A Sociedade da Lança - Parte 09: Princesa em apuros

Aiori sentiu o poder da arma assim que segurou o cabo da espada com as duas mãos como lhe fora ensinado. A katana era a espada por excelência dos samurais, representativa não só como símbolo de beleza, mas de status social e capacidade marcial de seu portador. Não era fácil manejá-la com desenvoltura, sendo necessários dias, meses, anos de treinamento.

Para a garota de quinze anos, que nutria o sonho de se tornar uma guerreira samurai, aquele momento era o primeiro passo para a concretização. Ao mesmo tempo sabia que estava indo de encontro a uma antiga tradição do clã onde nasceu, onde mulheres não podem fazer parte da classe guerreira.

Á sua frente estava aquele que, também contrariando a tradição, aceitou ser o secreto sensei da filha do Shidosha, posto de maior grau nos clãs samurais de Endo, do clã Momoke. Não apenas o desejo de partilhar a relação entre professor e aluna os unia.

Algo mais começava a brotar em seus corações, uma necessidade cada vez maior de estarem juntos nos treinos, não penas para praticar os movimentos de ataque e defesa, mas principalmente para trocarem olhares de afeto recíproco.

Um toque sem querer na mão dele. As vezes em que ele ajeitava sua postura e tocava em seus braços ou cintura. Sua voz macia e firme. A troca de olhares nos momentos em que ele pedia atenção. A respiração dele em seus cabelos.

Mesmo que nunca houvesse tido nada físico de fato, a troca de sinais afetivos era a prova de que a relação não era mais de aluna e sensei. Seus corações e mentes pediam a concretização de algo maior.

Aiori se sentia a garota e a aprendiz mais feliz do mundo, pois ao mesmo tempo estava sendo iniciada nas artes samurais e no…..amor. Sim, era essa a palavra, a única palavra que poderia definir o que sentia por Haizo. Era esse seu nome. Nome que fora gravado num pingente e lhe dado de presente.

Aiori mais uma vez se viu segurando o cabo da katana. Estava tensa, ofegante, mas não de cansaço. Era de angústia, de medo. Puxou de um bolso do manto lilás que usava o pingente que ganhara, queria se agarrar a algo concreto.

Mas quando o pingente e a espada se desvaneceram diante dos seus olhos, transformados em folhas secas de cerejeira, sentiu que a felicidade e as lindas expectativas de futuro se transforaram em dor e lágrimas.

Onde estava aquele que realizaria seus sonhos?

Ao olhar para frente, Aiori vê a imagem que tentava evitar o tempo todo. O túmulo de Haizo era uma visão mórbida, fria, inacreditável.

Aquela cena tinha sido o resultado da descoberta do seu romance. Os anciãos e o líder do clã não quiseram saber quando Haizo declarou a verdade do coração diante do conselho. Apenas uma coisa foi levada em consideração: a quebra da tradição. Sempre a tradição. E baseado nela, a sentença foi estipulada.

Aiori lembrou de ter acompanhado tudo. Nenhuma justificativa seria suficiente, por mais nobre que fosse. E era nobre. O amor é sempre nobre.

Com a morte de um sonho, o outro foi junto. Aiori nunca mais quis saber do caminho da espada, nunca mais seguraria uma katana em suas mãos. A culpa não permitiria jamais que ousasse voltar a pensar em seus próprios sonhos.

Aiori, de frente para a lápide, resolve tocar a fria pedra. Uma ventania toma conta do lugar, levantando folhas e galhos secos. E no meio do turbilhão uma voz é ouvida.

“Aiori…..Aiori, acorde”

“Haizo, é você?” responde a garota “Onde está para que eu possa ir ao seu encontro?”

“Aiori, acorde…...não pode vir à mim…..algo grande te espera….seu coração se renovará”

“Como farei sem você? Estou perdida”

“A força sempre esteve dentro do seu coração…..não permita que ele se feche, nem por mim nem por ninguém…..transforme culpa em responsabilidade….e uma grande responsabilidade a espera...….então, Aiori, acorde….acorde”

A voz de Haizo ia ficando cada vez mais forte até ser ouvido como se estivesse ao seu lado, gritando em seus ouvidos.

- Aiori, acorde, estamos sendo atacados.

Algumas horas antes, uma pequena comitiva partia de Danzai, a aldeia-capital do território do clã Momoke. Cercada por um pelotão de guerreiros samurais, a carruagem transportava uma carga preciosa, neste caso a princesa Aiori, filha de Momoke Zanko, shidosha do clã, e dois anciãos do conselho, Noritama e Sanchi.

Dias antes, depois da descoberta do romance secreto entre Aiori e o samurai Haizo, o guerreiro foi sentenciado à morte por haver cometido crimes contra a tradição do clã, se apaixonando pela herdeira da família principal e ensinando-a no caminho da espada, algo proibido ente os Momoke.

Por sua vez, como punição por seu ato desonrado, Aiori enfrentaria um destino pior do que a morte para ela. Como lhe fora explicado, o casamento com Danketsu, filho do moribundo shidosha do clã Jihu, selaria uma aliança vantajosa para seu clã, dando aos Momoke a possibilidade de exploração das ricas jazidas minerais protegidas pelo clã Jihu por gerações.

Outra vantagem importante seria no campo da política. O jovem e intempestivo Danketsu logo assumiria a liderança dos Jihu no lugar do pai. Sua falta de experiência administrativa e seu gênio irascível, o transformaria num shidosha manipulável ao mesmo tempo que numa possível força caótica que deveria ser contida na raiz de suas intenções. Zanko sabia disso e queria aproveitar a situação. Por isso o casamento de Aiori seria de fundamental importância para seus fins políticos, além de ser a devida punição pelo ato dela.

A viagem para as terras do clã Jihu já durava pouco mais de quatro horas. O comboio era composto pela carruagem principal e outras quatro carregadas de utensílios, mercadorias diversas e itens de valor. Protegendo a caravana, um pelotão composto por dez samurais vigiava o perímetro. A lentidão da marcha e o sol forte já cobrava o cansaço de todos.

Logo após a terceira hora de jornada, tomada pelo cansaço e enjoada com o balanço da carruagem, Aiori adormeceu profundamente e sonhou com Haizo, um sonho estranho e intenso. Não viu quando a comitiva resolveu parar num local onde a trilha era ladeada por dois morros e uma mata mais densa, que fornecia bons pontos de sombra para o repouso dos animais e das pessoas. Foi nesta hora que aconteceu o ataque do grupo de bandidos.

Mesmo composto por uma grande quantidade, os assaltantes não eram páreo num combate direto com os samurais e sua habilidade marcial. Mas o que os guerreiros não contavam era que o grupo de ataque fosse bem coordenado e tivesse uma carta na manga: explosivos.

No primeiro momento uma carga detonada nas encostas fez uma avalanche de pedras descer e barrar a estrada atrás do comboio, impedindo qualquer chance de retornar em fuga. Logo em seguida uma saraivada de bombas de fumaça e explosivas atiradas do alto gerou o caos no meio das pessoas e animais. Uma parte da fumaça foi logo dispersada por magia de ar, mas as explosões assustaram os cavalos e alguns saíram em disparada.

Aiori e os anciões estavam tremendamente assutados com o barulho do lado de fora. Gritos de ataque e de dor e ruído de explosões tomaram conta do lugar. E quando uma bomba explodiu próxima de sua janela, fazendo o vidro estilhaçar e a carruagem balançar, os dois cavalos que a conduziam saíram em disparada pela estrada. Os três passageiros se seguravam como podiam nas paredes da carruagem enquanto a estrutura trepidava furiosamente.

O galope desesperado dos cavalos durou uma eternidade para Aiori. Os dois anciãos oravam o tempo inteiro para os Três Kami, pedindo para que fossem salvos daquela situação. A carruagem já estava bem avariada e numa curva brusca a porta se abriu e foi arrancada quando chocou-se com uma árvore. A situação estava cada vez mais complicada, fazendo Aiori pensar até em pular do veículo. Mas e os pobres anciões? Não poderia abandoná-los.

De repente um grande solavanco jogou a carruagem para cima. Quando caiu, o impacto a fez a estrutura se partir ao meio. A parte de trás, onde estavam sentados os dois anciões, se desprendeu e foi totalmente destruída quando girou e se despedaçou entre as árvores.

A parte que sobrou continuou sendo arrastada pelos incansáveis cavalos. Aiori só não foi arremessada para fora porque o manto que usava se prendeu em uma tábua partida, seu corpo chacoalhando ao sabor dos movimentos bruscos do que restou da carruagem.

O destino sinistro dos animais e dos restos da carruagem era um enorme barranco logo a frente.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 24/07/2019
Código do texto: T6703678
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