A Sociedade da Lança - Parte 05: Pedido inesperado

Os primeiros dias no Bosque das Cerejeiras foram de adaptação para Gurin. Tendo sempre Kiha como seu guia, o goblin conheceu um pouco mais da cultura kitsune e seus costumes. Bem verdade que também sentiu, como lhe fora avisado pelo grande líder, a resistência e até certo desprezo de uma parte da comunidade, principalmente os mais velhos, ciosos de suas tradições.

Isso não se deu com os mais jovens, em especial as crianças, que viam nele uma criatura exótica, curiosa, e geralmente gostavam de chamá-lo para brincar, coisa que Gurin correspondia prontamente.

Como prometido por ele mesmo, procurou não ser um peso morto dentro da comunidade que o havia acolhido. Sempre estava envolvido nos trabalhos do dia a dia, seja qual fosse. Se precisassem de alguém para carregar, limpar, vigiar, plantar, colher ervas ou caçar, lá estava ele para ajudar. Os goblins são resistentes por natureza, difíceis de cansar. E diante da espontaneidade para as tarefas e do esforço em cumpri-las, rapidamente adquiriu a confiança de muitos.

Gurin aprendeu que não só os samurais humanos possuíam capacidades misteriosas. Outras criaturas no mundo também demonstravam habilidades especiais, místicas, inclusive os kitsune. Ouviu que todas as coisas e seres possuem dentro de si uma energia comum, doada pelos deuses no início dos tempos.

No caso dos kitsune, seu poder mágico era de ordem interna e se manifestava em suas caudas, mais precisamente na quantidade delas. Quanto mais caudas tivesse, mais capacidades mágicas o guerreiro kitsune possuía. Foi assim que entendeu que o fato de Kiha possuir apenas uma significava que ela era uma guerreira iniciante, uma aprendiz, como costumava dizer para ele.

Sobre os deuses, Gurin aprendeu que são chamados de Kami e são ao todo dezenove grandiosos seres que trabalharam juntos na criação do mundo. E os mais poderosos eram Izanami e Izanagi, chamados de Irmãos Celestiais. Dos seus filhos, os mais conhecidos e venerados são Amaterasu, deusa do sol, Tsukuyomi, deus da lua e Susanoo, deus dos mares e tempestades.

Gurin achou essa relação familiar entre os deuses fascinante, mas a quantidade deles lhe pareceu estranha, já que na cultura goblin existia uma profusão de divindades. Havia deuses para os rios, montanhas, lagos, florestas, nuvens, chuvas, sol, lua, entre outros. Todos um dia tinham se unido em harmonia para fazer com que o ciclo da vida não cessasse jamais. Os kitsune, inclusive Kiha, acharam interessante essa visão de mundo, embora primitiva.

Além dos kitsune, no grande vale de Endo existem outras três comunidades das chamadas Raças Ancestrais, ou Senzonosaisho no idioma humano, assim denominadas por serem os primeiros seres inteligentes a habitarem essa parte do mundo, estabelecendo comunidades.

Inicialmente os senzonosaisho, e tempos depois os humanos, com a condução de grandes mestres e, dizem algumas lendas, até dos próprios Kami, aprenderam a manipular as energias, que podem vir de uma fonte interna, no corpo do próprio ser, ou externa, canalizadas dos elementos da natureza. A manifestação do poder nos kitsune, através de suas caudas, é de ordem interna e aprimorado através de uma série de treinamentos físicos e meditativos.

Gurin ficava admirado sempre que conseguia acompanhar esses treinamentos. Os jovens kitsune se agrupavam sob a orientação dos professores e davam início às atividades nas primeiras horas do dia. Ágeis por natureza, mesclavam movimentos rápidos e vigorosos num balé marcial, sempre utilizando suas garras afiadas como instrumentos mortais.

O goblin percebeu que, apesar da cultura que valorizava a paz e a proteção, os kitsune, desde as idades mais jovens, se mostravam guerreiros formidáveis, comparados a qualquer samurai humano que já tinha visto.

Embora o conjunto de novos conhecimentos fosse de fato fascinante para Gurin, não conseguia evitar os momentos de tristeza, onde se via isolado, solitário e com saudade do convívio com seu povo. Em algumas noites despertava atormentado por pesadelos em que rememorava o massacre da sua aldeia e se via paralisado de medo, incapaz de fazer algo para impedir.

Como estariam seus irmãos e irmãs capturados naquela noite? Teriam morrido no deslizamento de terra? Ou ainda sofriam debaixo dos chicotes, no meio da escuridão daquelas minas? Sempre que fazia esses questionamentos, Gurin sentia uma angustia crescer em seu coração.

Se tivesse a força e as habilidades necessárias para se tornar um guerreiro, como os kitsune e até mesmo os samurais, poderia proteger seu povo. Nessas horas a sensação de impotência se transformava em raiva, uma raiva de si mesmo. Era apenas um pequeno e frágil goblin.

Em momentos como esse, lhe vinham pensamentos onde se via tomando uma atitude, amparado num plano de ação. Teria coragem para tanto? Provavelmente nunca. Mesmo assim, precisava saber.

Incomodada com o silêncio do amigo durante o dia, Kiha foi ao seu encontro. Gurin estava acabando de limpar o pátio que ficava em frente ao templo dedicado aos três grandes Kami. O vento sempre arrastava as folhas que se soltavam das cerejeiras para todos os lados. Bonito de se ver, mas chato de limpar.

- Já o vi calado muitas vezes, mas hoje você bateu seu próprio recorde. Foram os pesadelos de novo? – perguntou a kitsune. Tinha acabado de vir do último treino da tarde.

- Sim. - respondeu Gurin – O da noite passada foi o mais difícil de todos.

- Não se preocupe, você vai superar. Pense no lado bom, você agora está salvo e num lugar seguro.

- E os outros? Estão salvos?

- Como assim? - indagou Kiha

- Lembra quando eu disse que nem todos de minha aldeia foram mortos? Naquela noite os sobreviventes foram levados para trabalharem como escravos nas minas.

- Eu lembro disso. E sinto muito.

- Eu também sinto. E meus pesadelos estão sendo trazidos pelos espíritos dos meus irmãos mortos naquele dia, me cobrando uma atitude. Preciso fazer alguma coisa por eles.

- Mas o que você pode fazer, Gurin? - questionou kiha – Você é….

- Eu sei, sou apenas um pequeno e frágil goblin. Mas descobri em mim uma ponta de coragem que não quero perder.

- Desculpe, não queria ofender, mas o que um goblin poderia fazer contra samurais?

- Provavelmente nada – respondeu Gurin – Mas preciso tentar. Por favor, Kiha, não me peça para desistir.

- Mas...ah...desculpe, não sei o que dizer – Kiha realmente estava confusa com o rumo da conversa, com a inesperada fala do amigo.

- Não precisa dizer nada. Apenas me faça um favor.

- E qual seria?

- Me treine. Me torne um guerreiro como os kitsune. Sei que não tenho a força, a agilidade nem suas poderosas garras, mas prometo me esforçar e obedecer tudo que me disser para fazer. Se você não puder fazer isso pelo meu povo, faça por mim. O que me diz?

A única resposta de Kiha foi um olhar estupefato, sem ação. Nenhuma palavra saiu de sua boca.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 15/07/2019
Reeditado em 21/07/2019
Código do texto: T6696511
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