Contos Vampirescos e Outras Histórias - Conto 4
Vocês humanos pensam que o vampirismo é uma
terrível maldição, mas na verdade ele é muito pior. É
um pacote cheio de terríveis maldições embutidas num
coitado qualquer, como carne processada numa lata.
A alergia à prata é uma, mas a menos que você seja
algum tipo de exotérico ou membro de uma banda de
rock, isso não será um grande problema.
Há obviamente a sede, quando ela surge não é como
uma simples vontade de ir na geladeira no meio da
noite e tomar um copo d’água, não, para nós é como
se tivéssemos participado de uma meia-maratona no
deserto, debaixo do sol escaldante, a sede nos deixa
ávidos, e infelizmente nossa geladeira é qualquer
coisa viva que tenha sangue, e claro que o humano é
como aquela água pura de um oásis com uma única
palmeira bem no meio desse deserto.
Muitos acreditam que a pior maldição de todas para
um vampiro é nunca mais poder sentir a luz do sol, a
menos que queira virar cinzas ao vento, é claro.
É verdade que para a maioria de nós isso é uma
maldição quase poética, afinal, quanto mais longe da
luz, mais perto da escuridão, e quanto mais perto da
escuridão, mais difícil de se encontrar, e é aí que a
maioria de nós acaba se tornando animais assassinos,
não como os tigres-de-bengala das florestas coníferas
da ásia, que matam para sua simples e legítima
saciedade, mas como hienas, que riem em profusão,
com a cara cheia de ironia enquanto banqueteiam
sobre um corpo que é saqueado até não sobrar nada.
A pior das maldições não é nenhuma dessas, apesar
de paradoxalmente ser a única que pode ser curada.
O amor é a pior maldição que pode acometer um
vampiro, seja ele jovem, seja ele mais antigo que os
faraós do antigo egito, seja ele homem, mulher ou
criança, seja ele um pai acolhedor viúvo de anos, seja
uma jovem à beira de um altar, seja simplesmente a
mais comum das pessoas que você possa imaginar,
se ela se tornar um vampiro, a maldição do amor vai
corroê-la ainda mais que uma corrente de prata no
pescoço.
Ainda que nós não tenhamos o direito à prata, nós
temos o direito ao ouro, ainda que não tenhamos o
direito ao sol, temos o direito à lua, ainda que a sede
de sangue nos corrompa, sempre existem os animais,
só voltamos à nossa origem caçadora. Mas para o
amor não há substituto, ainda que a escuridão não
faça você se perder dentro de si mesmo, como um pai
poderia ter o amor de seus filhos sendo um monstro,
como uma jovem poderia ter o amor de seu amante
sem lhe causar arrepios que só as carnes de caça
sentem antes de serem abatidas.
Como qualquer um de nós poderia ter amor se não somos mais humanos. Não há substituto para o amor, mas ainda pode haver
amor.
Quando fui mordida há 60 anos atrás, por um vampiro
que sequer me deu a elegância de vê-lo nos olhos, eu
tinha apenas 20, estava noiva de Javier, jamais nos
casamos na igreja.
Jamais voltei a uma igreja. Jamais fui a um templo, jamais me encontrei com qualquer deus, em qualquer casa.
Javier quebrou minha maldição, ainda não usava prata
nem podia ver o sol, tampouco pude deixar de provar
sangue, mas jamais me faltou amor.
Posso dizer que tive sorte, Javier nunca me abandonou. Nunca tivemos
jantares românticos em restaurantes, nunca vimos o
pôr-do-sol, nunca conheci outra pessoa tão próxima
quanto conheci Javier, não nos últimos 60 anos.
Javier sempre quis que eu o transformasse, queria
dividir o fardo comigo, dizia ele. Ele não sabia que com
ele ao meu lado o fardo era pequeno.
Nunca mordi Javier, nem quando me pedia, nem
quando tive a mais descontrolada sede de toda a
minha existência. Como poderia fazer isso com a
pessoa que me amou? Que me salvou? Ele dizia que queria viver a eternidade ao meu lado.
Ele envelheceu até os cabelos negros e compridos
que batiam no ombro caírem e ficarem grisalhos.
Jamais poderia amaldiçoa-lo, jamais. Ele me deu tudo,
me deu sua juventude, sua velhice, sua bondade. Eu
prometi a ele que viveríamos juntos até a eternidade
há 60 anos atrás.
O sol já está começando a iluminar a escuridão da
madrugada.
Queria que Javier pudesse ter visto o amanhecer
comigo.