Havia Um Lugar, Primeira Parte

Final de uma manhã de inverno. O sol ajudava a colorir o telhado do posto de gasolina. Aquele solzinho que dá sem que se sinta calor. E sim a cor do amarelo do dia. Na verdade o que se via era um conjunto de lojas de brinquedos, doces, artigos infantis, presentes e uma espaçosa lanchonete, todas de frente para as bombas de combustível, estendendo-se no mesmo alinhamento.

Constantino acabara de abastecer o carro. Núpcia tinha ido ao banheiro. Ele sabia que ela depois iria querer beber ou comer alguma coisa. Ou ao menos dar uma rápida olhada nas vitrines, embora não estivessem exatamente num shopping. Comer agora seria bobagem porque estavam sendo esperados para o almoço. Haviam dito que chegariam por volta de duas da tarde. E os donos da casa para onde iriam fizeram questão de dizer que os esperariam.

O primo, cujo sítio estava indo visitar, na verdade fora visto por Constantino pela primeira vez quando este contava com 5 ou 6 anos de idade. Depois, só agora, em encontro que tinha acontecido há alguns meses, ao final de decorridas quatro décadas ou mais da primeira vez em que se viram. Não se lembravam absolutamente um do outro. Era como se tivessem se conhecido recentemente.

Com seus cabelos totalmente grisalhos, mas bem conservado para a idade que tinha, Benjamim era magro e moreno como o primo. Que teve que se conter para não invejar o corpo dele, já que Constantino era mais novo e mais gordo. Seus cabelos preparavam-se para ficar também inteiramente grisalhos. Relativamente pesado para a sua estatura, a compleição de seu corpo aproximava-se da que tinha o de sua mulher. Núpcia era uma mulher forte, por vezes agitada, cujos cabelos louros chegavam-lhe pouco abaixo do pescoço. Fazia questão de sempre estar comendo alguma coisa quando viajavam de carro porque temia crises de labirintite.

Constantino olhou o rústico “mapa” que havia recebido por e-mail de Benjamim. Lembrou-se dos esmerados croquis que aprendeu a fazer nos velhos tempos do seu Curso de Edificações da Escola Técnica que freqüentou. Apesar de não tão esmerado, o mapinha dizia tudo. Ele olhou o relógio e concluiu que, do ponto onde se encontravam, meia hora daria folgadamente para que chegassem. O que então aconteceria mais ou menos às 14h30. Apesar de a partir de agora terem serra pela frente. E pesadas carretas descendo ou subindo. O que tanto podia ser uma ameaça à segurança na pista ou um empecilho à que pudessem se deslocar mais rapidamente.

- Mas só uma água! Incrível, meu Deus. Não vou poder comprar nada. Nem uma lembrancinha boba pra Xaviera, Núpcia falou em tom de protesto, diante dos apelos de Constantino para que retomassem a viagem.

Provavelmente não se lembrou do que trouxera de casa para a mulher de Benjamim. Mas Constantino sabia que ela costumava comprar pequenas lembranças e mantê-las no armário para que tivesse o que dar quando fosse a ocasião.

- Pô, Nupi, Já não temos muito tempo. Se nos descuidarmos, vamos chegar muito depois da hora combinada.

De novo na estrada, Constantino observou que o tráfego não estava intenso. Não havia a princípio nenhuma carreta subindo com ele. O que lhe permitiu andar mais rapidamente. Porém algumas carretas desciam. No pára-choque dianteiro de uma delas a frase iniciava pela palavra “Saudades... em letras garrafais, ocupando com as reticências quase toda a largura. Quando a carreta passou, no pára-choque traseiro conseguiu ler apenas “de... ...”, não conseguindo completar a leitura em função da curva perigosa que tinha à sua frente.

Não demorou muito e deixaram a estrada principal. Tinham observado a recomendação de não atravessarem uma ponte sobre um riacho que se desenvolvia ao longo do Condomínio Nossa Morada. Deveriam seguir ao longo do rio, sempre pela mesma via, que lhes conduziria à localidade de Caxambu, onde ficava o sítio. Benjamim tinha dito que o logradouro de acesso, por onde transitavam agora, começava em asfalto, depois passava para paralelepípedos, indo terminar em terra. Qualquer dúvida, que perguntassem onde ficava Caxambu.

- Olha o castelo de pedras aí, anunciou Constantino ao chegarem numa pracinha onde terminava o trecho da via em “paralelos”.

O que na verdade ele viu foi uma espécie de gruta, incrustada, ao nível da calçada, num muro alto de pedras de uma casa construída num espaçoso terreno. Lindos bougainvilles dobravam-se por quase toda a extensão do muro, sendo preservado o trecho correspondente à gruta, dentro da qual se percebia sem muita nitidez uma imagem. Essa era uma das principais referências que Benjamim destacara em seu croquis.

- Mas que gruta bonita. E o muro também, disse Núpcia, mostrando-se surpresa com o que via. Deve valer uma nota essa casa.

- E o ponto de ônibus de que ele falou deve ser aquele ali, prosseguiu Constantino, apontando para uma cobertura metálica que protegia um longo banco de madeira e sustentava uma vegetação com flores amarelas.

- Puxa, flores até no ponto de ônibus.

- Estamos no caminho certo.

Prosseguiram, atravessando a pracinha. A partir daí, já no trecho em terra, pareceu-lhes que a atmosfera mudou. O tempo continuava o mesmo. Nem frio nem calor. Mas sentia-se a leveza do ar. O número da casas reduzia-se à medida em que a estradinha de terra subia, cada vez mais estreita.

- Como vai ser se vier um carro descendo?, perguntou Núpcia, alarmada também com as crateras provocadas pela chuva no piso em terra.

Mas ela percebeu que apesar dos buracos e pedras soltas, o carro parecia deslizar e subia sem qualquer dificuldade, não encostando uma só vez o fundo no chão. Intrigava-lhe também o fato de Constantino estar dirigindo como se estivesse numa rodovia em perfeito estado de conservação, como a de que tinham saído há pouco. Ele parecia não se dar conta das condições adversas daquela estradinha de terra.

Foi aí que ela resolveu desligar-se um pouco do medo dos buracos e pedras soltas, bem como da topografia exuberante e do verde cada vez mais intenso e brilhoso do local, para olhar Constantino. E viu que Constantino lhe retribuía o olhar, de uma forma como há muito tempo não fazia, embora continuasse olhando para o que vinha à frente. E que o carro parecia flutuar, os dois pareciam flutuar em seus assentos, permitindo que o interior do automóvel se enchesse de... alegria.

Constantino teve que diminuir a marcha ao perceber no alto da estradinha, antes da próxima curva, a figura de seu primo Benjamim. Diante dos seus cabelos brancos, da sua tez morena e da placidez de seu sorriso não tinha a menor importância a roupa que vestia. A seu lado, uma linda cachorra de pelo negro bem reluzente, que atendia pelo nome de Clara, vinha também lhes dar boas-vindas.