HÉLIO GASPARINI (parte 2)

A saída que encontrou nosso protagonista para afastar os maus pensamentos foi se dirigir, ainda cedo, para o bar Maria do Mar, próximo à orla da praia da Barra da Lagoa, não muito distante de sua casa. O aconchegante bar é propriedade de Dona Dorotéia, uma senhora gorda,com um olhar cândido e um sorriso acalentador e com fartos seios pendendo sob suas largas roupas. Viúva de um marinheiro gaúcho, mudou-se ainda jovem de Fortaleza, com o marido, para Florianópolis, de onde nunca mais veio a sair. Com o falecimento precoce do marido, lá pelos idos da década de 1960, montou, com o dinheiro recebido do governo, esse modesto, porém agradável e muito bem freqüentado bar. Como já afirmado, a manhã estava deveras agradável, propícia para um passeio à beira-mar, curtindo o calor gostoso das manhãs ensolaradas de inverno e relaxando com o balé das gaivotas que sobrevoam os barcos de pesca fundeados no canal da praia. Todavia, com o espírito um tanto nublado, Hélio refuta essa opção, dirigindo-se ao Maria do Mar.

— Quem é vivo sempre aparece, hein!, disse sorridente Dona Dorotéia. Fazia tempos que não te via por essas bandas.

Com um ar de poucas palavras e incomodado pela presença inoportuna da mulher, resignou-se a cumprimentá-la com um discreto sorriso, seguido de um leve aceno de cabeça, respondendo o que quase sempre respondia: “— ocupado, minha senhora. Muito ocupado”. Verdade é que Dorotéia sabia que não estava ocupado, mesmo porque bar é local para tudo quanto é tipo de gente, menos para gente ocupada. Até mesmo em seu estabelecimento, conhecido pelos moradores da região como local agradável e tranqüilo para se freqüentar, é incomum a visita repentina de alguém que vive ocupado. Seu bar é freqüentado por pescadores no final de tarde, por pessoas à procura de um momento de lazer, após estafante dia de trabalho, por pessoas em férias, ou até mesmo por bêbados e vadios, estes em horário de baixo movimento. Todavia, para Dorotéia todos eram desocupados à procura de lazer, ou melhor, à procura do que fazer. Não existia freguês seu que não tinha tempo para uma visita semanal que fosse, a não ser que esse freguês se chamasse Hélio Gasparini.

— Vais beber alguma coisa?, perguntou carinhosamente a mulher.

— Que tal uma cerveja bem gelada para relaxar...

Com a rapidez e a exatidão dos bons comerciantes, prontamente foi atendido. Assim que deu o primeiro gole, notou algo diferente no semblante das pessoas a sua volta. Teve a ligeira sensação de que estavam todos lhe observando, como se fosse algum estranho ou algum forasteiro. Contudo, quanto mais analisava, menos percebia que algo de estanho à natureza comum ao bar acontecia. Por um momento fortuito teve essa ligeira sensação: que todos o olhavam, como se não o conhecessem. De imediato lembrou-se daquele fato elementar de sua consciência, irritando-se. Também pudera, não é comum pessoas de seu círculo social o indagarem com olhares suspeitos e constrangedores. Não estava acostumado a isso, daí seu irritamento. Menos mal que parecia apenas uma impressão sua, alimentada pelo seu transtornado espírito, fato que, todavia, não contribuiu para amenizar a suspeita de que estava sendo vigiado.

Querendo aparentar tranqüilidade, mostrou-se indiferente e sereno. Nesse momento já tinha esvaziado meia garrafa de cerveja e já estava se preparando para encher mais um copo. Queria encerrar logo a garrafa para poder se esconder dos olhares inquisidores que o cercavam. Não entendia como não percebera ainda ninguém o vigiando, já que sentia estar sendo constantemente observado. Algo um tanto estranho para o nosso amigo Gasparini, já que se não estava cercado apenas de amigos, muito menos de gente estranha o estava. Agoniado e constrangido, e achando toda essa situação uma bobagem criada pela sua cabeça, dá um enorme gole de cerveja, sorvendo todo o líquido contido no copo de uma única vez. É nesse momento que, de relance, se depara com sua imagem projetada na mesa que estava sentado. Um detalhe que o narrador escamoteou do leitor diz respeito ao fato de as mesas do Bar Brasil serem todas redondas e com tampos de vidro levemente escurecidos e ornados com uma singela peça artística em consonância com a decoração ambiente.

Quem viu a expressão de desespero que se abateu por alguns segundos sob o rosto do nosso protagonista, não teve outra sensação que não a de medo, um medo ocasionado por uma respulsa erigida pelo estado de terror que assumiu seu semblante. Novamente aquela visão o perturbara; novamente sua desfigurada imagem se construía em seu pensamento, fazendo-o crer que era uma fera. Perplexo pelo que viu — é que desta vez parecia ainda mais desfigurado seu reflexo — bebeu rapidamente mais um copo de cerveja e se retirou sem pagar a conta e sem se despedir de Dorotéia. Atitude que para a proprietária do bar foi considerada normal, na medida em que conhecia bem a personalidade de Hélio. Não fora a primeira vez que se retirara sem falar com ninguém, nem mesmo com ela, colega de anos. De repente decorra daí sua relativa indiferença a essa atitude repentina. “— Vive com a macaca, esse velho rabugento!”, dizia, com um discreto sorriso nos lábios, a proprietária do bar.

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