HÉLIO GASPARINI (parte 3)

Foi assim que deixou para trás o Maria do Mar, rumo a sua casa. Certamente muitas coisas pensou nesse trajeto, pois ficara realmente com uma “pulguinha atrás da orelha”. Se até então apenas ele tinha notado algo de estranho em si mesmo, agora a situação mudara, pois não foram poucos os olhares furtivos porém desconfiados. “— O que será que está acontecendo comigo? Por que diabos estou me transformando num sujeito sem expressão, quase sem identidade?”, perguntou a si mesmo. E é bem assim que se sentia: um sujeito sem expressão e identidade. Já no seu quarto, resolveu deitar-se na cama para descansar um pouco. A idéia era dormir para tentar esquecer esta tarde, porém sabia que não conseguiria descansar tão cedo, já que em sua cabeça ruminavam muitos pensamentos — um verdadeiro turbilhão de sentimentos. Como se pode perceber, a vida de Hélio Gasparini é monótona e, até certo ponto, solitária. Quando não está trabalhando, vai para casa, e quando não faz uma coisa nem outra passa no bar de Dorotéia. Uma vez ou outra que pratica uma caminhada na praia para espairecer os pensamentos e sentir o cheiro gostoso da maresia. Porém, após aquele acontecimento, nunca mais se aventurara a caminhar pelas areias brancas da praia. O receio que aquela inusitada situação o causara, fez com que Hélio se encastelasse ainda mais, se tornasse ainda mais introspectivo e retirado.

Atitude execrada por alguns a maneira como Hélio se escondia em si mesmo, mas atitude certamente tomada como uma medida preventiva e de auto-preservação de si mesmo. Ainda mais agora, após notar certa estranheza no semblante das pessoas que o analisavam. Sempre muito solícito, Hélio nunca fora uma pessoa exposta aos olhares furtivos, porém agora estava completamente recluso, à parte do mundo que o cerca. Até mesmo seus peculiares modos sofreram algumas mudanças, e seu gosto pelo passeio, sentindo o forte vento sul batendo no seu rosto (acompanhado de seu puído paletó), teve que ceder lugar à reclusão em sua casa. O sol que anteriormente resplandecera imponente nas paredes internas de seu quarto, agora se escondia fugidio por detrás das persianas — espécie de invólucro protetor que nutria em Hélio uma espécie de segurança materna.

Como nosso amigo Hélio não tinha ninguém para orar por ele, acabou contratando uma empregada, ou melhor, uma pessoa para limpar sua casa semanalmente. Mesmo que não fosse uma pessoa desatenciosa com os afazeres domésticos, serviços mais pesados de limpeza necessitavam de alguém mais experiente para o assunto. Como as férias ainda eram correntes, Hélio Gasparini permaneceu trancafiado em sua masmorra, relativamente despreocupado com o mundo a sua volta . Lamentava apenas as horas demoradas que prolongavam ainda mais seus dias e suas noites. Talvez por isso passava dois ou até três dias inteiros trancado em seu quarto, com as janelas fechadas e a porta semi-aberta, apenas digerindo esses acontecimentos. É como se a relativa escuridão que envolvia o seu quarto o acalmasse, fazendo-o esquecer, mesmo que por instantes, sua degradante situação. Até mesmo a mulher que ele contratara para fazer os serviços mais pesados da casa raramente o via. Mesmo porque não durou muito no ofício, a pobre mulher, já que, para Hélio, o fato de ter que conviver quase que diariamente com aquela figura desconhecida causava-lhe um certo desconforto e mal-estar.

E não era para menos, já que seu reflexo, cada vez mais borrado, desfigurava agora não somente seu rosto, mas seu corpo por inteiro, a ponto de se sentir, Hélio, como uma enorme e berrante mancha ambulante. Se outrora apenas o seu rosto era uma massa desfigurada, agora todo o seu corpo também o era. Braços, pernas, dedos, joelhos e pés, nada escapava. Tudo se tornara uma massa amorfa, como se todo o seu ser se contorcesse. Nesse momento, por algum motivo fortuito, Hélio Gasparini percebeu que não seria mais o mesmo, que sua identidade mudara para sempre e que o restante de sua vida passaria trancafiado em seu escuro quarto. Nunca mais sentiria o vento sul tocar o seu rosto, nem iria mais ao bar Maria do Mar — local para ele aprazível. Até mesmo as raras caminhadas na praia agora começavam a fazer falta, motivo que o levava a crer que toda a sua vida sumira, tornando-se uma página obscura num passado remoto.

Passados alguns meses de seu sumiço ninguém notara sua falta, a não ser Dorotéia, que, por vezes, ia a sua casa, à procura de notícias. Não encontrando nada, nem ninguém, voltava cabisbaixa para o bar, indagando-se qual seria o seu fim. Raramente se falava em Hélio, raramente se comentava a sua repentina ausência. Nem mesmo os colegas de trabalho, alguns afeitos a sua presença, sentiram a sua falta. Independente do que diziam ou deixavam de dizer acerca da pessoa inusitada que fora Hélio Gasparini, o certo é que sua figura ficara para sempre ofuscada na lembrança de todos que um dia tiveram contato com ele. Hélio Gasparini evaporara do mundo como uma fina névoa, não deixando saudades ou lembranças, ficando apenas, em seu lugar, uma figura amorfa, sem nome, títulos e identidade.

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