EU OS VÍ CHEGANDO....OS FARRAPOS!

Um a um. Restos de homens. Uns poucos montados. A grande maioria vinha a pé, descarnados calcanhares pisando forte o chão. Altivos todos, montados ou não. Notava-se, em alguns, o que haviam sido antes da guerra. Peitos fortes e rijos dos trabalhadores agrícolas. A destreza dos antigos ginetes. A habilidade precisa dos artesãos. Mas não mais traziam consigo ferramentas dessas profissões. Seus ferros, no fim dos seus dias, eram os ferros que o momento exigia. Lanças longas e curtas, adagas, punhais, espadas, facões e espadins e, tomadas dos imperiais, algumas armas de fogo. Poucas, diante do número deles. E vinham chegando outros e mais outros. A alguns lhes faltavam partes dos corpos. Braços e pernas decepados. Olhos vazados em órbitas agora vazias. Cicatrizes horrendas, feridas ainda abertas. Mas era seu dia. E queriam estar presentes. Dizer que tinham levantado das tumbas seria faltar com a verdade. Muitos nunca tiveram tumbas. Seus corpos, tombados sob o fogo da metralha, varados por aços diversos, ficaram ali sobre a terra revolta por cascos e homens. Sua carne foi repasto dos carnívoros que ali viveram. Insetos e vermes branquearam-lhes os ossos. Que, desfeitos, somaram-se ao calcário dos pampas. Mas eu os via e sabia quem tinham sido. A ferocidade contida. A valentia gentil. A implacabilidade perante o inimigo. Eram espectros apenas. Corpos envoltos em trapos que o vento balançava. Porém testemunhas da guerra.

Estranhei aquela platéia. O que fariam como simples assistentes eles que tinham sido protagonistas? Aproximei-me e falei: “Senhores, vêem-se aqui, nesses seus espectros, homens que tombaram em todas as batalhas. Homens cujo braço hábil fizeram tantas vezes correr os imperiais. Homens que cercados morreram lutando, causando baixas, infligindo alto preço ao inimigo. Homens que investiram sobre forças superiores e melhor armadas. Que deixaram nesses pampas carne e sangue. Homens que sustentaram uma guerra por longos 10 anos. E agora apenas assistem? Seu lugar não seria na avenida, entre os que desfilam?"

Aproximou-se o que tinha sido, um dia, um negro alto, forte, trazendo nas mãos uma longa lança. Via-se, pelo porte, que havia sido um líder. Talvez um oficial menor entre os temíveis Lanceiros Negros. Um dos asseclas do infame Coronel Adão Latorre, o degolador. Com a deferência de um escravo ao falar com um branco, disse-me:

- Caro senhor. Entre tantos, apenas o senhor está a nos ver. E vimos aqui todos os anos. Esquecidos que fomos. Como se aquela guerra tivesse sido imposta à Coroa por um punhado de fazendeiros e seus poucos mercenários. Como se houvesse Garibaldi sozinho, levado Farroupilha e Seival através dos campos. Éramos nós, os que aqui estamos, que enfrentamos o inimigo. Que matamos e morremos. Que demos lições de valentia a quantos nos enfrentaram. Tombamos, senhor, como sempre acontece nas batalhas. Mas tombamos de armas na mão, como devem os guerreiros. E nos 20 de setembro nos reunimos. E vimos assistir dado que, por nossa humilde condição em vida, não pudemos nunca ter uma guaiaca com fivela de prata, uma bombacha ou um par de botas. E vemos aqui e agora que é o que os patrões exigem. E comentamos, entre nós, de onde terá saído esse “uniforme” de gaúcho? Quão diferentes dos imperiais seriamos se assim estivéssemos fardados? Como a história teria chamado a nosso guerra?

Afastei-me, sem saber o que dizer. Caminhava para longe, ainda que a fascinação não me deixasse tirar os olhos dos espectros. E, ao olhá-los de mais longe, chamou minha atenção os restos de trapos que os cobriam, que o vento fazia tremular.

E aqueles trapos sobre os espectros, minha gente, os trapos eram os verdadeiros....Farrapos!

20/09/07

(numa puta ressaca!)

EDUGIG
Enviado por EDUGIG em 21/09/2007
Reeditado em 25/09/2009
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