Dragão Adormecido

O sol de outono se esforçava a espargir seus últimos raios de ouro por trás das grandes muralhas do oeste. Um pequeno riacho murmurante cortava o solo negro coberto de folhas - a luz enfraquecida da tarde não chegava a tocar sua superfície, - e à sua margem, a aldeia de Arda reverenciava as pinturas abstratas do crepúsculo no céu.

Arda não era precisamente uma aldeia, apenas uma estalagem e umas poucas casas agrupadas próximo à estrada, a alguns passos de distância da floresta. Uma fumaça tímida era expelida pela chaminé da taverna Dragão Adormecido, animada pelo som de vozes e risos, e não havia ninguém do lado de fora das rústicas casas do vilarejo. A brisa inocente levantava poeira, criando uma nuvem marrom que ora assentava, ora voltava a redemoinhar pela estrada pavimentada com pedras irregulares, enquanto a luz de uma lareira brilhava pela porta da estalagem.

Cerca de uma dúzia de pessoas estavam no estabelecimento, a maioria em grupos de dois ou três. O salão era longo e tinha teto alto, com paredes decoradas com desenhos abstratos estranhos. As mesas redondas, desalinhadas, abriam um vão para a grande porta escancarada na entrada, e atrás de um enorme balcão, um porco crestava numa lareira de chamas altas. Um homem robusto, de sobrancelhas grossas e barba por fazer, girava o animal num espeto, tentando proteger-se quando a gordura pingava nas brasas fazendo o fogo esbravejar.

Três homens ocupavam um lugar ao fundo, próximo à parede, numa mesa tão manchada de vinho que tinha se enegrecido como o ébano. Falavam alto e riam de um companheiro bêbado, fazendo alguns rostos voltarem-se a eles.

- Combatente! Será que poderias ajudar-me aqui? - gritou o mais alto deles, acenando com o braço.

Era o duque Kelvin, de Trier. Usava um par de botas novas, de couro, e uma pesada pele de urso sobre os ombros. Carregava também a insígnea real no peito, demonstrando estar a serviço do rei Arhus. Uma mulher gorda, de avental, passava de um lado a outro do enorme salão, acendendo archotes presos às paredes. Depois de alguns instantes, o dono apareceu, suado e coberto de fuligem.

- Ahh, aí está meu velho amigo... - Kelvin disse, virando-se para fitar os olhos do taverneiro. - Ficaríamos honrados se pudesses te sentar conosco, Eldric, mas antes disso, que tal mais três canecas de cerveja e um pedaço generoso daquela carne?

O estalajadeiro franziu a testa, mas balançou a cabeça em reverência e afastou-se. A cerveja veio logo, seguida da carne e de mais algumas canecas.

O trieri era ótimo contador de estórias, apesar do seu sotaque - que puxava muito o "r" - as vezes dificultar a compreensão. Os outros apenas riam de tudo que ele dizia, e chegaram a respingar cerveja quando ele narrou as aventuras de Astolfo Peludo e seu pônei manco. A canção ritmada dos grilos foi avançando, e com ela se iniciou uma chuva fina que não tardou em transformar-se em tempestade.

Ficaram ali um bom tempo. A estalagem já estava vazia quando o proprietário finalmente juntou-se a eles na pequena mesa. Kelvin agora descrevia uma briga que tivera com um camponês em Dalarna, gesticulando amplamente. Seus braços agitavam no ar com tanto entusiasmo que ele chegou a perder o equilíbrio sobre a cadeira, fazendo todos rirem muito alto. Na parte mais emocionante - quando fora derrubado pelos amigos do homem que vieram em seu socorro, - um baque surdo o interrompeu. O vento agitado brigava ferozmente com as janelas, obrigando o taberneiro a levantar-se agilmente para ajudar sua assistente a fechá-las.

O duque suspirou, deixando a cabeça pender para a frente até pousar sobre os joelhos. Quando a levantou para olhar em volta, viu Eldric ofegante ao seu lado e seus companheiros mergulhados num transe profundo, bêbados e sonolentos. Após um momento de embaraço, o nobre voltou a se endireitar.

- Acho que devemos descansar agora - disse, tentando esconder seu desapontamento. - Amanhã teremos um dia agitado.

- Então, vamos falar sobre seu débito em outro momento - Eldric virou-se para o balcão. - Vou pegar as chaves de seus quartos.

O trovão rugiu, depois o céu voltou a se acender com outro raio. Os olhos de Kelvin estavam se fechando quando um de seus companheiros produziu um ruído abafado. O ar frio que descia em espirais mexia com as chamas das tochas, fazendo-as dançar em seus fachos.

O taverneiro voltou a sentar-se ao lado do duque, esfregando a testa um instante.

- Parece que as chuvas começaram mais cedo esse ano - Eldric disse, desfazendo-se do avental.

O trieri assentiu com a cabeça, sem dizer nada.

- Sabe - o homem continuou, - ainda me pergunto o que traria você das terras do norte até aqui, duas luas antes do inverno.

Kelvin mexeu a sobrancelha.

- Para falar a verdade, não tinha reparado muito nisso. Há uma inquitação surgindo entre Dhahran e Eyre, como sempre acontece, mas temo que dessa vez seja mais profunda.

O taberneiro arregalou os olhos. Por um segundo seu rosto pareceu mais velho, como se refletisse um grande pesar.

- Estamos num frágil equilíbrio - continuou. - Eu seria muito cego se não soubesse que uma era pode estar acabando, e temo o que a próxima pode trazer.

- Mas... - o dono da taverna lhe lançou um olhar angustiado.

- Isso não é algo com que devas te preocupar - o nobre endireitou a roupa, - afinal, isso dificilmente afetará este vilarejo. É melhor dormirmos logo. Pretendemos fazer o percurso para Ostenard em apenas um dia.

A chuva caía forte sobre o telhado da estalagem. O duque e sua companhia atravessaram cambaleando o caminho até seus quartos, guiados pelo estalajadeiro, e se despediram. Eldric inclinou-se cerimonialmente, a tocha inundando seu rosto de luz, e se retirou para o salão principal. A fúria do céu cresceu e o trovão roncou a distância.

Enquanto observava uma sombra que se mexia na parede, Kelvin tentava em vão pensar em qualquer coisa. Tinha cochilado um pouco, mas acordou com o coração aos saltos. O trovão voltou a ribombar; três raios se sucederam. Quando por fim se deixou levar pelo sono, sentiu como se perseguisse uma luz que se afastava, um ponto brilhante fora do alcance. Lá fora das janelas, a chuva cobria horizonte, deixando a luz da lua-cheia nublada no manto escuro da noite.