O CASTIGO DO SOL

O CASTIGO DO SOL

(Lázaro Faleiro)

Que coisa cara, que coisa boa! Elástica, plástica – a lagoa; plena paz para a pessoa! O sol, o arrebol. Dia de luz que nos conduz, por um fio, no condão do tempo ao afã de um momento assaz, fugidio, fugaz de recordação; memento para a alma e o coração, na calma sã, sadia, vadia daquela manhã.

Instigando, castigando, atando a gente, notória a mente nos traz à memória, amenas ou cálidas, quentes cenas da infância, na instância da transição entre a inocência dos primeiros anos e os desenganos da adolescência: os brinquedos, os medos, os folguedos pelos campos, a espantar tatus e teiús traiçoeiros; a correr atrás de pirilampos; a catar gabirobas, mangabas, mamacadelas, araticuns; a roer tucuns ou quase morrer de tanto chupar cajus; a ouvir e fugir do zunzum dos exames de abelhas – bolo preto, barulhento, peçonhento junto às telhas; a escutar o canto chorado das seriemas; a olhar o andar gozado das emas no cerrado; a banhar no banheirão, poço fundo, profundo em minha recordação; a recordar o ardor do primeiro amor: o olhar,o andar, o rosto branquinho, redondinho, fofo, o jeitinho de anjinho barroco, os olhos de jabuticaba, pretinhos, de uma ternura que não se acaba; a boca pequena, qual florzinha amena, o biquinho a ofertar beijinhos; o falar com tanta ternura e carinho: “Ah, se você fosse mais velho!...”

Abestalhado, embasbacado, bobo de tanta paixão por aquela deusa, o degas aqui, sem direção, sem patatá nem patati, apela para o tango, o samba-canção. Na vitrola rola, no total do dia, aquela latomia, na agonia da triste repetição: “Não digo o nome de quem amo, / De quem eu gosto nunca falo, / Ninguém escuta quando eu chamo, / É por isso que me calo”.

Recordações que nos prendem ao pretérito, o passado tão dileto, tão distante e tão presente; pura poesia, na calmaria daquele instante, daquele dia, amarga alegria, euforia n’alma, mente e no coração da gente!

Fugaz, arredio, o tempo flui, traquinas tal qual o vento, num corrupio passa, embaça nossa vivência, na dura labuta pela existência, a branquinha de cara redondinha, a professorinha, o anjinho barroco, meu sufoco, meu apego, meu sossego e meu tormento na adolescência, tal qual o vento flui e se dilui, na quimera das eras, cai e se esvai no redemoinho do esquecimento.

Em respeitoso e proveitoso solilóquio consigo e em colóquio com o amigo sol, cultiva a altiva civilização egípcia, em tempos idos e bem vividos, estranha façanha, súditos e faraós em uma só saudação, nas manhãs práticas, mágicas e sãs do antigo Egito, rito especial, milenar, bonito, o de captar energia solar na primeira hora do dia... Solícito o sol, sem usura, na constância de tanta abundância e fartura, fecunda todos os viventes - animais, flora e gente -, perpetuando os elos e anelos do tear da vida, na freqüência da existência sideral do astro rei e da terra biodiversa e universa, na concepção do contexto da criação; sendo o sol o senhor e mentor do nascedouro e ancoradouro de tão duradoura e promissora civilização que a tudo eclipsa – a egípcia! O compasso do estreito laço de respeito ao pai sol e à mãe natureza, razão maior de sua riqueza!

Vem a modernidade insana, profana em ardis, sutis atrocidades; cuja regra é quebrar a unidade do todo, no engodo da sagacidade, velocidade e esperteza do acumular riquezas, do muito ganhar...

Voraz e assaz, qual Satanás na sanha por destruição, o homem, com mil proezas, desfaz a biodiversidade da natureza, na crueza da bruta realidade, bárbara busca do lucro sem escrúpulo! Teso trabalho: tratores triturando tudo, não respeitando nada; tesas, troncudas, seculares árvores, aos milhares vão ao chão; o tratorista trata tudo com furor infernal, sem saber do mal que faz a mando do patrão, do empregador; pilha pássaros no ninho, mata filhotinhos, espalha pânico e dor; humilha, derruba, destrói toda a família da natureza – fauna, flora -, na degola, entope vertentes e nascentes na afoiteza do acúmulo de riquezas.

Naquele vai-vai incessante, inconseqüente, estressante, a natureza doente se esvai e vem o que não convém ao homem: a sequidão, o calor escaldante, o maremoto, o tremor e o estertor da terra, o desespero do destempero do tempo. A natureza berra, mas o insano ser humano continua na estranha guerra de a tudo destruir, sem se preocupar com o porvir, com o que há de vir.

Desumano, profano, ingrato, caricato em acumular sujidade, o homem da cidade que tudo consome; insano ser a espalhar plástico, metano, lixo, a pestear nossa esfera, a furar e danificar a camada protetora da atmosfera, ao crer na vaidade e veleidade de ser feliz, no sem juízo do prejuízo imundo e profundo que pode causar ao mundo, na busca da comodidade, custe o que custar; tamanha sanha de acumular facilidades e falsa felicidade; mesmo ao saber, sentir, intuir e ver por um triz a vida sendo consumida, com a camada de ozônio sucessivamente destruída. A terra não atura tamanha loucura, eis o aumento peçonhento da temperatura, na porfia de todos os dias.

No açoite da noite, o calor multiplica, o corpo claudica à exaustão! Nodoso, pegajoso aperto no coração... O mundo não cabendo no colchão!? Suor em bicas, em profusão! Caldeirão! Calor do cão! O mundo se estrumbica? Num sus, o peso e o vezo daquela cruz: ruge, estruge um trovão! Um raio escaldante de luz azul, um sol real, com calor infernal, me traz algo de especial: Vejo, em meio ao calor e à inclemência, o amor da adolescência, lindamente feliz, afinal; com aquele jeitinho de anjinho barroco, branquinha, tão minha, com aquele sorriso angelical! Amor platônico, estriônico, estupendo, tremendo!... Dá-se então outra explosão: O mundo, num segundo indo-se ao chão. Depois... só cinzas, caos, escuridão!

Corpo, coração em desmantelo, acordo de tão cruento, pestilento, pesadelo!

Na ciência e inclemência da dúbia realidade deste sonho, tão medonho, uma premonição: O fim da civilização! Na verdade, o que se espera da falsa, fantasiosa, perigosa, egoísta e niilista felicidade de nossa era!?

Iporá, 18 de maio de 2017

Lazaro Faleiro
Enviado por Lazaro Faleiro em 21/01/2020
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