O caderninho azul

O CADERNINHO AZUL

Eram sete horas da manhã de uma sexta-feira e o sol dourado prometia outro dia de calor implacável de novembro. Afonso estava esperando a banca de jornal abrir. Batendo com o bico do sapato no meio fio, fumando um cigarro atrás do outro, a ninguém passaria despercebida a sua ansiedade. Assim que o jornaleiro aparece, pega o jornal e vai direto para as páginas dos classificados. Uffa! Estava ali. Torcia para que a pessoa certa o percebesse. Só isso importava. Gastara o resto das suas economias para mandar publicá-lo. Passava os olhos sobre as letras minúsculas, conferindo o texto:

Procura-se aflitivamente um pobre caderninho que tem escrita na capa a palavra “endereços” e dentro todo sujo, rabiscado e velho.

Procura-se um caderninho, escrito a lápis e tinta e sangue, suor e lágrimas... Na segunda parte da letra D há notas sobre vencimentos de humildes, porém nefadas dívidas bancárias e o nome do meu bem que é todo o mal da minha vida.

Pondera-se que tal caderninho não tem valor para nenhuma outra pessoa de boa-fé, a não ser seu desgraçado autor.

Lendo aquelas palavras, seu pensamento se voltou para o dia em que tudo acontecera.

Era uma tarde tumultuada, na oficina onde trabalhava. O telefone não cessava. Muitos clientes apressavam o término do serviço em seus veículos, mas tinha de ir ao banco pagar aquelas contas vencidas. Saiu enxugando as mãos encardidas de mecânico em uma estopa velha, pegou o caderninho de anotações, jogou no assento traseiro do Jipe velho e sai apressado. O banco encerraria seu expediente em 15 minutos. Seria tempo suficiente.

Ao virar a primeira esquina, freou rápido. Uma moça atravessou a rua correndo e por pouco não é atropelada por ele. Freou o jipe, olhou pra ela e viu que não estava bem. Ofereceu-se para ajudá-la e ela aceitou entrar no jipe. Sabia que perderia a hora do banco, mas aquela garota, com certeza, precisava de ajuda. Ela não falava, nem olhava para ele. Estacionou no acostamento em frente a um bar e perguntou o que havia acontecido. Não obteve resposta. Ela usava um perfume forte, e a saia tinha subido bastante nas coxas, deixando à mostra belas coxas bronzeadas. A blusa era bastante decotada, de forma que seus seios pareciam querer saltar para fora.

— Espere aqui, vou buscar água pra você!

Ela assentiu, sem fitá-lo. Ele foi até o bar, pediu uma água e ficou esperando. O banco agora já estaria fechado. Com certeza teria prejuízo, mas a moça que deixara no carro mexera com ele e isso já não importava mais.

Pagou e saiu apressado. Ainda ao longe, percebeu que a garota já não estava mais lá. O carro estava aberto e abandonado. O que teria acontecido? Olhou para os lados e nem sinal dela. Ao entrar no jipe, encontrou seu caderninho de anotações aberto, sobre o banco do carona. Na página da letra D, onde anotara as dívidas a serem pagas naquele dia, um nome de mulher. Com certeza fora ela quem escrevera. Com letras bem grandes e visíveis. DANNY. Seria o nome dela? Só podia ser. Não estava ali antes. Logo abaixo com letras um pouco menores, um endereço. Por que não o esperara? E por que deixara seu nome e endereço?

Fechou o caderninho e deixou ali mesmo onde havia encontrado. Ligou o carro. Voltaria pra oficina, agora já não adiantava a ida ao banco. Dirigia bem devagar observando tudo, com a esperança de que pudesse encontrá-la entre os transeuntes. Uma estranha sensação de perda invadiu-o. Estacionou o carro dentro do galpão da oficina e saiu rápido para atender um cliente. O fato de pensar nela daquele jeito deixava-o perplexo. Como podia ser? Vira a moça apenas por uns instantes e agora não conseguia se livrar da lembrança dela. Tinha a sensação de aperto na boca do estômago.

Mais tarde em seu quarto, ainda pensava nela. Danny.... Que pernas graciosas, de cabelo louro como cetim, de olhos verdes com pintinhas douradas..., mas tristes. Aquela garota parecia tão só, tão mal amada. Fechava os olhos e a imagem dela aparecia em sua frente como um fantasma a persegui-lo. Nunca a vira antes. E achava que ela definitivamente valia a pena ser vista. Estava decidido, no dia seguinte sairia a sua procura.

Levantou-se mais cedo que de costume. Queria aproveitar a manhã para encontrá-la. Achava que aquele endereço ficava bem longe dali, por isso não podia perder tempo. Abriu o carro e quando buscou o caderninho de recados para olhar novamente o endereço, não encontrou. Vasculhou todo o carro e nada. Havia deixado ali. O coração parecia querer sair pela boca. Alguém pegara o seu caderninho de dentro do carro ou ele havia esquecido em algum lugar? Não se lembrava de tê-lo tirado dali. Voltou ao quarto. Talvez tivesse levado pra lá quando foi dormir. Nada. Passou a manhã tentando encontrá-lo. Não podia entender o que tinha acontecido. Se houvesse ao menos lido com atenção o endereço deixado por ela... Não conseguia lembrar.

Uma semana já havia passado e nenhuma notícia do caderninho azul. A lembrança da garota não se dissipou, ao contrário, era cada vez mais forte. Os efeitos das noites sem dormir estavam começando a se fazer sentir. Tinha que tomar uma providência. Resolveu, então, colocar aquele anúncio no jornal.

O som de uma buzina insistente trouxe-o de volta a realidade. Estava parado, sem muito ânimo para trabalhar, mas foi para a oficina com o jornal na mão. Agora era esperar.

O toque da campainha o despertara naquela manhã de domingo, dois dias após a publicação do anúncio. Vestiu o roupão que estava sobre a cabeceira da cama, calçou os chinelos às pressas. Antes de abrir a porta olhou o relógio de parede. Eram nove horas. Quem seria tão cedo?

A imagem com que se deparou ao abrir a porta deixou-o petrificado. Não conseguia fazer um só movimento. Era ela. Agora com um sorriso no rosto e mais bonita que antes. Trazia na mão uma página de jornal. Ele fechou os olhos, por um momento, mas ao abri-los o rosto sorridente ainda estava lá.

Ficaram frente a frente a olhar um para o outro. Sorriam sem dizer uma palavra. Não podiam falar..... Toda a manhã de primavera, cheia de sol e de perfumes doces, tinha entrado com ela, naquele quarto desarrumado. Ela estava ofegante, devia ter subido as escadas a correr. Seus olhos castanhos não vacilavam nem um segundo quando encontraram com os olhos verdes dela. Ficaram, por uns instantes, totalmente inertes.

Em seguida ele olhou a seu redor, meio sem jeito, desejando que o quarto estivesse mais em ordem. Antes que pronunciasse qualquer palavra, ela segurou em seu braço e o puxou para si. O rosto dela se aproximava, vinha a seu encontro, e ele sentia seu hálito quente no rosto, seus braços a enlaçá-lo. A boca de Afonso encontrou-se com os lábios macios de Danny, sentindo o gosto ardente da paixão. Nesse momento, esqueceu de tudo. Nunca tinha ouvido sua voz, não sabia nada sobre ela, mas o que mais queria era amá-la.

Nem todas as palavras do mundo, nem todos os segundos de inúmeras horas seriam suficientes para descrever ou contar o que aconteceu naquele quarto, naquela manhã de primavera.

(Prof. Mônica Zanol in:Contos & Sentimentos/8ª A-EMMTM)

Rio Branco-MT, Julho de 2007

Mônica Zanol
Enviado por Mônica Zanol em 23/10/2007
Código do texto: T706292