Regressão

“Cronahn, em sua glória, manteve as luzes presas no teto da Criação...

Mas Hamom, que atentou pelo símbolo dos Homens,

ordenou que as luzes, que se chamavam Estrelas, caíssem...

Assim, A Era do Frio chegaria...

Tempos onde ninguém verá Rat... Deus Sol...

Mas Ele pra sempre governará sobre a Névoa Escarlate...”

Tábua dos Ventos Mordazes

Ano 3004 d.G.A

As chamas caleidoscópicas subiam a cada pedaço de flanh que Mamany Raby atirava à fogueira enquanto esperava para prosseguir com seu relato que também era uma aula. Ao redor do fogo, pares de olhos interessados e assustados a miravam.

- Eles passaram muito tempo até usarem seus feitiços uns contra os outros... eram milhões sobre a Terra... a Era dos Homens... eles reinavam em constante conflito... cada nação trazia consigo armas poderosas que permitiam lançar pedras de ferro e furar a pele... voar pelos céus como as aves de Shynion... e navegar nas águas ardentes do Ocenarum... nesses tempos, O Poderoso Cronahn deixou que seus filhos, os Deuses Antigos, os Adormecidos, escolhessem qual seria o destino da Sétima Restauração, da Terra... a Criação das Criações... e eles fizeram as estrelas cair...

As crianças estão impressionadas.

- Mamany Rabi - falou Elgor, filho de Ranuhl - mas por que que a raça dos Homens escolheu ficar um contra o outro? Meu pai me falou que nesse tempo não havia como Melgrowny instiga-los com influências... só Hamom... então não consigo entender como nasceram na geração que se seguiu...

Mamany o olha com atenção. Elgor é um jovem diferente dos demais... tem muitos questionamentos e o desejo por respostas. Isso a agrada. Já estava decidido. Mamany sente sua Chama reavivar.

- Os Melgrows sempre foram os inimigos, jovem Elgor - Mamany Rabi ergueu com a cauda peluda um copo feito de argila e bebeu de seu conteúdo - Mas antes que a noite de Carbonaryum engolisse a Reforma promovida pelo rei deposto Iahweh, as Criaturas ficaram contra a Criação... os Melgrows nasceram do sofrimento que floresceu quando as chamas da Antiga Criação resfriaram... - Mamany Rabi, a instrutora anciã, se levantou apoiada sobre a calda, seus três olhos fitaram os aprendizes - E hoje eles são os que mais próximos estão do que eram os Homens... responsáveis pelo destino que nos assola por todo o suspiro de Cronahn... Os Melgrows, carregam a herança de um mal antigo... são um povo amaldiçoado... Voltem para suas tocas agora. Está quase na hora da Torrente passar. Falarei mais sobre “A Noite Vermelha” depois da tribulação. Vão.

E as crianças se dispersaram num burburinho que misturava curiosidade com não entendimento de causas. Mesmo sendo crianças, são da mesma estatura dos adultos.

Todas as noites, Mamany Rabi instruía as poucas crianças que resistiam na cidade de Madrasgumorh. Somente trinta a cada cem nascidos sobrevivia entre os Simbhyos depois que o ciclo da Criação fora alterado milênios antes, e a perpetuação da raça era Lei entre o povo. Eles viviam séculos, antigamente, os Homens pensavam que eram imortais, o idolatravam. Mamany Rabi aprendeu de seus mestres durante toda a vida, antes de ser capturada, histórias e mais histórias sobre como o mundo havia sido criado e destruído 7 vezes até que a Antiga Criação, que se chamava Terra, deu lugar à Nova Criação, Tehranya, e sempre sonhou com o Antigo Mundo, sonhos reais, estava conectada, a Terra parecia ser um paraíso perto de Tehranya, o nome deixado ao Mundo após a “Noite Vermelha”, “Rhednayht”, dia em que os Homens, antiga raça “Dominadora da Criação”, fizeram as estrelas cair uns contra os outros.

Após o conflito, o mundo tornara-se desolado e inexplorado, habitado por seres que as deformações causadas pela radiação conceberam ao longo de gerações. Mamany, na verdade, ensinava somente o que experenciara. Não descendia dos Homens, era uma Pangraw, uma aberração, um ser mistura de três mutações distintas, acusada pelos Simbhyos de ser uma desonra para Cronahn, Criador de Todos os Seres. Os Simbhyos, conhecidos como Filhos de Anakul, descendentes dos Annunakis, deuses míticos da Antiga Criação, vinham escravizando a raça dos Pangraw desde que os tempos eram recordados, dizem até que desde que a Tábua dos Ventos Mordazes, escrita pelo profeta Sidinarth Gahndynius, o Último Justo, foi eleita como guia para todas as raças até que se cumprisse a profecia do fim da “Névoa Escarlate”, o dia em que Rat iluminará as terras esquecidas de Tehranya e tudo se fará novo... e então virá a passagem para a Oitava Restauração...

A Nova Tehranya. Uma Nova Terra...

- O que os ensinou hoje, velha? Magia pawgraniana? Se desencaminhá-los, eu mesmo peço ao rei sua cabeça. - Dilghmor, Sentinela Real, observa Mamany com olhar de desprezo. Ele odeia os Pangraw desde sempre sem sequer saber por quê.

- Falei para eles um pouco sobre como foi o fim da última era... nobre cavaleiro... - Mamany o cumprimenta com uma reverência de cabeça.

- Suma daqui, bruxa asquerosa! Ainda vou mostrar ao Poderoso Ranuhl que você é uma farsa... você não sabe de nada... vamos, vá embora pro seu covil! - e ergue seu chicote em ameaça.

A resiliência, é um sentimento atemporal.

Mamany sabe.

A sabedoria mística oculta de Mamany Rabi residia numa conexão dela com o que no passado se chamara “espírito”, sua “alhmorium”, a Chama Virtuosa, a energia que move os Viventes, com a essência antiga que ainda resiste da Criação destruída. Mamany fora concebida sob os Espectros de Pangraw, nasceu destinada a algo grande, dissera sua mãe. É como se a alma da Terra ainda suspirasse em busca de conforto e paz... ela, a Terra, fora destruída pelos seus próprios Filhos... e sofre como qualquer Pai sofreria... existe dor... Mamany ouve vozes do passado... línguas esquecidas... sente coisas... a mágoa da Criação traída permeia o frio da atual reconstituição Divina, Tehranya. Mamany possui um poder totalmente desconhecido pelas outras raças. A fria piedade de Ranuhl, senhor e Rei dos Simbhyos, que destruíra sua aldeia e escravizara centenas, fez com que a chance de continuar viva sem sua família e filhos valesse à pena. Conexão e destino traçado. Começou a ensinar História de Tehranya para os filhos do Rei dos Simbhyos, como escrava real, e logo estava lecionando para todas as crianças de Madrasgumorh, última cidade resistente à Guerra dos Melgrows. E conhecera Elgor, um menino diferente, filho bastardo do Rei Ranuhl, descendente de um sábio povo extinto, sua mãe era uma Buddhany, estuprada por Ranuhl, que buscava a revelação de um segredo extremamente valioso... e concebera-o cativa antes de morrer de inanição. Elgor, que não sabia de sua verdadeira origem, era um jovem de conhecimento, de uma curiosidade e de uma bondade (além do total domínio da espada) que fez Mamany entender seu destino como escrava subjulgada; encontrar e transmitir o que sabia, seu dom... para o Escolhido...

...através do “Sacrifício de Pawgrynon”, ritual onde o mestre iniciático pangrawniano ceifa sua vida para transmitir ao discípulo a visão do Início e Fim dos Tempos...

Esse era o segredo de Mamany. Ela sabia que precisava transmiti-lo a alguém de extrema confiança e capacidade despertas, porque sua Chama Virtuosa já oscilava... e talvez não houvesse muito tempo... Cronahn a chamava...

Alguém a substituiria. E esse alguém, precisaria ver como havia acontecido... A Noite Vermelha... o Fim e Início... da Terra e de Tehranya...

O quanto antes.

Mamany entra em sua caverna e desloca a pedra gigante com facilidade para fechar a entrada.

Nessa noite, a Torrente foi mais furiosa do que o comum, a Tribulação fez com que todos tremessem. Os ventos ácidos corroeram a proteção de cronterghan preparada como barricada durante a semana em poucas horas, todos ficaram assustados. Ninguém sabe o que é a Torrente, ninguém jamais a viu, dizem que ela é o próprio Mal... Só se sabe que ela traz o antigo Anjo da Morte... “ Morfrhakanul”.

***

Em Tehranya, dias e noites se diferenciam pelo movimento de um foco luminoso de tom avermelhado, passando pelo dourado, extremamente tênue, que pode ser percebido se deslocando ao longo do dia acima da Névoa Escarlate, e que ilumina morbidamente a superfície. As religiões e lendas proclamam e profetizam que é Rat, o Deus Sol, que num passado distante podia ser visto pelos Homens num céu azul, e que dizem ter brilho e calor jamais imaginados pelos seres que povoam Tehranya, uma terra fria e de uma escuridão quase eterna, um clima conhecido como “Inverno Nuclear”, como foi chamado pelos últimos sobreviventes da linhagem dos Homens. O Sol, faz parte de um passado mítico, nenhum ser jamais o viu. As raças veem isso com descrença e a Guerra dos Melgrows trouxe ainda mais falta de fé. “Ninguém pode saber o que existe acima da Névoa”, é o que dizem. O dia em Tehranya, é de uma palidez de fogo esmorecendo, mas ainda assim é o momento em que seres das mais diferentes espécies se relacionam. À noite, coisas inimagináveis podem acontecer, Tehranya é uma terra de mistérios e perigos insondáveis, onde criaturas noturnas e feras aladas surgem de qualquer lugar.

A Névoa Escarlate, nome dado à espessa nuvem de um acinzentado que oscila entre vários matizes de cobre e púrpura, composta de gases e poeira atômica e que envolve toda a atmosfera do Mundo Conhecido, surgiu após a queima da crosta terrestre e o resfriamento de seu centro, evento conhecido ao longo das eras como “Noite Vermelha”, aproximadamente 3.ooo anos antes, quando os Deuses eram outros e havia outros ainda mais antigos... Jesus... Buda... Shiva... Zeus... Einstein... dia em que a antiga civilização dos Homens utilizou armas nucleares uns contra os outros e alterou irreversivelmente a estrutura da Criação, fato antes jamais acontecido em nenhum estágio da Evolutia Sacrum, o grande plano do Criador Maior... Cronahn... a Linha do Tempo...

Nenhuma das Criaturas conseguira derrubar a Criação.

Apenas os Homens.

Os descendentes dos antigos Homens, a raça dos Melgrows, haviam declarado Guerra Eterna contra todas as outras raças para que sua linhagem se tornasse a única reinando a terra que, na crença de todo seu povo, pertence unicamente aos filhos escolhidos do Pai de Todos, Iaweh, herdeiros do Último Homem, possuidores do “Cajado Atômico”, a arma que culminou no fim da última era. A profecia melgroniana diz que entre eles nascerá O Escolhido para reconstituir a criação da arma das armas... a estrela que cai e queima... a Bomba Atômica... “ManuhlTiamat”... A evolução constante de suas técnicas de combate, armas, feitiços e conflito mental, fazia deles uma constante ameaça à paz de Tehranya. Depois do Inverno Nuclear, todas as armas acionadas por pólvora perderam sua utilidade, e após o resfriamento e ressurgimento da vida atual, milênios depois, os conflitos armados eram travados com armas de lâmina e magia. Redescobrir a arma de fogo seria ter a Guerra nas mãos.

No entanto, ao longo dos novos séculos as raças e mutações que habitam Tehranya deixaram de acreditar na possibilidade de algum tipo de mudança, alguma “salvação”, do mundo em que viviam sem sequer saber de sua origem. A maioria crê que a “Noite Vermelha” é só mais uma das lendas que tentam justificar o conflito abominável que se estendia a mais de 1.000 anos entre os Melgrows e qualquer outra raça que cruze seu caminho, a dor e o medo eram os sentimentos que prevaleciam entre os que com eles cruzavam e saiam vivos. Eles eram conhecidos como Assassinos do Frio. O Reino dos Melgrows já cobria uma área vasta do Norte de Tehranya, não se sabia ao certo a extensão o domínio, o real tamanho do mundo era desconhecido, os mapas eram escassos, e depois que os oceanos e mares tornaram-se ácidos, os deslocamentos e viagens só podiam ser feitos por terra, e os grandes 4 Reinos; o dos Simbhyos, dos Asthmarths, dos Necromonths e dos Orcnariunhs; vivem em constante alerta sobre movimentações das tropas Melgronianas. A herança de sangue que acompanha a raça dos Melgrows fez deles feras mais temidas que as Aves de Shynion ou os Lagartos de Talhmul, as bestas mais selvagens de Tehranya. O sangue dos Homens pulsa como combustível letal em suas veias. E a Guerra é a única razão de solidez do império que se construía sob o comando atual de Jesuah, o Rei dos Melgrows, um tirano cruel e com objetivos místicos pautando todas suas ações. Seu maior objetivo é destronar o Reis dos Simbhyos.

E matar a todos... O Genocídio, era a Lei Máxima do Reino de Melgrow. Os Annunakis, no passado, escravizaram os Homens.

Jesuah, quer a Vingança Prometida...

Ranuhl, O Temido, que herdara a coroa de Rei dos Simbhyos quando o pai, Rei Enkinuhl, morrera na Batalha de Venohma (data de suma importância para a atual constituição social de Tehranya, onde os reinos dos Melgrows e dos Simbhyos se estabeleceram como os mais poderosos entre as 5 raças) vinha observando o movimento ascendente do Reino dos Melgrows há algumas décadas e sabia que algo inevitavelmente estava para acontecer. Pensando assim, treinava para a Guerra seu exército de mais de 2.000 Chonghyons, raça que deriva dos antigos gorilas da Sétima Restauração, guerreiros fortes e valentes, mas com pouco conhecimento tecnológico, escravizados por Ranuhl, um dos reis mais poderosos entre as nações tehranycas. Os Simbhyos adultos eram poucos, por isso, usavam escravos. A Guerra Infinita só terminaria quando apenas uma raça reinasse em Tehranya, e essa era a profecia mais terrível com que todos os povos e raças precisavam conviver, escrita nas Tábuas dos Ventos Mordazes. Mas as Tábuas previam a chegada do Guia... e a Salvação para a Oitava Restauração... o Unificador...

A descrença de todas as raças levava à Guerra Infinita.

Eles não conheciam a mítica Fé... “Kanthynon... A Força que Tudo Move...”, eles a perderam por não acreditar que houve uma Terra... e que se eles não parassem o conflito, não haveria em breve uma Tehranya...

Eles precisavam de uma voz para guia-los... um Mestre... um Guia... precisavam parar a Guerra... salvar Tehranya...

Mamany sabia, sempre soubera, mas não sabia como. O plano fora elaborado e metodicamente arquitetado durante anos, desde que nascera. Elgor, estava predestinado. Ele seria o Redentor... “RhavyMessyanyh”, o “Guia ao Retorno”... Voz para a Oitava Restauração...

Ele apenas precisava ver e sentir para crer. Como num passado distante e irrevogável na Terra um dia fora... e então despertaria...

“O Sacrifício é rápido e não dói, Mamany...”, dissera seu Mestre...

Mamany, anseia voltar à Origem... entende palavras de seu passado...

Sua missão estava chegando ao fim.

Achara o Escolhido... passara toda sua vida à procura...

***

Enquanto caminhavam pela trilha adentrando a Floresta de Brahmanyla, sob a luz incansável de tochas de flanh, Elgor e Mamany discutiam sobre como, no passado, era a aparência do Mundo. Os olhos de Elgor, ao mesmo tempo sonhadores e tristes, fitam os três olhos negros e saltados de Mamany enquanto ela mastiga galhos de hydronya. Eles iam à floresta para se conectar com Cronahn.

- Mamany... às vezes penso que não sabemos realmente nada sobre esse lugar que vivemos... às vezes é como se tudo que eu acreditasse precisasse da substância que moveu o grande Profeta a escrever as Tábuas dos Ventos Mordazes... aquele acreditar que transcende o que nos é palpável... a senhora consegue me entender, não consegue? - Elgor a olha temendo alguma reprovação.

O momento do batismo se aproxima. Mamany sente seu peito esquentar. O sacrifício também se aproxima.

- É claro que entendo, filho - Mamany cospe os galhos secos de hydronya - basta olharmos ao redor pra vermos que tudo que acreditamos hoje, é resquício de algo intocável e imensurável... assim como não podemos saber o que está acima da Névoa Escarlate, não podemos olhar para o passado com os olhos que temos... é preciso muito mais para recuperarmos nossa kanthynon... olhar com o Olho de dentro... porque sem ela estaremos fadados ao mesmo fim dos que antes dominaram esta Criação... eles perderam a Fé... é chegada a hora, jovem Elgor, de alguém guiar uma nova chama na escuridão... mas antes é preciso que esta chama esteja acesa dentro de cada um... por que dúvidas logo agora, jovem?

- Há muito tempo preciso dizer isso... não aguento mais, Mamany. Algo dentro de mim me diz que... que... - Elgor procura disfarçar, mas lágrimas tímidas escorrem - não sei nada sobre mim, Mamany... de onde vim... pra onde vou... mas parece que... parece que... Cronahn quer que eu saiba algo... é como se uma voz me chamasse e me pedisse para não desacreditar do caminho que ele escolheu para mim... só que... só que eu não acredito mais em nada, Mamany... - Elgor cobre o rosto com as mãos - tudo que vejo é só Guerra... dor... sofrimento... E o que eu posso fazer? Me diga, Mamany, o quê? - pela primeira vez, Mamany vê Elgor não mais como um garoto, e sim como um homem. Um guerreiro pronto para a condecoração mais importante.

Ela sabe que não há mais tempo. Estão na floresta, longe de todos, seguros, apenas com o olhar misericordioso de Cronahn a observá-los. A faca guardada sob a camada de pelos de sua cauda, é trazida à sua mão direita.

Mamany, recita palavras mágicas em pensamento.

- Tudo, Mamany, tudo que você me ensinou até hoje - Elgor agora chora e grita como nunca havia feito antes - tudo, não passa de mentiras e mais mentiras! Nunca houve uma Terra... estamos aqui perdidos, Mamany... eu não vou mais continuar acreditando nisso... é uma tremenda perda de tempo... enquanto estamos falando de Oitava Restauração e toda essa história de Deus acima da Névoa... os Melgrows estão assassinando mais inocentes a cada dia... e isso não vai parar... jamais... Cronahn nos esqueceu...

Quando terminou sua silenciosa prece de despedida, Mamany percebeu com todo sentimento de amor que carregava por todos os seres tehranycos que a reação do jovem Elgor era perfeitamente compatível com as qualidades do verdadeiro Escolhido... tanta compaixão e tanto desentendimento fizeram com que em seu coração a necessidade de acreditar não o humilhasse diante da realidade... ele só estava triste... apenas queria saber o que lhe era de direito... e saberia... e não havia mais tempo a perder...

Num rápido movimento, Mamany envolveu o pescoço de Elgor com sua cauda peluda e forte. O jovem, pego de surpresa, de olhos arregalados olhava para Mamany, que o apertava com a força de um Troll de Naehmya, seu peito disparava por de repente se dar conta de que havia sido traído pela pessoa que mais confiava e admirava... “Não...” Elgor não teve forças sequer para erguer os braços. Quando a faca brilhou sob a luz vermelha e pálida proveniente do foco de luz acima da Névoa, Elgor fechou os olhos e pediu que Cronahn o perdoasse por acreditar demais nos viventes de Tehranya e no fim da Guerra... agora, morreria numa emboscada cruel e calculista...

E a faca desceu.

“ZHIIIMMM!”

O corte feito precisamente abaixo do peito é aberto... e logo em seguida a mesma mão que golpeara invade a ferida aberta que sangra buscando algo especificamente com a ponta dos dedos... Elgor está de olhos fechados, mas não há dor...

É Mamany quem sangra.

Pela neblina do quase desmaio que começa a tomar sua visão, Elgor vê Mamany retirando de dentro de seu próprio peito algo como uma pedra de brilho azulado... faiscante... envolta no sangue da fera idosa amansada a chibatadas e humilhações, da fera escolhida para ensinar os filhos dos que estupraram e dilaceraram seus entes queridos... sua família... os que ela amava... Elgor consegue perdoar Mamany pelo que ela estava fazendo, pelo menos, ele pensa, quando o abandonasse morto na floresta ela teria tempo para fugir para algum deserto... e talvez pudesse viver alguns poucos anos em liberdade... “Eu te perdoo... Mamany...”, os lábios de Elgor pronunciam num murmúrio mudo...

Quando a pressão no pescoço de Elgor deu lugar ao ar que entrou em desesperada retomada em seus pulmões comprimidos e fez com que seus olhos voltassem a enxergar, a pedra azulada e fervente foi enfiada em sua boca e logo ele a estava engolindo...

Um calor de chamas de flanh o tomou por dentro...

E tudo sumiu...

***

... não era Mamany quem o carregava... ela não possuía asas... mas quem o levava?

Elgor abriu os olhos e ao seu redor um mundo de cores jamais vistas com tamanha intensidade explodiu em feixes cintilantes. Não conseguia sentir seu corpo, planava numa velocidade inimaginável... mas não estava planando... algo o carregava entre suas garras gigantes... um ser disforme e colossal o guiava por um cenário que o lembrava um sonho... no entanto seu coração explodia em descargas de uma energia desconhecida... enquanto uma voz vibrante sibilava dentro de sua cabeça...

“Prepare-se... Olho... prepare-se pra ver...”

Elgor sabia que estava vivenciando algum tipo de transição mística e pensava que era isso o que acontecia quando se morria... mas sua consciência parecia tão perfeita quanto momentos antes... ele se deu conta de que percebia perfeitamente o cenário ao seu redor... um tubo em espiral que o guiava numa velocidade que vencia as barreiras do tempo e do espaço... de repente, tudo parou...

Luz...

Tudo era só Luz...

A mais pura Luz...

“Elgor... filho de Razimoth e Sarahbedah... abre em ti a porta que te fará ver o que precisas... guarda em Ti a verdade que será plantada... Tua voz, será refúgio para milhares, se assim quiseres...”

A Voz, vinha de dentro e de todos as partes...

Elgor desejou responder... mas quando tentou usar as forças de seu corpo para se desvencilhar da força que o prendia, se deu conta de que seu corpo de luz, sua alhmorium, vacilava presa a um cordão prateado... incandescente e crepitante... seu corpo verdadeiro... o ser místico que o levara pelo portal desconhecido agora alçava um voo ainda mais alto, lembrava uma Ave de Shynion, só que muito maior... e logo em seguida, descia como um raio cortando o mar de luminosidade que era o sonho em que sua vida se dissolvia... Elgor consegue lembrar da faca que Mamany empunhara em algum momento antes de tudo aquilo que lhe acontecia...

Escuridão...

Quando o silêncio sepulcral se desfez após um intervalo de gerações silenciosas, Elgor sente algo tocar-lhe a pele...

É o vento. Um outro vento. Seu cheiro, é desconhecido...

“Abra os olhos Elgor... esse, foi o início do Fim... Olhe, Olho... o que os Homens foram capazes de fazer...”, outra vez, a Voz falara em seus ouvidos.

Elgor está diante da paisagem mais deslumbrante que já se pronunciara em frente seus olhos. Um verde reluzente cintila sob um dourado desconhecido para sua visão, luz sobre as pastagens de um belo bosque, montanhas se erguem e seu “espírito” paira em grande velocidade por cima de rios e mares, e ele vê espécies nunca antes vistas desfilarem sob seu olhar maravilhado. Seu peito ferve com o calor que provém de um sentimento que jamais experimentara, e ele pede a Cronahn que o guie mansamente até o descanso eterno... se ele tiver morrido... mas seus olhos estão cada vez mais abertos... veem tudo... e aquilo que via, não era Tehranya... não era... Elgor ergue os olhos ao céu... e uma cor o faz paralisar...

Azul...

Era azul...

“Onde estava a Névoa Escarlate?”

Era a Terra... O Mundo Prometido para a Oitava Restauração... o Mundo destruído pelos próprios filhos...

Um Ser dourado e descomunal surge por detrás de uma camada gasosa esbranquiçada que ela jamais vira, as nuvens maciças se deslocam em cósmica expansão e Elgor sente sua Chama Virtuosa se aquecer... era dali que vinha essa Luz... esse calor... que avivava forças desconhecidas e adormecidas... era ele...

“Cronahn... esteja comigo...”, Elgor sussurra preces silenciosas... sente que está diante de mistérios insondáveis... estava vivendo uma experiência transcendental...

Rat surge... céus se iluminam e se aquecem... Rat banha seus filhos com o brilho que um dia, uma eternidade após, seria apenas um segredo intocável...

O Deus acima da Névoa... Elgor o vê... o louva...

Rat... o Sol...

“És real... Poderoso Rat... pela compaixão de Cronahn... és real, poderoso Deus Sol... por que nos deixastes?”

Elgor, está em transe. Uma energia borbulhante explode dentro da parte dele capaz de recordar sobre quem ele era antes de estar vivendo o que vivia...

Seres minúsculos caminhavam entre milhares de repente abaixo de seus pés, o cenário movia-se de forma onírica, Elgor agora flutuava e observava os seres que lembravam em quase tudo, exceto pelas feições do rosto, o povo dos Melgrows, e o medo o toma como tomaria a qualquer um que se visse diante do covil das feras mais ferozes. Esses seres se moviam dentro de caixas que se deslocavam incessantemente, eram muitos, as tocas onde viviam eram altas, se perdiam diante de seu olhar estupefato e de sua experiência sem precedentes. Ouvira falar a respeito de muitos rituais que podiam trazer a Visão dos Tempos, porém nunca acreditou que pudessem ser verdadeiros. Agora, vivia o que não sabia e se deixava levar como um resignado diante de seu destino. Elgor era incapaz de saber que estava em Hiroshima, Japão, 06 de Agosto, ano de 1945, e em instantes veria o início do Fim... um dos pontos mais elevados da maldade humana...

Uma grande ave barulhenta passa acima de sua cabeça com um estrondo de trovão. O avião, ao passar pelo ponto estratégico, libera sua carga. Um outro “Deus”, que não é Rat, explode no ar...

O clarão da bomba de urânio encandeia a visão de Elgor por alguns instantes, a fumaça do cogumelo atômico sobe em uma infernal espiral, e logo ele vê o espetáculo da destruição que se revelava como as páginas de um antigo livro. O calor é excruciante. Num lapso de tempo indeterminado, Elgor está no meio da cidade em chamas, seu espírito arde com a dor mais terrível que experimentara... e ele sabe que essa dor é a dor dos seres carbonizados que se amontoam aos milhares sob sua visão... os seres atacados que ainda estão vivos se deslocam com as peles de seus corpos derretendo... Elgor sente o que eles sentem e não consegue conceber qualquer prece que justifique um ser causar tamanho sofrimento a outro... a cidade destruída chora lágrimas invisíveis... lágrimas de um profeta apedrejado... Elgor está em prantos enquanto pensa “o que eles pensavam que ganhariam com tamanha falta de amor? Esses eram os Homens? O que foi a Humanidade?”

A Voz, diz...

“A Ti, Elgor... será permitido saber...”

A história que se desenrolou no espaço da Eternidade que Elgor ousou adentrar, introduziu em seu ser uma mensagem que somente ele poderia entender e que se fixava em sua constituição como Vivente. Numa fração de tempo indeterminado e insondável para sua mente, toda a História da Humanidade se desenrolou como um filme, numa experiência interna, todo o conhecimento oculto de Mamany estava sendo transferido para Elgor através da experiência vibracional gerada pelo Sacrifício de Pawgrynon, e Elgor pôde assistir como em um espetáculo o início da Humanidade, sua geração e a Criação da Sétima Restauração, Terra, por Iaweh, até o início do conflito armado que culminou na Guerra Nuclear que dizimou quase 98% da população em sua fase inicial, e que anos depois, alterou o clima e todo o ecossistema da Terra, levando inevitavelmente, após um primeiro ciclo secular, à metamorfose total de toda a estrutura e toda a ordem natural do plano conhecido como Terra, a Criação das Criações, o Universo, morada transitória de todas as Almas... palco da evolução eterna de todos os Viventes, filhos do Único Criador, fadados, inconsolavelmente, ao retorno à Origem... Pois as Almas, são todas iguais... apenas não conseguem se reconhecer...

***

Quando Elgor despertou, seu corpo fervilhava como chá de bromhanya. A dor no pescoço o trouxe de volta à realidade e então toda a experiência vivida em outro plano da realidade se fez totalmente consciente e viva em seu coração e em todo seu ser. De uma maneira que não podia compreender, ele não era o mesmo. Algo grandioso e poderoso havia acontecido como num sonho totalmente lúcido... Elgor apenas lembrava de estar caminhando pela Floresta e então... encontrara Deus... Deus... Ele existia...

Mamany.

Elgor se levanta num salto e logo encontra ao seu lado o corpo desfalecido da fera que o ensinara tudo o que veio a ter importância para que continuasse a viver num mundo que dele cobrava que despertasse e fizesse algo por si e pelos outros.... a fera sangra no peito, mas em sua expressão, é possível ver a pureza que só aqueles capazes de se sacrificar pelo outro podem carregar.

- Obrigado... Mamany... obrigado... - as lágrimas de Elgor pingam sobre os olhos da anciã.

Ao lado dos dois, as tochas de flanh erguem chamas tímidas...

Elgor sabe que precisa merecer sua missão... Ele ainda não sabe ao certo o que precisa ser feito. Mas irá descobrir... Naquele momento, apenas uma coisa restava a ser feita...

Elgor usa suas mãos para cavar a cova.

- Descanse em paz... Mamany Rabi... “Que vossa alhmorium retorne ao Pai... à Origem de Tudo...”

Mamany, cumprira sua missão...

Estava livre...

***

Obrigado por vir até aqui...

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 18/03/2019
Código do texto: T6601496
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