PAPAGENO LIBERTÁRIO

Papageno acorda preguiçosamente no meio da tarde chuvosa.

Chupa a própria língua demoradamente, ensaia um bocejo e estica os braços sem muita certeza de que quer sair da rede.

- Papagena!? – Chama ele, mas ninguém o atende.

- Papageenaa!? – Repete languidamente.

- Papagena!!! Exaspera-se e senta na rede olhando ao redor.

Nisso, Papagena vem ao seu encontro, toscamente vestida, com uma tigela equilibrada no dorso e uma colher de pau numa das mãos.

- O que quer Papageno? Por que tanta pressa?

- O que temos para comer?

- Comer, comer. Você só pensa nisso?

- É que tenho fome.

- Pois se não me deixar terminar esse bolo não terá nada para comer. E é tudo que temos em casa. Quando você vai trabalhar novamente? Pegar uns pássaros na floresta para vender.

- Você sabe que já não encontro mais pássaros como antigamente. Os bobinhos ficaram espertos e quando eu apareço, eles se escondem. Nem minha flauta os encanta mais.

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Papageno, passarinheiro de profissão, ganhava a vida apanhando pássaros de todas as espécies na floresta perto de sua casa. Construía gaiolas vistosas para cada um deles e os vendia para toda a gente que apreciasse o canto dos bicudinhos.

Nesta profissão viveu a vida toda e constituiu família com Papagena, moça das proximidades, surgida como que por encanto, e assim como ele, tinha algumas peculiaridades físicas.

Ambos eram como as pessoas, porém tinham penas pelo corpo e na cabeça, a maioria verde, como papagaios, daí o nome de batismo, mas também outras penas de cores vistosas e alegres se espalhavam pelo pescoço e cabeça, axilas, mãos, pés e rabo. Sim, eles tinham rabos plumosos, muito bonitos por sinal.

Ninguém naquelas paragens ligava muito para isso, pois o jeito alegre, espirituoso e bonachão de Papageno, e a bondade e solicitude de Papagena, a todos conquistava.

Sua fama de passarinheiro corria léguas e sempre que alguém desejava para si ou para presentear outrem, um pássaro canoro, corria para Papageno que logo lhe entregava um belo espécime que cantava como que por encanto belíssimas melodias.

E muitos juravam que era encanto mesmo, pois outros se aventuraram pelas florestas a caçar pássaros, mas sem o mesmo sucesso do verdoso e emplumado passarinheiro.

Os pássaros não cantavam, ou o faziam de forma lamentosa e triste, por certo por estarem aprisionados, mas as presas de Papageno cantavam de forma esfuziante, com grande alegria e entusiasmo. A todos encantava e não faltavam encomendas para ele.

Muitos juravam que a flauta de pã que Papageno portava era encantada e meio que hipnotizava os pássaros de forma a mantê-los sempre em atividade musical.

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- Talvez devêssemos mudar para outra floresta.

- Você acha Papagena? Mas vivemos aqui desde sempre e não conhecemos nada mais para além.

- Por isso mesmo. Talvez devêssemos nos aventurar.

- Mas, nessa idade!?

Dizendo isso Papageno pôs-se a olhar pela janela o horizonte enquanto o sol se punha.

Papagena voltou ao seu bolo.

Ele cismava e cismava. E de vez em quando suspirava, com muita preguiça.

- Ai, ai. Disse de si para consigo.

Nisso chegaram seus filhos, um casal, já adolescentes, Papagenilson e Papagenilda.

- O que foi pai, está triste? Perguntou Papagenilda.

- É para estar, não tem pássaros na floresta para eu apanhar e vender.

- Poderíamos fazer réplicas de madeira dos pássaros e construir um mecanismo que imite seu canto, como os cucos por exemplo. Disse Papagenilson, sempre inventivo.

- Replicar, construir, mecanizar, isso tudo dá muito trabalho, e não vai ficar bom não, não será tão bonito quanto o canto dos pássaros de verdade.

- Podemos tentar pelo menos. Juntou Papagenilda em apoio a seu irmão.

Papageno não deu mais trela e foi saindo de mansinho, para o jardim.

Depois atravessou a porteira e ganhou a mata que se estendia na frente da casa, uma pequena habitação de barro, coberta de palha, onde plantas forravam as paredes, como a querer integrar a construção à natureza.

Os filhos ficaram a fita-lo por algum tempo, e depois se recolheram a seus afazeres.

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Papageno caminhava pela floresta, sem levar sua gaiola presa às costas, onde prendia os desafortunados passarinhos que seriam vendidos por ele.

Trazia apenas sua flauta de pã pendurada ao pescoço, amiga inseparável de tantos anos.

A floresta estava escura e silenciosa. A noite vinha chegando. O crepúsculo cobria de luzes bruxuleantes o horizonte, que se divisava parcamente por entre a folhagem das copas das árvores.

Os tons de bordô e coral que o sol moribundo projetava sobre as nuvens acinzentadas, contrastavam com os tons de sépia e musgo da vegetação.

O chão, quase negro pela ausência de luz, e coberto por um tapete de folhas secas, meio que convidava Papageno para uma soneca, mas seu pensamento estava atormentado por tantas incertezas, que ele preferiu continuar andando e se aprofundando na mata, que não atendeu ao seu instinto preguiçoso e indolente.

E quanto mais ele se embrenhava na mata mais lhe chamava a atenção o silencio ali reinante.

Pássaros não cantavam alí há tempos, ele já sabia, mas nem um grilo rangia suas patas, nem um sapo coachava, e mesmo o vento não balançava os galhos das árvores, impedindo-as de produzir rangidos característicos do roçar dos galhos uns nos outros.

A noite por fim caíra e a escuridão cercara Papageno, que, devido a sua condição fisiológica ímpar, enxergava sem grande dificuldade no escuro.

Nisso três pares de olhos flamejantes se fizeram perceber ao longe. Ele se assustou.

- Que bichos serão aqueles? Vou já sair deste lugar.

Mas antes que pudesse arredar o pé dali, viu-se cercado por três figuras negras, com olhos flamejantes, que nada diziam, mas o conduziam, de costas, para um caminho que ele nunca percorrera antes.

Uma fenda numa rocha, que descia até uma caverna, foi o caminho que as figuras negras de olhos de fogo o fizeram trilhar, pois ia como que hipnotizado.

Ao chegar no centro da caverna, viu que se tratava de um grande salão de paredes escuras, mas cujo chão era reluzente, numa cor suave de azul turquesa. Percebera também que as figuras negras eram as damas que serviam a Rainha da Noite, suas velhas conhecidas dos tempos em que vagava sozinho pelo mundo sem sua amada Papagena.

- Senhoras, há quanto tempo que não as via por estas bandas. Que querem de mim?

- Nós nada, mas nossa senhora há muito quer te falar.

- E o que a impedia?

- Seu medo de percorrer a floresta à noite. O que hoje aconteceu de forma surpreendente.

- Até eu me surpreendo, e me arrependo, podem acreditar.

- Você está com medo de nós?

- Certamente que sim.

Nisso um grande trovão se ouviu, estremecendo a caverna e assustando Papageno.

A Rainha da Noite surge pavorosa e deslumbrante, causando temor extremo em Papageno que tenta se esconder atrás das três damas.

- Não terás como se esconder Papageno. Tenho te espreitado todo o tempo, e hoje você terá que ouvir o que tenho a dizer-te.

- Pois então diga. Diga logo e me libere.

- “A vingança do inferno ferve no meu coração!”

- Pera lá, pera lá, isso ainda? O tempo não passou para ti?

- O que dizes? Sabes o que tens feito?

- Tantas coisas.

- Entre elas, acabaste com os pássaros da floresta.

- A senhora mesma era minha freguesa. Quantos pássaros eu entreguei a ti?

- Mas todos eles voltaram aos seus ninhos. Eu os libertei a todos e você os aprisionou e vendeu até não sobrar nenhum.

- Eu precisava sobreviver. Tenho mulher e filhos.

- Mas o mundo não é somente teu para completo uso-fruto. Não pensaste na finitude das coisas e dos seres? Nada é infinito neste mundo. A infinitude é imaterial, portanto jamais a possuirá enquanto coisa, mas as coisas se acabam, se transformam em outras, como você, homem-pássaro, que morrerá e virará homem-grama. Será comido pelo burro e pela vaca e se transformará em cocô.

- Também não precisa me avacalhar, né dona Rainha. O que poderia fazer se não fosse passarinheiro? Não sei fazer mais nada.

- Era isso que queria dizer-te. Destruiu seu mundo enquanto o explorava para viver. Agora não tem do que viver. Só lhe resta uma esperança. Vingar seu próprio erro.

- Já sei, já sei. A vingança do inferno, blá, blá, blá.

A Rainha da Noite, de súbito, desapareceu, assim como suas damas de olhos flamejantes.

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Uma mão verde, com penas e plumagem brilhante tocou seu ombro enquanto chamava seu nome. Era Papagena, acompanhada pelos filhos, que adentrara a floresta procurando o passarinheiro perdido.

- Papageno, que houve? Perdeste-te na floresta que conhece como a palma da mão? Levanta que já é dia. Um novo dia para tentar ganhar a vida.

Ao chegar em casa, ele olhou para a enorme gaiola que carregava nas costas quando caçava pássaros na meta e levava para vender nas feiras. De que serviria aquilo se não havia mais pássaros?

- Veja pai, disse Papagenilson, os pássaros mecânicos que fabriquei. Você pode leva-los para a feira e oferecer às pessoas. Veja como funcionam.

Então Papagenilson arrumou sobre a mesa meia dúzia de esculturas de madeira na forma de pássaros, coloridos e brilhantes, com umas estruturas mecânicas que ele acionava ao puxar uma pequena corda próxima ao rabo dos bonecos. Assim que fazia esse movimento, as aves artificiais começavam a mexer-se, sacudir as asas e abrir e fechar o bico, produzindo um som metálico, como um soprar de flauta, que imitava o canto de pássaros de verdade.

Não era perfeito, mas era inventivo, e não deixava de ter uma certa graça.

Papageno olhou assim meio desapontado. Pegou uma das geringonças, olhou, olhou e pôs de volta na mesa, desalentado.

Papagenilson, vendo aquele gesto ficou irritado.

- Nada está bom para você, pai? Pode não ser perfeito, mas se bem mercado, renderá uns trocados, e é disso que precisamos.

- Eu sei que precisamos, mas todos vão me zoar lá na feira. Vá lá você e sua irmã, e vendam.

- Você sabe que nosso talento é diferente do seu. Você vende, nós não. Disse Papagenilson.

- A graça que eu tinha, passei para vocês quando lhes batizei.

- Sei não. Interrompeu Papagenilda. Você acha que Papagenilda é lá um nome bonito, formoso, engraçado? É uma desgraça, isso sim. Um nome horrível.

- Papagenilda, maneire suas palavras. Estes são modos de falar? E com o próprio pai? Repreendeu Papagena.

- Eu também não acho Papagenilson um nome atrativo. Parece nome de canibal, ou de sodomita.

- E vocês queriam o quê? Irrompeu Papageno. Papagaio? Papacapim? Papafigo? Papanicolau?

-Eu fiz o melhor. Dentro de minhas possibilidades. A vida é como corrida do bastão. Eu vou até aqui. Daí pra frente é com vocês, e a transição do bastão depende de como se larga, mas depende de como se pega também. Completou ele.

Papagena confortou seu marido com um terno olhar. O mesmo que o conquistou para sempre.

Papagena era um doce. Era a cola que mantinha aquela família unida, mesmo diante dos maiores problemas como agora.

Papageno aproximou-se dela, afagou-lhe os cabelos e olhou-a nos olhos. Sorriram e se abraçaram. Os filhos também se aproximaram do casal e se juntaram ao fraterno abraço que simbolizava a união que jamais faltara àquela família, e que jamais deveria faltar a qualquer família no mundo.

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Quando Papageno se viu só, juntou aquelas esculturas de pássaros, arrumou-as na sua gaiola gigante, pôs às costas e saiu rumo à feira para tentar fazer negócio e ganhar algum dinheiro.

No caminho para a aldeia ele via a floresta que ladeava a estrada, silenciosa, sem qualquer alarido de pássaros, como outrora.

Pensou no que a Rainha da Noite lhe falara.

No início, por ser tão familiarizado com os pássaros devido à sua aparência, gozava de certa confiança dos animais, que comiam em sua mão e se aninhavam em seus ombros cobertos de penugem verde.

Construíra sua flauta de pã com os juncos que nasciam à margem do riacho que diziam ser mágico, porque seres luminosos teriam sido vistos caminhando sobre as calmas águas que vertiam de algumas pedras no meio da floresta.

Assim que soprou pela primeira vez aquela flauta, qual não foi sua surpresa o som perfeito e afinado que dela saía, como um pássaro a cantar.

E mais surpreso ficou ainda quando tantos daqueles animais cantores se juntaram ao seu redor, cantando em uníssono com a flauta, como numa sinfonia natural que celebrava a beleza e a alegria de viver em liberdade.

Ao comentar na aldeia o fantástico acontecimento, muitos se mostraram incrédulos, pediram para comprovar o feito. E assim que ele provara na prática o que afirmava, despertou o desejo de alguns de ter a seu lado um amigo cantor que alegrasse seus momentos de descanso.

Começaram a pedir-lhe que conseguisse este ou aquele pássaro para fazer de companhia, que lhe pagariam pelo feito.

Sem muito pensar, Papageno iniciou aí sua profissão de passarinheiro. Não fora o primeiro, não seria o último, mas por certo foi o mais bem sucedido.

Nunca maltratara nenhum daqueles animais tão singelos e frágeis. Pensava. Mas então lhe veio uma imagem à mente, quando recolheu um melro solicitado por um comerciante que lhe pagaria regiamente por aquele espécime, viu que era um casal que tinha filhotes no ninho. Como um dos pais ficaria para cuidar da prole, não titubeou e levou o passarinho.

Algum tempo depois, passando pelo local, percebeu que o ninho havia sido abandonado e havia penas e sangue por lá.

É que sem a presença de um dos pais ficou mais difícil para o único adulto defender a família e buscar alimento, tarefas estas divididas entre o casal. Com um só, ficou fácil para predadores atacarem com sucesso a incompleta família de melros.

Ele sentira um profundo remorso naquele dia, mas procurou não pensar mais a respeito, prosseguindo com sua atividade de passarinheiro.

Agora ele pagava o preço de ter sido tão ganancioso a ponto de esgotar sua fonte de renda, o canto dos pássaros que ele aprisionara para vender.

Os pássaros presos não poderiam mais procriar e produzir outros mais para encher a floresta com suas melodias e os bolsos de Papageno com o dinheiro dos seus clientes ávidos de ter um cantador emplumado engaiolado dentro de suas casas para alegrar-lhes os ouvidos.

E que alegria seria essa? Ouvir lamentos tristes de quem perdeu a liberdade, de quem fora arrancado de sua família, de sua companheira ou companheiro.

O que faria ele se lhe aprisionassem a Papagena ou seus filhos e ele não pudesse mais vê-los?

Sua alma irregelava com aqueles pensamentos. E uma miríade de imagens de animais que, dos galhos das árvores passaram para seu gaiolão, vagando pela floresta enquanto viam ao longe suas famílias ficarem desamparadas.

- Chega! Pensamentos malditos. Querem me condenar? Não quero mais pensar em nada. Não vai trazer nenhum desses pássaros de volta. Muitos já morreram mesmo e muitos outros estão bem velhos. E agora acabou tudo. Mas que droga. Estes pensamentos estão me julgando e condenando à prisão. Preso como mantive presos os pobres passarinhos que só queriam viver suas vidas livres, felizes. Eu sou um monstro. Não mereço continuar vivendo.

Atordoado por toda aquela súbita consciência que lhe aflorava, Papageno correu desembestado pela estrada até chegar à aldeia.

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Uma movimentada feira tinha de tudo para todo gosto. O muito barulho também abafou a gritaria de dentro de sua alma.

Distraiu-lhe do pesar de seus atos passados.

Percorrendo os corredores entre as barracas de cada feirante, chegou ao centro da mesma, uma pequena praça onde se apresentavam alguns saltimbancos, tocando pífano e tambor enquanto desenvolviam uma dança mambembe, desengonçada e alegre, contando uma história qualquer.

Assim ele acomodou sua gaiola e começou a mercar seus pássaros mecânicos cantores.

Alguns se aproximaram e olharam aquela mercadoria estranha.

Começaram a indagar:

- Onde estão seus passarinhos de verdade?

- Isso aí canta nada?

- Coisa mais sem graça. Vai buscar uns rouxinóis.

Sem se fazer de rogado, Papageno começou a demonstrar as engenhocas que seu filho fabricara, fazendo graça e mercando como sempre soubera fazer, para atrair a atenção e o interesse de compradores para aquela estranha mercadoria.

- E isso presta mesmo?

- Não vai quebrar?

Papageno teve uma grande sacada neste momento.

- Se cuidar bem não vai quebrar e melhor de tudo, não precisa dar comida nem água e também não tem que limpar a sujeira. Já viu estátua fazer cocô?

- Eu levo um.

- Eu também quero.

E assim, todos foram vendidos e ele voltou para casa com suprimentos comprados com aquela venda, que, de melhor tinha o fato de que nenhum animal fora aprisionado ou separado de sua família.

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Assim que chegou em casa, contou de sua façanha comercial e mais, de sua culpa por tudo que havia feito aos animais até aquele dia.

Sua mulher e seus filhos se entreolhavam enquanto ele narrava sua culpa e seu pesadelo de ter sido tão mal e estúpido com a natureza.

Será que Papageno estava louco? De miolo mole?

De repente ele pegou seu gaiolão, rumou ao terreiro atrás da casa e o destruiu com um machado, depois atirou os destroços ao fogo.

- Nunca mais serei motivo de sofrimento para qualquer passarinho. Serei seu defensor, isso sim, Melhor. Serei seu libertador.

Corre então para um baú em seu quarto onde guarda o galho de sinos e com ele à mão, passa a percorrer as ruas à noite, tocando suave melodia que tem como efeito abrir magicamente todas as gaiolas das casas próximas ao seu sonido, deixando livres os pássaros que voam imediatamente para a floresta, em busca de vida e liberdade.

As notícias correram, e sua família ficou sabendo que algo estranho sucedera na aldeia e todos os pássaros fugiram das gaiolas.

Alguns foram até a casa de Papageno pedir-lhe que conseguisse novos pássaros, mas este recusou a fazer este trabalho. Ofereceu em troca, os pássaros mecânicos produzidos por seu filho e pintados por sua filha.

Sem muito sucesso, causando um grande desapontamento naqueles que outrora foram seus clientes.

Sua carreira de libertador secreto dos pássaros engaiolados prosseguia, quando esgueirava-se madrugada adentro tocando seus guizos e liberando do cativeiro as pobres aves. Até mesmo galinhas, patos, gansos e marrecos se viram livres de seus cercados e barracões, ganhando o mundo e deixando a todos os moradores loucos para pegar quem os estava roubando, pois acreditavam tratar-se de um ladrão.

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Armaram uma armadilha para o bandido, e não é que Papageno foi apanhado nela.

Diante da surpresa, não queriam acreditar que era ele o criminoso, mas que teria caído lá por descuido.

Foi quando notaram o galho de guizos em sua mão, e ao faze-lo tinir, reconheceram a melodia que sempre se ouvia à noite que antecedia o desaparecimento dos animais.

- O que tem a dizer sobre isso, Sr. Papageno? Arguiu o líder dos aldeões.

- Nada. Não tenho a dizer nada.

- Mas você era quem tocava estes guizos, não era?

- Sim.

- E sempre que se ouviam estes sons, no dia seguinte não se encontravam mais pássaros engaiolados. Isso não teria nenhuma ligação?

- Bem, ligação tem sim, mas não tem nada de roubo envolvido nisso.

- Como não. Explique.

- Como roubar algo que não se toca ou se retém? Não toquei em nenhuma ave, ou em suas gaiolas, nem retive nenhuma delas comigo. Onde estarão? Em minha casa? Vocês sabem que não, pois já revistaram tudo.

Daí um garoto da aldeia chega falando do que ouvira na floresta:

- Os passarinhos estão cantando novamente na floresta. Eles estão lá. O lugar era tão silencioso que dava até medo, e agora tá uma alegria só de tantos cantos.

- Então vamos lá pegá-los novamente. Ou melhor, o passarinheiro vai pegar, já que é seu ofício.

Papageno, que já fora retirado da armadilha, encara a todos à sua volta um a um. Seus rostos entre surpresos, esperançosos e ansiosos, miram o antigo passarinheiro.

- Eu não os pegarei novamente. Este ofício é vergonhoso, pois tiro a liberdade de que nasceu livre por uns trocados. E mesmo que fosse uma fortuna, ainda assim seria vergonhoso, pois nada paga a liberdade de ninguém.

- Mas são pássaros, nasceram para as gaiolas. Disse um velho morador do lugar.

- Não, eles nasceram livres, nasceram para viver, voar e cantar como, quando e onde quiserem. As gaiolas nasceram de sua ingrata visão de mundo, que tudo quer acumular perto de si. Porque não se deita sob uma árvore e se delicia com o canto gratuito que estes seres maravilhosos te ofertam com tanta generosidade, sem nada cobrar de ti a não ser que não os encarcere?

Todos estavam atônitos com aquelas palavras tão eloquentes vindas do pobre e iletrado caçador de aves. Como ele, que sempre explorou aqueles animaizinhos, agora vinha com este papo de bom moço e com um discurso empolado querendo humilhar a todos ali, querendo faze-los parecer ignorantes e maldosos.

Um grande murmurinho percorria a multidão que o cercava, até que alguém gritou “enforquem-no”.

Uma agitação se fez e o líder da aldeia precisou intervir contra os mais afoitos que já acorriam com cordas para amarrar o atemorizado Papageno.

Sua mulher e filhos chegaram e tentaram, em vão, protege-lo da sanha assassina e violenta daquelas pessoas, que até bem pouco tempo eram vizinhos amáveis e cordiais.

Agora queriam matar seu marido por conta de um ponto de vista discordante.

- Ele não fez mal algum. Protestou Papagena. Ele é inocente, e puro, e bom. Muito mais do que qualquer um que está aqui. Quem de vocês já esteve preso? E preso sem nenhuma culpa que tivesse que pagar com essa pena? Quem de vocês já foi preso somente para divertir alguém em algum momento de ócio? Não vêm que é isso que fazem com os pobres pássaros? Os privam de liberdade, os privam de suas famílias, os mantem presos para sua diversão. Não poderiam se divertir de um jeito menos doloroso?

Os murmúrios agora eram de lamento. Alguns de vergonha pelo que faziam com os pássaros, e pelo que pretendiam fazer ao pobre Papageno. Começaram a rumar para suas casas, cabeças baixas, cada vez mais em silêncio.

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Papageno e sua família foram para casa e lá decidiram que deixariam aquela aldeia.

Arrumaram suas coisas e já estavam partindo quando algumas pessoas que ali moravam vieram ter com eles.

- Viemos aqui pedir desculpas pelo que quase fizemos a você, Papageno, e à sua família.

- Se nos desculpar, e não abandonar esta aldeia, teremos um grande prazer em ter a sua vizinhança, que sempre nos alegrou com seu espírito brincalhão, Afinal, vocês nasceram aqui e não é justo que fujam com medo de serem perturbados por alguns intolerantes.

- E se ficarem, vamos comemorar com uma grande festa, pois acima de tudo, você nos ensinou uma lição, não só sobre a liberdade, mas sobre a capacidade de mudar de ideia e fazer o certo, deixando os erros no passado. Isso foi doloroso de entender, mas quando olhamos as gaiolas vazias em nossos beirais e os pássaros cantando logo ali no marmeleiro do jardim, entendemos o que você queria dizer quando se negou a caçar pássaros novamente.

Os Papagenos desfizeram as suas trouxas em resolveram ficar na aldeia.

Os habitantes do lugar comemoraram aquela decisão e passaram a colecionar as aves de madeira com mecanismo de canto artificial, fabricados por Papagenilson e pintados por Papagenilda.

Papageno e Papagena, se dedicaram a plantar muitas árvores frutíferas pela floresta e nos arredores da aldeia, que logo se encheu de pássaros que brindavam a todos com suas melodias alegres, celebrando a liberdade e a vida.

Qualquer viajante que passasse pelo local percebia que ali havia um ar diferente, onde se respirava liberdade e se vivia com mais tolerância pela natureza.

Muita coisa ainda faltava para ser perfeita, mas cada geração terá que dar um passo para que a seguinte continue a trilhar o caminho certo, o caminho do bem, da tolerância e da compaixão, colocando-se sempre no lugar do outro, seja lá que outro seja, sentindo seus sentires, suas dores e tristezas, para que não seja o causador de tais males ao outro, se para ti também não os quer.