Fantasmas do Ororubá

Eles costumam se encontrar no espaço pesqueirense. Não são mais matéria, mas espectros. Desencarnaram há muito tempo. Gostam de ficar ali na Praça Dom José Lopes. às vezes no topo da Catedral. sobem também nos batentes do Convento e, não raro, vagam pela Serra do Ororubá. Quem assistiu ao filme "Cidade dos Anjos" tem ideia de como eles vivem(?). Não podem ser vistos por ninguém. Só o que dói neles, embora sejam imunes à dor, é não poder intervir em nada e nem se comunicar com os vivos. Não sentem cheiro, não coem, não sentem frio e nem calor. Não se sabe se dorme, afinal ja dormiram muito, né mesmo? Apenas u sentimento os emociona: a saudade dos seus bons tempos.

Dois deles são amigos inseparáveis, mesmo tendo deias e ideologias distintas. Quando se encontram, o mais radical tira o centro:

- É isso aí, camarada, e ver com os olhos e lamber com a testa. Só nos resta espiar e lamentar as trapalhadas dos viventes.

- Lamentar por quê? A vida, meu caro, não teria a menor graça se o ser humano não errasse. Se o homem só fizesse o que é certo, a vida seria um tédio ainda maior do que este que nós vivenciamos.

- Mas você sempre foi comodista, sempre justificou a ordem constituída e estabelecida. Nunca se rebelou.

- E você, o que ganhou com a sua mania de dar murro em ponta de faca? Resolveu algum problema do povo?

É apenas o "esquente". Tempo para debater é o que não lhes falta. Junto com a observação da vida dos vivos, essa "arenga" é o que lhes resta de diversão.

Ficam conversando miolo de pote, aquela velha história de que tapioca mordeu beiju, até que o conservador faz uma observação:

- Veja bem, você sempre foi um critico ácido das grandes fábricas da terrinha. Porém nunca se deu conta de que elas faziam quase o que fazem os regimes da cortina de ferro.até mesmo no que tange a impossibilidade de ascensão social. A verdade é que as fábricas ofereciam peno emprego, uma vida pobre mas com certa dignidade, não havia fome, , em alguns casos as fábricas construíam até casas para seus operários, também escolas, davam assistência medica e até faziam festas. Mais, diferente da cortina de ferro havia liberdade religiosa. Erade certa forma um socialismo cristão.

O espectro radical riu muito, só nao engasgou porque os fantasmas anão engasgam. Rebateu de primeira:

- Só se era o socialismo dos galinhas-verdes. Aliás, só pra lembrar, você tocava tambor nos desfiles integralistas, aqui era um dos redutos mais fortes dos camisas-verdes no estado. Mas vamos analisar o que você disse. Em primeiro lugar a minha ideologia não tinha nada a ver com as práticas do leste europeu....

O conservador interrompeu rodando a baiana:

- Como é que é? Você deve estar com amnésia. Digo isso porque você dizia abertamente que Stálin, que mandou assassinar milhões de pessoas era o "Guia Genal dos Povos".

- É verdade, coisa da mocidade, você também, só pra lembrar, se extasiava diante da fotografia de Plínio Salgado e nutria muita simpatia pela Alemanha nazista. Mas deixe eu concluir meu raciocínio. As fábricas asseguravam mesmo a sobrevivência da maioria da população, mas impediam qualquer tipo de sonho, qualquer ambição natural, qualquer novo horizonte. Quando um operário se aposentava era chamado ela gerência, juntamente com seu filho mais velho, ai um encarregado dizia ao jovem: "Olhe, seu pai trabalhou aqui durante mais de trinta anos e nunca surrupiou nenhuma lata de doce, nenhum ote de extrato de tomate, nenhuma fruta ou saco vazio. Você vai ficar no lugar dele, espero que siga o exemplo de seu pai". Que horizonte tinha esse jovem? Ora, ser apenas operário. Era a ideologia do conformismo, respaldada, diga-se passagem, pelo catolicismo reacionário e conservador. Este só depois do Vaticano II foi que resolveu criticar o capitalismo. Você também se recorda dos "porcos" da parceria agrícola. Aquilo er um absurdo, trabalho escravo.

O conservador, ex-camisa verde, voltou à carga:

- Tudo bem, e agora, o que há de horizontes? Será que você sabe que grande parte da população está sobrevivendo graças à aposentadoria dos ex-operários e da aposentadoria do FUNRURAL, criado pelo general Médici? A nossa pecuária está falida, há ainda o problema criado pelas terras indígenas, aliás, um ponto que você sempre defendeu...

O radical, ex-fão de Stálin, interrompeu:

- Com relação `s terras dos índios, o problema foi Constitucional. Porém só houve o desfecho devolvendo aos índios os 29 mil hectares porque as lideranças não negociaram o problema a tempo. Ficaram achando que aquilo era bronca pequena e safada e que Marco Maciel e outros graúdos do Centão resolveriam essa parada. Ora, evidentemente não era possível rasgar a Carta Magna. O certo teria sido a negociação, antes da mobilização do CIMI, ONGS e o escambau, de forma que por não querer perder alguns anéis perderam as mãos, ou seja todas a s terras da Serra do Ororubá. Uma comunidade não pode cofiar apenas nos figurões da política. Mas, sejamos francos, as terras eram originalmente dos índios Xukurus, eles estavam trabalhando de alugados nas suas próprias terras. Sei que a situação é difícil mas e nesses momentos que um povo cresce, supera as suas dificuldades.Nos sabemos que Pesqueira vai dar a volta por cima, até porque Deus é pesqueirense.

- Deus?!!!!!!!!!!!! E você acredita Nele?

- Como não? Acredito na Força Superior, não sou ignorante, seu galinha-verde nojento.

- Me respeite, comunista safado!

Riem e continuam trocando figurinhas, observando as pessoas, recordando fatos, chorando por dentro porque fantasmas não choram por fora. O que mais os impressiona são os amassos dos jovens nas praças e em todo canto. Nessas ocasiões o sentimento da saudade se confunde com oda inveja. O radical comenta:

- Camarada, no nosso tempo não havia nada disso. Era uma época muito atrasada. Veja, essa meninada faz tudo na maior tranquilidade, sem os nossos antigos medos, preconceitos, tabus.

- É, meu caro, há muita promiscuidade, eles não respeitam nada, há muito de animal nesses "agarramentos".

- Manera, cara, você continua o mesmo reacionário de antigamente, mas é mesmo um santinho-do-pau-oco, um falso moralista, eu me lembro que você costumava...

O conservador interrompeu:

- Não conta. cara, de repente um médium se liga nesse nosso papo e minha família pode ficar sabendo daqueles doces pecadilhos.

O radical olha para o relógio da praça qe marca oito horas da noite, e diz:

- Olha, camarada, a novela vai começar. Vamos emburacar numa casa qualquer para curtir o capítulo de hoje.

O liberal, satisfeito, esfrega as mãos e diz satisfeitíssimo:

- É vamos vibrar com JAQUELINE JOY!

Jaqueline é o único ponto em que eles concordam em gênero, numero e grau. A musa de verão agrada até aos aos fantasmas.

P.S. Essa maltraçada é de fevereiro-2004. Jaqueline Joy era a personagem vivida por Juliana Paes na novela "Celebridades. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 26/04/2019
Código do texto: T6632868
Classificação de conteúdo: seguro