O Sussurro da Alamoa

Conheci Luís ainda na infância. O peste sempre foi mais arteiro que eu. Lembro que me chamava para roubar caju no quintal da vizinha, mas eu nunca gostei de fazer isso porque ficava com medo da velha do cajueiro. Já o desgraçado nem ligava! Acho que sentia prazer em correr riscos, às vezes a dona dava umas vassouradas nas pernas dele, aí era obrigado a pular lá de cima do pé, quase arrebentando a sola no chão.

Na adolescência fomos em muitas festas juntos. Pulamos muitos carnavais. Luís gostava de beber, e de vez em quando eu o carregava de volta para casa, sendo obrigado a ouvir o longo sermão da Dona Sebastiana.

Luís era mais ousado também, conseguia arrancar beijos das mulheres sem muito esforço. Devo ser sincero e dizer que eu até sentia um pouco de inveja disso.

Quando entramos na faculdade as coisas não mudaram tanto. Luís conversava com várias garotas do campus, marcava encontro com duas no mesmo dia. Dividíamos um quarto nesta época. Em muitas ocasiões tive de procurar outro lugar para dormir para que Luís ficasse à sós com suas raparigas.

A vida de Luís deu uma reviravolta quando conheceu Francisca. A moça era o oposto de Luís: recatada, organizada e muito estudiosa. Acho que o rapaz se encantou à primeira vista, porque seu comportamento mudou muito depois do referido encontro. Francisca não dava muita bola pro gaiato mas, conforme o tempo passava, ela foi percebendo que o sentimento nutrido pelo homem era verdadeiro e começou a sentir o mesmo.

Nunca vi um homem tão apaixonado. O modo como a observava, como a admirava e como falava sobre Francisca era muito diferente, havia um brilho em seus olhos, um brilho que eu nunca havia visto. Era o brilho da felicidade.

Obviamente fui deixado um pouco de escanteio, mas Luís jamais deixou de ser meu amigo, e eu estava muito contente por ele.

Não demorou para que o jovem pedisse sua amada em casamento.

A data do casório já se aproximava... então resolvi preparar uma despedida de solteiro. Aconteceria na casa de um colega da faculdade, à poucos metros do mar. Luís se animou com a ideia.

Durante a festa, o rapaz estava bem-comportado. Chamamos apenas os colegas e amigos mais próximos e, obviamente, contratei algumas belas dançarinas seminuas. Era estranho ver Luís rodeado de tantas mulheres e não dar em cima de nenhuma.

— Essa é a ultima vez que eu posso ficar bêbado na vida, então tenho que aproveitar! — Disse ele.

Num dado momento da festa, Luís me chamou para dar uma volta na praia, reclamou que estava sufocado com todas aquelas pessoas. Fui com ele...

Caminhamos descalços pela areia. Havia uma lua cheia no céu que estava extremamente brilhante, quase como o sol, mas sua luz era branca e sombria.

— Nunca achei que se casaria antes de mim. — comentei.

— Também não, amigo. A vida é realmente muito surpreendente. Nunca esperava me apaixonar tanto por uma pessoa, mas, agora, não consigo imaginar uma vida longe de Francisca.

— Me responda uma coisa com sinceridade, Luís. Você não sente nada olhando para aquelas mulheres?

— Sinto, óbvio. Inclusive foi por isso que saí de lá... eu tenho desejos por todas as mulheres bonitas, gosto de sentir seus corpos, vê-las nuas, beijá-las. Porém, meu coração agora é de Francisca, quero passar a vida com ela. Isso me impede de ter esses prazeres momentâneos.

Percebi muita sinceridade nas palavras de Luís. Era realmente um homem transformado pelo amor, um homem que abdicou da vida hedonista por uma vida ao lado de uma única mulher.

Conforme andávamos pela praia, a casa de festa ficava mais longe, até que deixamos de ver qualquer luz elétrica, apenas a lua iluminava o ambiente, anunciando que era hora de voltar.

— Acho que devemos ir. — Eu disse.

— Sim, vamos. E desde já quero agradecer-lhe pela festa, amigo. Gostei muito do gesto e de ver nossos amigos reunidos. Quando for sua vez de casar, irei organizar uma festa assim, mas a minha será melhor, claro! — Luís deu uma gargalhada.

— Estou ansioso por isso.

No momento em que demos meia volta, ouvimos um gemido. Foi um barulho alto, apesar de sussurrante. Era uma voz feminina, grave.

— Que foi isso? — murmurou Luís. — Quem está aí? — Gritou.

Olhamos em volta, mas estava escuro, não víamos absolutamente nada.

Outro gemido ecoou pela praia, com a mesma intensidade. Dessa vez o ruído foi mais prolongado, como se estivesse nos chamando.

— Olhe! Ali! — Apontou Luís.

Havia uma canoa à beira-mar, algo se mexia na praia... de longe não era possível ver que tipo de coisa era, pois aquilo parecia se fundir com a areia.

Mesmo com muito medo, caminhamos até o objeto estranho e, conforme nos aproximávamos, a coisa começava a tomar forma, uma forma humana. Quando estávamos a uma distância suficiente para ver a criatura, percebemos que se tratava de uma mulher, e a primeira coisa que observamos depois disso é que não havia roupas em seu corpo. A moça se ergueu com esforço, pois estava deitada, parecia atordoada.

— Você está bem? — Perguntei, quando finalmente chegamos perto o bastante para enxergá-la.

Era uma mulher extremamente branca, tão branca que sua pele se confundia com a cor da areia. Deveria estar por volta de seus vinte anos, não mais que isso. Alta, de cabelos dourados como uma polpa de manga madura, olhos azuis, extremamente claros. Seu corpo era escultural, um deleite para os olhos. Não havia nenhum pelo abaixo do pescoço. A pele, linda, limpíssima, sem nenhum tipo de imperfeição, parecia um veludo macio e branco.

Por um instante, vi-me paralisado admirando sua beleza extraordinária. Fiquei excitado. Cada célula em meu sangue queria possuí-la.

— O que aconteceu com você? — Perguntou Luís.

— Eu... eu não sei. — Disse a estranha. Sua voz rouca era sussurrante, como se estivesse exausta.

— Como é seu nome?

A moça nos olhou com um semblante entristecido e confuso, voltou os olhos para as mãos e depois para a canoa, que permanecia ancorada ao seu lado.

— Eu não lembro.

Após essa resposta, eu e Luís fitamos um ao outro. Notei que Luís também tinha sentido o mesmo desejo que eu... uma súbita cobiça por aquele corpo tão belo e exótico. Apesar disso, mantinha-se concentrado em ajudar a moça.

— Venha com a gente, — disse ele, fazendo sinal com a mão — vamos dar roupas a você.

— Não, não posso.

— E por que não?

— Agora eu me lembro... eu vim nessa canoa de uma ilha aqui perto, uma ilha que fica logo após o horizonte, moro sozinha lá.

— Está dizendo que mora sozinha em uma ilha? — perguntei.

— Sim. — Depois dessa resposta, comecei a duvidar da veracidade de tal relato. Como uma mulher viveria sozinha em uma ilha? E por que ela velejaria pelada pela noite em uma canoa até a costa do continente?

— O que faz aqui? — Fui mais incisivo.

— Eu não sei... estou confusa... — murmurou, querendo começar a chorar.

— Pare! — ordenou Luís, alterando um pouco a voz. — Não está vendo que a moça está atordoada? Não encha ela de perguntas agora, vamos ajuda-la!

— Preciso voltar... — disse ela — Vocês podem vir comigo? Não quero velejar sozinha nesse mar escuro.

— Claro que podemos, vamos ajuda-la.

Por instante não consegui acreditar na resposta de Luís. Ele realmente estava aceitando velejar na escuridão da noite, em alto mar, com uma desconhecida? O que havia em sua cabeça?

— Luís, vamos conversar um instante...

Puxei ele e andamos uns passos para que a estranha não ouvisse nossa conversa.

— Está mesmo falando sério?

— Meu amigo, hoje é minha despedida de solteiro. Amanhã irei me casar, passar todo o resto da minha vida ao lado de uma única mulher... mas... por algum motivo, o destino... ou talvez Deus... mandou essa mulher maravilhosa, dona de uma beleza que nunca vi em minha vida. Quero usufruir daquele corpo. Se não fizer isso, me arrependerei amargamente até a morte.

— Mas e Francisca? Está sendo egoísta! Não está pensando nela?

— Francisca nunca saberá.

— Está louco, Luís! Acho que bebeu demais, não está raciocinando!

— Nunca estive tão são em toda minha vida.

Dizendo isso, ele virou as costas e correu até a moça nua. Gritei para que não fosse, mas Luís nunca foi um homem fácil de persuadir, quando coloca uma coisa na cabeça não há, no mundo, alguém que consiga tirar, exceto Francisca, que, por azar ou destino, não estava presente.

Luís empurrou a canoa até o mar. Quando estava fundo o suficiente, a donzela loura subiu, e em seguida o rapaz, sorridente. Luís começou a remar forte, a canoa quebrava as calmas ondas da madrugada com facilidade e, em pouco tempo, sumiu de minhas vistas.

Aquele foi o último dia em que vi Luís.

O casamento no dia seguinte não aconteceu. Francisca passou a me odiar eternamente por eu ter feito aquela festa. Na cabeça dela, fui o culpado da provável morte de seu noivo. Ela queria que me prendessem, mas não conseguiu, afinal, não havia provas de crime algum.

Obviamente contei essa história às autoridades, à família, aos amigos... mas ninguém acreditou. Acho que eu também não acreditaria se alguém me contasse. Por ironia, qualquer vestígio que sustentasse minha história apagou-se completamente... o mar engoliu as pegadas da moça nua e a marca de sua canoa. Além disso, não havia nenhuma ilha próxima dali, tampouco uma ilha que pudesse ser habitada por uma mulher solitária.

Depois de algumas décadas, no asilo, contei essa história a meu único amigo vivo, Crispim. Ele disse que já ouvira histórias de uma mulher nua levando homens ao alto mar, ele chamou a mulher de Alamoa...

— Dizem que esses homens sofrem a pior morte possível. — contou o velho. — Eles vão até o covil da Alamoa, numa ilha secreta. Lá ela mostra sua verdadeira face. A pele branca dá lugar à carne necrosada, com ossos à mostra. Os cabelos louros como ouro se transformam em sujos fios brancos. Os lábios cor-de-rosa apodrecem e fedem. Os homens que não desmaiam de susto são obrigados a assistir o cadáver vivo engolindo seus corpos pedaço por pedaço, até o último membro. Às vezes ela sai de seu covil em busca de novas vítimas, porque só assim a bruxa consegue viver para sempre e manter sua beleza impecável.

Não sei se consigo acreditar nessa história. Ainda prefiro acreditar que Luís está vivo, perdido em algum lugar por aí...