minutos de atraso. A Comissária Educacional que nos atende não é a mesma que nos entregou a ficha azul. É uma Camarada de meia idade, cabelo pintado de louro claríssimo contrastando com a tez morena e feições indígenas. Ah, a vaidade! Certas coisas nunca mudam, mesmo com uma Revolução bem sucedida. Com ar irritado, pergunta:

- Qual a razão do atraso? Já posso ver nos pais a razão do desleixo e falta de Patriotismo dos filhos.

É o que basta. Já aguentei demais, e sei pelo que tive que passar:

- Camarada Comissária, faria o favor de ligar para o Comissário-Chefe da Unidade 112 da EECC? Tenho certeza de que ele lhe explicará a razão, por certo está informado pelo Comissário Político.

- Ah, problemas com o Comissário Político, então? É mesmo um caso perdido. Um instante, unidade 112, certo? - e apanha o telefone ligado ao computador, selecionando um número na tela touchscreen e clicando nele. Com um sorriso perverso, coloca no viva-voz, nos mandando ficar em silêncio, com o velho gesto de colocar o dedo indicador cruzando os lábios fechados. Atendem no segundo toque:

- Comissariado da 112, pois não, camarada?

- Camarada, preciso de informações sobre um possível transgressor que trabalha aí, se incomoda? - novamente me olha, o sorrisinho malévolo a lhe dançar nos lábios grossos e secos. A fuzilo com os olhos mas continuo em silêncio. Como se o dia pudesse piorar mais...

- Pois não, Camarada, qual o nome?

Ela diz meu nome completo ao telefone. Ruído de cliques em um teclado. Logo a seguir, o homem do outro lado da linha pergunta, repetindo meu nome:

- Tem certeza de que é este nome? Pode me passar o número do Cartão de Cidadão?

Ela digita novamente, depois repete meu número ao funcionário. Este:

- Confere. Aguarde um instante, camarada, estou transferindo sua chamada.

Começa a tocar uma daquelas musiquinhas enjoativas de chamada em espera. Ela novamente me olha e diz, com ar mais maligno que nunca:

- É, já vejo por que aquele peste do seu filho...

A musiquinha para, começa o som de chamada de algum telefone ou ramal. Atende uma voz conhecida:

- Camarada, qual o problema?

- Camarada, o problema está sentado bem aqui na minha frente e...

- Um momento, o nome e número que a camarada passou à Central estão corretos?

- Sim, Camarada, estão - e os repete.

- Perfeito. A camarada poderia agora me passar o seu nome e número?

- Por quê, Camarada Comissário? Já os informei à Central... - parece algo desconcertada. O sorrisinho sumiu.

- Só para ter certeza. - a voz é cortês e ela responde. - Bem, o que ele lhe fez ou disse, camarada? Seja específica, por favor.

- O que ele fez? Ele me deixou aqui plantada por uma meia hora e tem um filho que...

- Meia hora? Tudo isso? Tem certeza, camarada? É uma acusação grave a de desperdiçar o tempo do Comissariado.

- Bem...mais ou menos...

- Para qual horário estava agendado o atendimento, camarada?

- Ora, Camarada, para as...deixe ver...hmm...17:50.

- Obrigado, camarada. Poderia verificar o horário de chegada dele?

A Comissária Educacional já dá claros sinais de insegurança.

- Deixa ver...deixa ver...hmm...bem, creio que me enganei ligeiramente, consta que passou na portaria com a esposa às 17:59, mas isso já é um...

- Camarada, me responda apenas: considera que meia hora equivale a nove minutos?

Agora eu é que estou começando a me divertir. Não nego que fiquei com pena do Supervisor e do TST, mas daquela megera, isso não. E vem mais, percebo.

- Não, Camarada, eu apenas queria...

- A camarada queria apenas saber o porquê do atraso, não?

- Hum...é...deve...deve ser isso, sim...

- Pois é com prazer que lhe digo, camarada: este Trabalhador que a camarada está denunciando como transgressor...aliás, ele transgrediu o que, na visão da camarada?

- Ora...ele...ele me deixou esperando aqui por...

- Nove minutos. Realmente, um tempo enorme (o sarcasmo agora é evidente e a falsa cortesia evaporou). Tenho certeza de que a camarada teria resolvido muitos importantes problemas do Estado durante este tempo. Talvez até as várias denúncias que o Comissariado Central de Educação tem recebido contra a camarada, espere, só um minuto (ruído de digitação), sim, onze só esta semana. Que vão virar doze com a que eu mesmo vou redigir ao final desta conversa. A propósito, camarada, pode me informar que horas são agora?

- 18:22, Camarada. - A megera havia murchado totalmente.

- Onde estão os filhos do acusado? Ele está com a esposa, não?

- Estão na sala de espera, Camarada. E sim, a esposa está junto com ele.

- Eles já viram as crianças? Ao menos a mãe?

- Não, Camarada, eu tenho que lhe dizer que preciso...

- Eu é que vou lhe dizer do que precisa, camarada. Um, precisa reunir as crianças com os pais, elas já estão há pelo menos meia hora sozinhas na sala de espera. Ou até mais, me diga, por gentileza: educadoras não têm mais compaixão? Fiquei curioso agora! Ah, e dois, a camarada precisa se dirigir amanhã, às oito em ponto, à Sede do Comissariado Central do Povo, sala 2088, e se apresentar ao Comissário-Chefe Maciel, que já está encarregado do seu caso. Enviarei um relatório sobre esta ocorrência ainda esta noite e...

- Mas Camarada, nós...

- E não me interrompa nunca mais! - berra. - Apenas faça o que lhe disse! Boa noite, camarada. - e desliga.

Já me sinto quase - apenas quase - com pena da mulher que, em poucos minutos, se havia transformado de uma hárpia sanguinária em um mero molusco. Apenas faz um sinal com a mão, nos permitindo deixar a sala. Estendo-lhe a ficha azul. Sem sequer me olhar nos olhos, ela a recolhe e joga  displicentemente em uma gaveta já meio aberta. Saímos, vamos à sala de espera e recolhemos as crianças, que nos recebem com uma mistura de alívio, risos e reclamações.

No carro, indo para casa, minha esposa-camarada começa a rir. As crianças riem junto sem saber a razão, e é claro que não lhes diríamos, seria antipatriótico, estaríamos minando as próprias bases do Sistema Educacional. O mais velho insiste comigo. Respondo-lhe:

- Sua mãe está feliz e pessoas felizes riem. Mas você, meu pequeno Camarada, não tem razão alguma para se sentir feliz, nos fez passar um mau bocado na Escola.

Isso lhe cala a boca. Ele sabe que uma conversa da qual não irá gostar nem um pouco apenas começou.

Chegamos finalmente em casa; ligo o ar condicionado e, enquanto as crianças vão tomar banho, vamos para a cozinha, no revezamento do preparo da refeição familiar. Quando estão todos prontos, um saboroso e nutritivo jantar está servido. O humor de minha esposa-camarada está soberbo e contagiante, em contraste com o que apresentou durante quase o dia todo. Após o jantar e a sobremesa, vamos todos para a sala, diante da TV Led de 68 polegadas. Há muitas opções de canais, nacionais e estrangeiros, mas sempre preferimos os Estatais, não apenas pelo excelente conteúdo mas também por ser todo gravado e transmitido em 4k. Após alguns desenhos animados, todos  invariavelmente educativos, assistimos ao Jornal do Povo, que começa às 20:00 em ponto. Na parte de Notícias Internacionais fico seriamente condoído ao ver as péssimas condições de vida, saúde, educação e trabalho nos países capitalistas, rebotalhos da civilização. A menina mais velha (9 anos) pergunta, chorando após ver a imagem de outra menina mais ou menos da idade dela mas claramente subnutrida, catando restos de comida na saída de um restaurante de luxo, onde comem os ricos:

- Camarada Papai, por que estas pessoas sofrem tanto? Deviam se mudar para cá, iam todos ser felizes igual a nós.

Sorrio para ela, mesmo um bocado contrafeito com uma imagem tão medonha ser permitida em horário nobre, quando as crianças estão assistindo. Meu sorriso não é de alegria pelo sofrimento da pobre criança mas de pensar "como se fosse tão simples, são pessoas corrompidas até a alma pela escravidão e ilusões fáceis que o capitalismo usa para entorpecer mais de metade do mundo, seres assim não seriam mais do que um peso para nós. Um País desenvolvido como o Brasil só pode sobreviver num mundo como o atual se for povoado por pessoas igualmente desenvolvidas como nós, brasileiros. Pessoas que vêem a Verdade Fundamental pelo que ela é, ou seja, se todos abrirem mão sinceramente do venenoso individualismo, se todos se doarem sinceramente ao Coletivismo, todos só terão a ganhar". Mas respondo apenas:

- Não tem jeito, pequena Camarada. É como se eles vivessem em um mundo diferente do nosso. E vivem lá porque querem...

Às 21:00 em ponto acaba o noticiário. Imediatamente começa um tique-taque, que as crianças menores começam a imitar com estalinhos de língua e balançando as cabecinhas. Em seguida aparece uma animação, "O Camaradinha", lembrando às crianças que é hora de escovar os dentes e ir para a cama, se querem ser bons Cidadãos. Uns poucos protestos infantis, uma suave firmeza nossa e poucos minutos depois o lar está silencioso, apenas o ruído baixo que eu e minha esposa-camarada fazemos, lavando a louça e limpando a cozinha. Como ela é mais meticulosa do que eu, deixo-a fazendo sua costumeira inspeção do trabalho feito e vou para o chuveiro. Dentes escovados, deito na cama e abro o livro que estou lendo há semanas, "O Homem Que Abriu Mão de Si Mesmo", de João Wyllys, belo e triste romance sobre alguém que, vivendo num lugar onde todos pensam apenas em si e nos seus, sempre querendo acumular mais, tenta mudar aquela realidade horripilante, tornando-se uma espécie de ilha de bondade. Os obstáculos são cada vez maiores, estou na parte em que o mandam para a prisão, acusado de um crime imaginário, "auto-desapropriação indébita", apenas para calar-lhe a voz e o exemplo. Sigo da parte que deixei marcada, pouco além da metade.

Minha esposa, que minutos antes havia acabado sua inspeção e entrado no chuveiro, sai usando o mesmo robe da manhã. Seu aroma promete maravilhas; seu olhar carinhoso, idem. O estranho mau humor parece ter acabado tão bruscamente quanto havia começado. Pergunta:

- Como está o livro, camarada?

- Bom, camarada, mas triste demais. Como é que podem fazer coisas tão más a uma pessoa tão boa?

- Eu lhe disse, meu querido camarada. E você tem que ver no final, ele...

- Por favor, querida camarada, gostaria de descobrir sozinho.

Ela ri. Adora me pregar pequenas peças como esta. Rio também. Ela me abraça. Me acaricia. Realmente, o problema entre nós parece ter se desvanecido. Não entendo nem como começou, quanto mais como acabou.

Só então os horrores daquele dia caem de uma vez só sobre mim. Duvido que tenha ocorrido outro assim, tanta coisa ruim acontecendo sucessivamente. O atraso para começar o trabalho, o horror de falhar na Cota Patriótica, o horror ainda maior de o serviço poder ser vetado, aquela mulher terrível na escola, tudo desaba sobre mim de uma só vez.

Sei que ela está interessada em fazer amor, mas hoje...hoje não tem como, estou devastado por completo. Simplesmente a abraço, puxo-a mais para mim e...choro. Choro como uma criança. Descrevo detalhes do dia que tive, aos cochichos e aos borbotões, soluçando tão baixo quanto possível, para não acordar as crianças e criminosamente prejudicar-lhes o desenvoplvimento. Ela é uma verdadeira e perfeita Camarada, reprime seus impulsos físicos para me acolher gentilmente, consolando-me com sua voz suave.

Amanhã será outro dia. Por certo um dia normal, ou seja, sem as desgraças de hoje. Amanhã riremos juntos e faremos amor como dois adolescentes. Meu último pensamento, pouco antes de adormecer, que compartilho com ela:

- E amanhã vou mandar um email à TV Estado, reclamando disso de mostrar imagens como aquela da garotinha comendo lixo na frente das crianças!

Ainda a ouço dizer com entusiasmo, enquanto pego no sono:

- E eu quero o couro daquela mulher da escola. Isso não se faz! E nem loura de verdade é, a vaca!


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NOTA - É uma obra de pura ficção. Não sou comunista nem anticomunista (não sigo ideologias, exceto se isso for de per si uma ideologia), apenas quis escrever minha própria Utopia. Talvez um dia faça o inverso, uma Distopia, com mais ou menos as mesmas situações e personagens. Creio que seria interessante.

Outra opção seria descrever o mesmo dia da perspectiva dos demais participantes, em especial a esposa-camarada (esta talvez uma Colega daqui fizesse bem melhor do que eu) e as crianças. Talvez até o Comissário Político que, a meu ver, mereceria um estudo mais profundo.

Grato por ler e comentários são sempre bem-vindos.

Túlio
TÚLIO OZONE
Enviado por TÚLIO OZONE em 23/04/2018
Reeditado em 14/10/2018
Código do texto: T6317069
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