Havia Um Lugar, Quarta Parte

Foi a melhor noite de sono que tiveram. O que não acontecia há muito tempo. Sobretudo porque observaram que praticamente desmaiaram de sono na hora em que resolveram dormir. Tudo o que presenciaram ainda lhes pareciam excentricidades. Na cama ficaram conversando durante um bom tempo sobre todas elas; sobre as amabilidades entre as pessoas durante a conferência e o coquetel; sobre a desenvoltura das garçonetes e recepcionistas que, sem prejuízo de suas atividades, pareciam tomar parte na cerimônia como se estivessem entre os convidados; sobre o comportamento das pessoas nas ruas, nas calçadas e nas lojas; sobre a ausência de quaisquer regras, avisos e outros tipos de recomendações; etc. E quando quiseram dormir, o sono veio logo. O que Núpcia imaginou que não seria possível, tendo em vista a ansiosidade com que esperaram pelo momento de se acharem a sós no quarto para todo o tipo de questionamento a respeito do lugar em que se achavam. Parecia um lugar que não existia. Mas se chegaram a ter esse pensamento, por algum motivo não conseguiram verbalizá-lo um para o outro. Talvez achassem que poderia parecer uma superstição. O mais certo era que a Prefeitura estivesse fazendo algum tipo de experiência comportamental na cidade. Mas como, se Benjamim e Xaviera nada falaram a respeito? E será que dava para esperar esse tipo de projeto dos administradores de uma cidade?

De qualquer forma, era preferível viver tudo aquilo de bom, toda aquela nova experiência, que redundava numa incontestável qualidade de vida bem superior ao que se entendia por isso, do que ficar buscando pelas causas que tornaram possível aquela realidade. Apenas uma coisa ainda intrigava Núpcia: os tais “Parâmetros de Quantidade de Absorção”.

Para a manhã seguinte estava programada uma visita ao ateliê natural do escultor Mangro, um pouco afastado da cidade. Ele especializara-se em trabalhos de grande porte em areia. Mais tarde, depois do bate-papo que tiveram com o artista, Constantino imaginou que a consolidação e sedimentação das peças fossem obtidas através do limo ou de uma tênue nata de água e cimento.

Durante o café da manhã, Núpcia não se conteve e resolveu indagar a Benjamim:

- O que são “Parâmetros de Quantidade de Absorção”?

- Olha, Núpcia, isso é algo de que se adquire uma certa noção com o tempo. Mas de difícil explicação. Até porque, como o próprio nome diz, depende da capacidade de absorção de cada um.

- Mas então é algo que se toma, se ingere, ou tem a ver com coisas do espírito?

- Sem dúvida se refere ao plano metafísico. Confesso que não me sinto à vontade para falar a respeito. E acredito que nenhum de n... nenhuma das pessoas por aqui tem condições de se pronunciar com clareza sobre o tema.

Núpcia em nenhum momento imaginou que Benjamim estivesse tentando fugir da pergunta, quisesse deixar de responder ou procurasse confundi-la. E percebeu que a sua curiosidade a respeito do assunto de repente foi deixando de existir. Lembrou-se apenas de que, durante a conferência, as pessoas quase não falavam, nem os que comandavam a reunião. Apenas sorriam gentilmente uns para os outros e davam a impressão de que estavam se entendendo maravilhosamente bem sobre uma questão que em nenhum momento tivera sido inteiramente explicitada. Desconfiou de que pudesse ter havido uma espécie de conversação mental entre os presentes. Ao lembrar-se disso, percebeu que se tornou mais fácil para ela começar a admitir como natural o desinteresse pelo que havia lhe intrigado. Viu então que praticamente já não lhe interessava saber mais nada a respeito dos tais “Parâmetros de Quantidade de Absorção”.