Grimório- prólogo

Era bem mais que meia noite naquela parte do mundo. Em meio ao barulho dos grilos e a dança das sombras, o fogo crepitava no terraço da torre mais alta que já se erguera no mundo, uma construção exuberante mas já muito consumida pelo tempo, tinha uma única entrada esculpida na pedra gasta pela chuva, que levava à uma imensa escadaria espiralada que subia e subia como a fumaça da fogueira onde se desenrolava uma prosa da melhor qualidade. Ao pê da fogueira, um velho carcomido pelos séculos segurava uma sacolinha de couro com entusiasmo. -Ah, o cometa! – dizia, enquanto uma espuma branca saia pela borda de seus lábios secos, rachados como terra infértil. Do outro lado, vendo o velho desamarrar o saquinho com a maior das atenções, um jovem de feições duras como um ferreiro, poderia ter sido um, com seus braços fortes, mas optou pelo estudo das estrelas, onde seus pensamentos estavam.

Muito bem, vamos começar. -disse o velho. Tirou do saquinho nove ossos de aspecto metálico, como se fossem feitos de ostras. Os olhos do jovem se esbugalharam.- Sim, meu filho, como havia prometido: Ossos de dragão.- O rapaz se aproximou pra enxergar melhor. No céu, um cometa de cauda azul serpenteava iluminando o vazio à sua volta, os grilos continuavam a festa.

-Mostre, mestre, por favor.

-Claro, claro!- disse o velho, rindo.- Mas o tarô dos dragões não é tão presunçoso, ao ponto de supor. Muitas decisões importantes serão tomadas hoje.- o velho tirou um frasco com liquido vermelho de dentro das vestes esfarrapadas, despejou um pouco em uma tigela que trazia aos seus pés e uma fumaça rubra e perfumada começou a dançar no ar. Tirou também uma adaga de cabo de osso e a colocou aos pés do discípulo.

- Está ouvindo, Merith?- O jovem discípulo olhou para o mestre como quem acorda de um sonho.

-Acho que sim.- E podia mesmo, ouvir junto da fumaça e dos grilos, um acorde poderoso soando alto, como que anunciando tempestades ou a chegada de um rei.

-A canção.- O velho sorriu.

O velho então começou o ritual, triturando os ossinhos com a ponta da adaga até virarem pó cor de vidro, depois repousou a adaga no colo, ergueu a tigela na direção do cometa e começou a cantar numa língua antiga, Merith a conhecia, a língua de sua religião, a antiga língua dos dragões. O mestre então parou o cântico e mergulhando a mão na tigela, puxou um punhado e arremessou na direção da fogueira que instantaneamente explodiu em nove ores diferentes, Merith já não estava mais neste mundo. Acordou em uma planície destruida, onde homens uniformizados se destruiam com canhões de mão. Uma fera de metal subiu zunindo e cuspindo fogo, matando dezenas de homens de uma só vez. Merith viu também os campos de concentração, os experimentos cruéis, a fome e a doença, tudo isso sobre uma bandeira vermelha de ódio. Voltou a si.

-O que foi aquilo, mestre?

-Imagens de um mundo parecido com o nosso, mas desprovido da beleza da magia. O medo dos homens fez com que se escravizassem e se destruíssem. O velho acendeu um cachimbo tragou uma, duas, três vezes.- Você não deve deixar isso acontecer. Aqui, tome a minha canção. -pegou a adaga e ofereceu para o discípulo.

-Como assim?

-A canção do dragão de prata. Ela pode ser a diferença entre nosso mundo e o mundo que vimos pela fogueira- repousou o cabo de osso da adaga na mão de Merith.-Oitocentos anos é o suficiente, pode acreditar.- Até mais meu amigo. -disse o velho na língua dos dragões antes de puxar a adaga para o próprio peito ainda nas mãos do discípulo. Enquanto o sangue escorria, uma luz azulada saiu pela chaga aberta e subiu pelo braço de Merith. Era como beber lava liquida, a canção preencheu cada espaço vazio do jovem discípulo que olhava o mestre morto com os olhos fosforescentes de magia. La fora os grilos continuavam a festa.

Malaszowski
Enviado por Malaszowski em 22/11/2018
Código do texto: T6508867
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