Sopro do Deserto

Nas ruínas do antigo reino, assombrava contra a areia o Rei Corvo, enquanto agitava sua capa em meio as dragonas de aço em seus ombros. Embainhava sua espada junto a cintura, seguindo rumo aos caminhos de areia quente, os ramos de seu destino que permaneciam quentes perante a madrugada. De certo, os ventos uivavam temerosos, sua presença única impregnava em curiosidade os novos ares, as dunas se contorciam na luz do luar, banhando o mundo desértico em prata.

Sua capa balançava na dança dos ventos, suas grevas deixavam marcas que eram apagadas pelo movimento das areias, sua respiração pesada confinava o calor por onde respirava, as ruínas iam ficando para trás, como familiares se despedindo por longo de sua jornada, suas asas repousavam sobre os ombros, seus olhos atentos arrastavam-se diante os escorpiões naquele céu noturno.

Dentre as grevas circulava o frio da madrugada, os olhos serrilhavam por momentos por causa da poeira, seu corpo contra o sopro do deserto, era como um sobro de vida que o mandava voltar para seu reino caído, mas, a sensação de calor que cobria seus pés a cada passo o determinavam a continuar andando naturalmente, de forma que fosse os uivos dos lobos da matilha, a sensação que a natureza, por mais perversa e serena que fosse, o chamava para seu futuro.

O respirar do deserto foi interrompido por patas ligeiras, ele já sabia a direção, a velocidade o objetivo de ser alcançado pela criatura, mãos entre a bainha, preparado para sujar o manto desértico de sangue até ser engolido pelo tapete natural do esquecimento, num pulo, desembainhou sua espada de aço e girando seu corpo, colocou-a ao lado da garganta da raposa ligeira que vinha em seu encontro. Ela, tomando forma em cabelos negros e olhos laranjas, cumprimentou o velho amigo que lhe lançara no chão, enquanto com olhos sanguinários, sorria pensando na guerra. Mas, ao recobrar sua sensatez, vira sua conhecida e lhe oferecera a mãos para se levantar.

Retirando os grãos de areia de seus ombros, pediu desculpas pela grosseria, mas ela entendera que seu amigo estava com a mente conturbada pela guerra que lhe trouxe ruína, tomou seu braço e descansou o seu sobre o dele, ambos, andavam até o destino. O Rei Corvo retirou uma das grevas para sentir o calor da mão de sua amiga, ambos estranharam a sensação de terem segurança, mas mantiveram o contato, as vezes seus olhares também se tocavam, mas logo desviavam para a atenção ao redor desconhecido.

Seu coração acelerado era tudo que ouvia em seu corpo, enquanto suas mãos suavam no meio do frio do deserto, ela se encolhia para dentro da capa a medida que andava, ele a recebia com o braço em seus ombros, as dragonas de aço que usava ressonavam com em resposta ao mestre, suas penas ouriçavam, seus olhos mudavam o tom, ela agarrava em sua cintura.

É reconfortante receber uma velha amiga em meio a segurança, não somente a dele mas de conseguir depois de anos manter-se como uma égide para alguém amável, a caminhada já estava lhe deixando exausto, mas a solidão carregava muito mais do que esforço físico, rumo ao norte, ambos não trocavam uma palavra sequer, os estigmas de suas discussões mantiveram dolorosas inseguranças perante o futuro, mas, como o sopro do deserto, enterraram o passado sobre as areias do deserto.

As orelhas de sua parceira se remexeram com sua primeira palavra, os olhos brilhavam perante o luar, as presas recolheram por uma faceta humana, quando sua voz, pouco rouca pelo silêncio quase eterno, soltaram-lhe a fala: “Raposa”. Sua primeira palavra, foi o chamado por sua conhecida, que secretamente suplicava a ele o dom da voz novamente, mesmo que o antigo Rei tivesse palavras tão amargas em seu reinado, agora ele era apenas um peregrino entregue ao destino. Ela, timidamente, respondeu-lhe o chamado, soltando de forma medrosa: “Rei Corvo”.

Mesmo com o reino definhado em ruínas, um Rei sempre será um Rei, pois o trono, nada mais é que um adorno da realeza, mas, enquanto restasse os resquícios de um conquistador, ele nunca poderia ser confundido com Corvo, nem sequer ser sangrado por cores avermelhadas, ele por naturalidade, ofereceu um sorriso doloroso, as sobrancelhas desceram com um peso em seus olhos, os dentes apareceram e se encontravam, era um rosto que não lhe alcançava fariam anos, enquanto ela apenas respondeu com alegria, enquanto o rabo era controlado para não balançar.

“Foram anos sem uma conversa sensata” – Disse o Rei Corvo. A Raposa afirmou com a cabeça, enquanto apertava um de seus dedos da mão, “Realmente foram conversas inaudíveis, mas nada paga o preço de se ter a voz alcançando nossas orelhas”. Ele logo agarrou com a outra mão o seu próprio peito pelas placas de metal que escondiam a carne, “Dói, dói muito”, tudo que ela poderia ter falado com a voz trêmula foi “Dói mesmo, dói, dói muito mesmo”.

Encontraram as cabeças como forma de descanso naquele caminhar eterno, meio ao chão, um escorpião brilhava, afastando a areia com suas pinças, logo eles pararam, a Raposa recolheu o rabo em forma de se proteger, enquanto o Rei Corvo estendeu-lhe a mão ao se inclinar, o animal em reverência, caminhou até sua mão, colocou a cauda entre suas costas e juntou as pinças como forma de demonstrar-se inofensivo, após a breve apresentação de ambos, logo colocou-o sobre o manto de areia novamente, com a mão em grevas, iniciou o buraco em que logo seu breve amigo desaparecia.

“A caridade é uma das forças supremas dos senhores” – Dirigiu-se sua amiga até sua satisfação carinhosa com seu animal peçonhento. “As maiores dádivas são dadas para estendermos nosso futuro, não para encurtar nossos destinos”. “Dita frase feita por um rei para com seu reinado, se a benevolência tivesse tocado ao coração de todos, não seríamos só ruínas”. Ele logo recolheu a capa aos ombros que foram descobertos, cerrou a cara no tom sério que sempre manteve, demonstrando guarda sob seus sentimentos, logo disse: “Eu sou Rei, infelizmente não sou supremo, apenas o guiador entre os oprimidos e a esperança daqueles que não nasceram para as asas, acontece que, no momento que eu cair, todo o reino vai a ruína, independente de motivos”.

A crueldade de suas palavras eram tão verdadeiras quanto a luz do sol, mas, naquele coração amargurado, os ressentimentos rastejavam como em um ninho de cobras. “Somos trincados, amigo. Enquanto for chamada de amiga, somos nós e não um. As vezes o melhor curativo é o tempo”. Ele remexeu as penas das asas, passou a mão sobre a asa, mas mesmo que os grãos de areia iam de encontro ao solo, nada poderia tirar o sangue que manchou aquelas penas.

Mas, dentre todas as crueldades que poderiam ter saído daquela boca, as palavras que acertaram a Raposa certeiramente, “Sou um Rei destronado, mas não sou uma pessoa sozinha, você, me conforta”. “Enquanto houver chão sobre meus pés” – Disse sua amiga. “Enquanto houver céus acima de minhas asas” – Terminou o antigo juramento.

Eles continuaram pouco mais seus caminhos quentes, a madrugada dolorosa e quase eterna os castigavam com frio, enquanto nenhuma nuvem pairava sobre os céus, era possível contar os buracos da lua, tanto qual enxergar o brilho das estrelas, o céu noturno era bonito, mas não se comparava a sensação de voar andando com os pés junto sua companheira. “Eu poderia odiar tudo, eu queria odiar tudo, mas porque eu não sei essa sensação quanto te tenho em meus braços?” – Retrucou ele para a Raposa, enquanto ela não encontrava palavras suficientes para expressar a alegria, não eram as que ela gostaria de ouvir, mas só isso fez o frio da noite, se tornarem verão em suas bochechas e primavera em seu estômago.

“Da mesma forma que eu não procuro, mas me acho em seus braços, que talvez, só talvez, poderia ser entendida por uma pessoa, que compartilho quase as mesmas cicatrizes em meu coração” – Ela não conseguia recitar tal frase olhando em seus olhos, já ele, procurou refúgio no céu. Quando voltou a cabeça para o deserto, respirou fundo e desapontado, “Platônico”, foi a única palavra que ele conseguiu falar. “Se Platão tivesse conhecido o que eu conheço através desses olhos, ele nunca teria inventado o amor platônico”.

“Se mantemos como seguimos, platônico será platônico, tal como o deserto é o deserto, como a lua é a lua, como os mitos são mitos”, sem demora, ela presentou a resposta após um respirar doloroso de insatisfação “Mitos continuarão sendo chamado de mitos, por quanto ninguém o venha provado como verdade, talvez as palavras amigáveis que trocamos, podem não significar o que elas realmente deveriam ser”.

O Rei Corvo não gostaria de falar o que entalava em sua garganta, muito menos saber o que aquelas palavras poderiam trazer de forma consequente. Aquela sensação de segurança, não é achada em nenhuma mão que o tenha tocado, nenhum horizonte poderia ser visto pelos olhos que refletiam os seus, tampouco o faria secar os lábios tantas vezes por uma sede que não poderia ser saciada, porém, temeroso, não as falaria, ou talvez, gostaria que fosse despertado como o primeiro raio do alvorecer.

“Enquanto não mudamos, de alma nem de situação, não acho ruim a forma em que caminhamos pelo Sopro do Deserto” – Disse ele. “Mas, entre um dia ter que mudar o rumo para os meus passos quentes do destino, eu gostaria que isso durasse eternamente”.

Logo em sua mente, martelava o pensamento. Mesmo que gostaríamos que durasse eternamente, o destino nos providenciará o final de suas obras, essa cena será eternizada no passado, mas o próximo ato no futuro, poderia nos proporcionar o desatar das mãos para que a obra estivesse completa. “Eu também gostaria que durasse para sempre, pois sem levantar as asas eu me mantenho voando, o céu em que os ventos sopram divergem desse céu que meu coração encontra as alturas”.

“Sou da terra, não conheço os céus e nem poderia como raposa morder as nuvens igual faria Rei Corvo, seja o céu para você, o que poderia ser a terra para mim”. – Disse, irritada. “Para você Raposa, é como os campos verdejantes do Elísios, em termos curtos e grossos, é a colheita do trigo”.

“Sabe me encantar mesmo não sendo como eu, poderia ficar comigo por esses caminhos entre patas e grevas?”, ela requereu perante o soberano dos ventos e ele, calmamente, apertando o abraço em sua cintura, olhando em seus olhos: “Enquanto esse destino durar, estarei aqui por tua felicidade, se o destino me presentear com a eternidade, a curiosidade da morte nunca mais poderia me trazer qualquer prazer”.

Pela primeira vez, após os eventos do Reino em Ruínas, o Rei Corvo temeu a morte, a dele. E a do momento.

Corvo Cerúleo
Enviado por Corvo Cerúleo em 25/11/2020
Código do texto: T7119983
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