Eurok: Capítulo 1

O sol já se pusera quando o navio atracou. Conforme as pessoas iam saindo, Eurok dava uma última olhada para o mar antes de desembarcar. Sua vida mudaria drasticamente dali pra frente. O rapaz que estava acostumado a não ter responsabilidades precisaria se virar de alguma forma para sobreviver.

O albergue em que ele pretendia ficar era na região portuária. As lamparinas da cidade já estavam todas acesas, dando um ar aconchegante à noite de Jumi. Ele não trazia muita coisa consigo, apenas algumas peças de prata e uma muda de roupa. Seus pertences estavam todos enrolados numa trouxa simples de pano.

Os habitantes da cidade de Jumi eram diversos. Enquanto andava do cais até o albergue presenciou interações peculiares. Humanos e xukan interagiam livremente, algo completamente diferente de sua cidade natal, Daroba.

Daroba era uma cidade interiorana no continente oriental. Seus habitantes eram praticamente todos humanos. Os poucos xukan que se aventuravam por lá sofriam com uma certa dose de preconceito e olhares desconfiados. Apesar de Eurok nunca ter interagido com um xukan até o momento, não era o tipo de menino preconceituoso. Talvez seu bom coração fosse demasiadamente ingênuo, inclusive.

Eurok chegou, finalmente, ao albergue. Não foi difícil, considerando o fluxo de gente que também se dirigia à instalação e as placas bilíngues da cidade. Cidades portuárias tem dessas coisas. Muita gente diferente se relacionando faz surgir a necessidade de uma população poliglota, ou apenas bilíngue, nesse caso. Apesar disso, o senhor que recepcionava os viajantes na estalagem o saudou em xukantapi:

“Raza! Zorapan!”

“Olá? Desculpe, fala a língua dos humanos?”

“Falo, meu caro, claro que falo. Nesse ramo precisamos falar de tudo! Posso até me comunicar por meio de sinais. Hã?”

O senhor gesticulava rapidamente alguma coisa que não parecia fazer o menor sentido para Eurok.

“Eu preciso de um quarto. Tenho comigo algumas peças de prata. Mas começo a procurar um emprego amanhã mesmo.”

“Muito bem, rapaz. me chamo Xijow. Acha que consegue pronunciar? Xi-jow.”

Ele repetia seu nome lentamente supondo a incompetência de Eurok.

“Xijow? Consigo. A propósito… as pessoas na cidade falam a língua dos humanos? Ou apenas a língua dos xukan? É preciso aprender para arrumar um emprego?”

“Bom! Xijow. E você é…? Sabe, rapaz, você precisa se apresentar, antes de tudo. Aqui gostamos de saber os nomes uns dos outros. Não sei que tipo de experiência você teve com xukan, mas somos bastante… calorosos. E quem não gosta de aprender uma língua nova, rapaz!?”

O senhor ainda gesticulava algumas coisas enquanto falava e Eurok sentiu-se muito bem recebido. Apesar de estar ali há, no máximo, 20 minutos, seu inquilino o tratava bem, como velhos conhecidos.

“Eurok. Eu venho de Daroba, do continente oriental. Aconteceram algumas coisas, eu precisava de novos ares, entende? A vida precisa ser mais do que era, eu quero me sentir vivo de novo! Eu não sei nada da língua dos xukan, acha que pode me ensinar o básico?”

“Anhan! Sin mu’aygye dutapähu: mu’ay Eurok, tajrafi!”

Eurok olhava e ouvia sem entender uma palavra além de seu nome, mas suas capacidades dedutivas eram um tanto quanto boas.

“Mu’ay Eurok?”

“Grandioso, rapaz, já está quase fluente! Fêi tupan tapâsa xukantapidut!”

“Obrigado…”

“Zahyekäsa!”

“Já sei: de nada?”

Eurok estava orgulhosíssimo de suas capacidades dedutivas, coitado…

“Não, rapaz! É assim que agradecemos por aqui! Zahyekäsa! Ou apenas zahyek.”

“Ah… e como eu digo de nada?”

“Perfeito, rapaz! É bom ser educado, hã? Vejo que seus pais lhe deram educação!”

“Mães.”

“Mães. Desculpe, rapaz, eu não quis ofender, hã? Sin mu’aygye dutapähu: ob protravi!”

Eurok sentia-se arrependido ao lembrar de suas mães, por mais que elas tivessem lhe dado todo apoio e seus irmãos ainda estivessem em casa para olhá-las por ele.

“Ob protravi…”

“Vá dormir, vá, rapaz. Mas jante antes! Jante que hoje é por minha conta. Eu ainda vou à falência por ser tão coração mole…”

O senhor Xijow saiu resmungando alguma coisa em língua dos xukan e gesticulando rapidamente. Eurok sentou-se e aproveitou para olhar ao seu redor. O refeitório do albergue ocupava o térreo inteiro. Mesas, cadeiras, um balcão e um bar, tudo feito de madeira, assim como o chão. O cenário era bastante rústico, mas aconchegante. O refeitório não estava completamente cheio, o fluxo de pessoas saindo do albergue e subindo para os dormitórios era grande. Muitos dos hóspedes que ocupavam o refeitório vieram no mesmo navio que Eurok. Ele olhava tudo dispersamente quando um quadro de avisos verde, cheio de panfletos e cartazes, tomou sua atenção. Eurok pegou sua trouxa e levantou para olhar o quadro.

Muitos dos panfletos e cartazes colados eram exatamente o que ele esperava encontrar: propostas de emprego e serviços remunerados. Alguns convidavam os forasteiros a apresentações e espetáculos, outros procuravam pessoas e animais desaparecidos. Eurok alegrou-se e retornou à sua mesa. Já sabia o que faria na manhã seguinte.

Ele olhava pra baixo um tanto quanto animado antecipando seu primeiro dia na cidade de Jumi. De repente, uma moça xukan apareceu com uma bandeja.

“Däp supafoitxok.”

Eurok olhava para ela sem, genuinamente, entender nada.

“Aqui, sua janta.”

Ela dizia sorridente, como se fosse um prazer servi-lo.

“Obri-... Zahyek!”

“Ja! Tupan xukantapidut ja! Ob protravi! Onde aprendeu a língua dos xukan?”

“O senhor Xijow me ensinou algumas coisas há pouco tempo…”

“Meu pai! Muito prazer, eu sou Iknar. Você é…?”

“Mu’ay Eurok!”

Eurok respondeu com muita vontade, como se quisesse gastar seu ‘xukantapi’. Iknar sentou-se e os dois conversaram enquanto Eurok comia. Ele descobriu que suas idades eram próximas e seus interesses eram muito distantes. Iknar namorava um rapaz xukan um pouco mais velho, que estudava para ser diplomata, filho de um amigo de longa data de seu pai, Xijow. Eurok contou-lhe seus motivos para ter vindo a uma cidade tão, tão distante. Sua melhor amiga havia falecido há pouco tempo e Eurok não conseguia lidar com a tristeza que os lugares conhecidos lhe traziam todos os dias. Após dias trancado no quarto, resolveu conversar com suas mães e viajar.

Eurok havia feito o ensino humano obrigatório, mas nunca foi um rapaz brilhante. Tudo que havia planejado para seu futuro envolvia Kalima, sua falecida amiga. Quando ela se foi, a terra e o céu se foram junto, não restava nada.

Após algum tempo de conversa, Iknar precisava voltar para a cozinha para ajudar seu pai. Eurok entendeu aquilo como sua deixa para se retirar ao seu quarto. Pediu a ela que chamasse Xijow, precisava das chaves para o alojamento.

“Vejo que conheceu Iknar, hã? Ela é comprometida, rapaz! Ha ha ha! Aqui está a chave para o quarto. Trate de procurar um emprego amanhã, hã? Há muitas oportunidades nessa cidade, tenho certeza que algo te servirá.”

Eurok agradeceu e subiu em direção ao alojamento.

Como de costume, Eurok sonhara com Kalima. A noite havia sido relativamente tranquila. Apesar da região, não havia muitos ruídos. Eurok acordara descansado, mas triste e indisposto.

Antes de pensar em comer alguma coisa, ele se dirigiu imediatamente ao quadro de avisos. Pegou um panfleto e anotou no verso um par de endereços aos quais se dirigiria durante o dia. Antes de sair saudou Xijow com o pouco de ânimo que lhe restava.

“Zorapan. Eu estou indo atrás de serviço e dinheiro, espero que algum desses endereços me ajude.”

“Hã? Isso é ótimo, rapaz! Vá em direção ao centro. Há lá um grande mapa da cidade.”

Eurok saiu com mais vigor do que imaginaria. As ruas da região portuária estavam bem mais cheias do que a noite. Ele iria em direção ao centro da cidade de Jumi. O fluxo de humanos e xukan era parelho, a cidade parecia bem mais híbrida do que ele imaginara.

No meio do caminho havia uma praça. Redonda, com um grande chafariz no centro. Os bancos ao redor do lago artificial estavam todos ocupados. Eurok não estava cansado, pelo contrário, estava todo cheio de disposição, mas resolveu sentar-se e apreciar aquele cenário tão agitado e, sabe-se lá como, harmonioso.

Eurok sentou-se num banco vazio. Não muito tempo depois, e com isso quero dizer menos de um minuto depois, uma xukan de robe e chapéu sentou-se na outra ponta do banco. Ela trazia consigo uma pasta marrom. Eurok tentava não reparar, mas sua curiosidade era de fato grande. Até que outra coisa parecia mais interessante.

Alguns bancos de distância de Eurok, uma briga de rua eclodia. Ele ouvia tudo, não entendia nada. Um xukan e um humano se xingavam. Quero dizer, ele imaginava que eram xingamentos, pois havia uma agressividade tremenda na forma como eles balbuciavam aquelas palavras em xukantapi.

Dois minutos e algumas frases foram suficientes para que ambos partissem para a agressão física. Eurok olhava aquilo bastante preocupado. Os punhos nus do humano não eram páreo para as garras grossas e duras do xukan. Aos poucos as pessoas iam se aglomerando ao redor dos dois e Eurok já não conseguia ver nada de onde estava. Pensou seriamente em levantar e chegar mais perto, mas logo lembrou de seu objetivo.

Pensou em levantar e, virando-se à direita, percebeu que aquela xukan que sentara ao seu lado já não estava mais lá. A pasta marrom, porém, permanecia no banco esperando que alguém a pegasse. Eurok olhava em volta procurando a moça, mas ela parecia ter sumido.

Até que, finalmente, avistou um chapéu parecido com o dela ao longe. Ele não pensou duas vezes, pegou a pasta e saiu correndo através da multidão. Seu objetivo teria que esperar.

Conforme corria, pensou diversas vezes em parar e checar o interior da pasta. Cada vez que pensava nisso, pensava também no que suas mães diriam. Não era educado e muito menos correto aquele tipo de invasão.

Numa guinada à esquerda, Eurok perdeu de vista o chapéu que perseguia. Era uma rua estreita e estava completamente entupida de gente. Ele continuou em frente, apesar de não saber mais onde ir, até que, algumas lojas depois da esquina da rua, deparou-se com uma entrada pequena, pintada de um marrom semelhante ao da pasta. A princípio pensou que as cores teriam alguma relação entre si, mas seu caráter cético logo tratou de o contrariar.

Encostou-se na parede ao lado da entrada e abriu a pasta, dentro dela havia apenas um panfleto com o logo de uma loja e o endereço da mesma. Nada mais do que isso. Eurok checou a entrada à procura de um logo semelhante, mas, contrariando suas expectativas, não encontrou nada. Pensou em, apesar de tudo, entrar e ver o que encontraria degraus acima, mas decidiu que tinha coisas mais importantes a fazer.

Eurok, com a pasta embaixo do braço esquerdo, voltou à praça em que presenciara a briga. Dali, seguiu seu caminho para o centro de Jumi, onde encontraria um grande mapa da cidade. A região portuária ficava na zona leste da cidade e o endereço mais próximo o levaria à zona oeste.

Após pegar um panfleto com o mapa da cidade, Eurok seguiu seu caminho. Alguns minutos de caminhada e ele se encontrava na frente de uma loja humilde de perfumes e poções. “PAHFUNPOK MANNA” era o que dizia o logo da loja. Embaixo, em letras miúdas, lia-se “Casa dos Perfumes”.

Eurok abriu a porta e logo ouviu um sino pequeno e agudo badalar. Atrás do balcão levantou-se alguém. Um xukan já idoso saudou-o:

“Zaraza, zorapan. Aran kixitäsakyak brun?”

“Zorapan. Mu’ay Eurok. O senhor fala a minha língua?”

Eurok gastara todo seu xukantapi. Sentia uma vergonha que nunca havia sentido antes: a de não entender e não ser entendido.

“Ja. Avotxa ja. Falo, Eurok, eu falo a sua língua. Como posso ajudá-lo?”

“Eu vi num panfleto uma requisição e preciso de serviço e dinheiro, então…”

“Ah, não diga mais nada. É, eu preciso de ajuda. Aqui está. Uma lista. Uma lista de coisas que eu preciso para confecção de perfumes. Eu não posso ir atrás delas sozinho. Como vê, minha idade já é avançada e eu não posso deixar a loja sozinha.”

Eurok sentia uma certa ansiedade. Não fazia ideia de onde conseguir os ingredientes requeridos.

“Eh, senhor… e qual é o prazo? E onde os consigo?”

“Senhor Turyat para você! E, prazo? Que prazo? Não tem prazo, garoto. Você me traz os ingredientes e eu te pago! Essas coisas tem muita saída, nunca terei o suficiente. Pense nisso como um serviço recursivo.”

Aos poucos a ansiedade de Eurok ia amenizando.

“E o senhor Turyat poderia me dizer onde eu consigo essas coisas?”

“Consegue ler, garoto? Bom, eu traduzo! Veja: foidjapapok-ewgye é o que vocês chamariam de estrela-da-manhã. É um mineral muito brilhante. É abundante nos campos de Lize, a norte da cidade. Você vai ter que cavar um bocado, mas, na sua idade, eu acho que você dá conta!”

“Certo…”

Eurok não sabia se estava entusiasmado ou com medo dos campos de Lize. O tom de Turyat não o agradava muito.

“Hã, vejamos, tamahopok-naga: aqui temos uma espécie de planta típica das matas de Sendra, a oeste da cidade. Você pode chamar de galhos-do-macaco. É uma planta parasita que cresce nos galhos mais altos das árvores de Sendra, seu formato parece um rabo de macaco pendurado, daí o nome. Tome cuidado apenas para não cair, garoto, é muito difícil encontrar ajuda em Sendra.”

Eurok engolia seco. Aquele era um ingrediente que ele provavelmente não pegaria, independente do valor que aquilo valesse.

“E por último… ah! Esse é fácil! Kadjidjikipok-gara, você pode chamar de folha-de-kadjidjik. Kadjidjik é uma fruta típica daqui, não me surpreenderia se você nunca a tivesse provado.”

Eurok respondeu que não com a cabeça.

“Viu só? Você pode encontrar arbustos de kadjidjik em toda parte, mas eles são bem mais abundantes a sul da cidade. O único grande problema é que a região sul é conhecida como planície de Terka e há muitos animais perigosos por lá, não aconselharia lutar com nenhum deles. Apesar de pequenos, eles atacam em bando e há histórias de muitas vidas perdidas por aquelas bandas… mas não se preocupe, você sempre pode achar um arbusto de kadjidjik perdido nas matas de Sendra ou nos campos de Lize. Ha ha ha!”

Eurok estava aterrorizado. Ele definitivamente não se aproximaria das planícies de Térka. Após anotar tudo o mais rápido que podia em seu panfleto, Eurok se despediu e foi embora. O sol ainda não chegara ao seu auge. Eurok abriu seu mapa e se dirigiu ao seu próximo destino.

O endereço mais próximo ficava a noroeste do centro. Alguns minutos andando a norte e, pronto, Eurok estava na frente de outra loja. No letreiro lia-se “TEPETRE”, sem tradução para a língua dos homens. O receio de não entender e não ser entendido novamente preenchia suas entranhas. Apesar disso, entrou na loja.

O interior estava silencioso. Nenhuma espécie de campainha soou conforme Eurok entrava. Entretanto, 5 segundos foram suficientes para que aparecesse uma figura serena por uma porta atrás do balcão. Era uma xukan de meia idade, esguia, de face séria. Olhava fixamente para Eurok sem dizer uma palavra. Ele se adiantou:

“Olá? Raza. Zorapan. Mu’ay Eurok.”

“Xéntxi… Aran lär katäsa? Däp trelay xukangye. Mu’ay zantapäsa xentxitapidut.”

Eurok estava a um passo do desespero. Algo lhe dizia que aquela xukan não falava sua língua, ou, se falava, fazia questão de fingir que não. Ele decidiu insistir.

“Eu vim pelo panfleto, havia um endereço com o que parecia ser uma oportunidade de trabalho.”

“Trelay xukangye.”

Eurok pensou em dar meia volta e ir embora, mas uma xukan que devia ter mais ou menos sua idade apareceu pela mesma porta que a outra.

“Mãe, por que você faz isso? O que você procura, moço? É sobre o trabalho? Precisamos de alguém para limpar a loja. Desculpe, tá? Ela culpa xentxi pelo que aconteceu ao meu pai.”

“Zanjaträsa! Asäsi exkyu!”

Zan-asäsi ja, hutya! Zurulasa asäsi! Desculpe. Venha, eu te explico o serviço e te mostro o local. Enquanto isso eu posso te dizer o que houve com meu pai e o motivo de ela agir assim… por que não me conta mais sobre você?”

Eurok sentia-se muito melhor conversando com alguém que falava a língua dos humanos. Antes de seguir a menina, reiterou:

“Ah, desculpe. Mu’ay Eurok. Você é? Digo, seu nome. Qual é o seu nome?”

“Molri. Tajrafi! Venha, venha.”

Ele a seguiu pela porta estreita. Sua mãe, cujo nome Eurok ainda não sabia, permaneceu na primeira sala, atrás do balcão, olhando para fora.

A sala interior era ampla, o chão era de madeira polida e envernizada. Eurok e Mólri tiraram os sapatos antes de subir o degrau que separava a sala interior e o pequeno corredor. Eurok reparava nos pés da xukan que ele seguira. O que ele chamava de pés mais pareciam patas. Eram, inclusive, bastante fofas. Ele nunca antes vira um xukan descalço. Seu ensino obrigatório humano não ensinava a respeito deles. Eurok percebeu que não sabia quase nada sobre eles. Era assim que os preconceitos e as indisposições eram geradas?

“Então, Eurok, percebo que não é de Jumi nem da região. O que te traz a essas bandas?”

“Eu sou de Daroba, uma cidade pequena do interior do continente oriental. Vim para cá buscando novos ares. Algo muito traumático aconteceu e não podia continuar vivendo com medo de sair do quarto…”

“Você veio de bem longe. Imagino que não tenha tido muito contato com xukan antes. Somos raros do outro lado do mar. Como está lidando com isso?”

“Eu não me impressiono facilmente. O mais complicado é não saber a língua de vocês, mas eu espero aprendê-la o mais rápido possível. O senhor dono do albergue onde estou hospedado e sua filha são bastante simpáticos.”

“Aliás, desculpe pela minha mãe. Ela fala a língua dos humanos, mas desde que meu pai faleceu ela se recusa a interagir com vocês.”

“Eu também perdi alguém.”

“Então você sabe o que é essa dor e como passamos a culpar a todos quando não conseguimos lidar com ela.”

“Como seu pai se foi? Culpa dos humanos?”

“Não foi culpa de ninguém, foi um acidente. Se alguém deve ser culpado, é meu próprio pai.”

“Eu perdi minha melhor amiga, alguém com quem eu compartilhava tudo desde a mais tenra infância. Ela estava doente e não resistiu. Eu não me culpo, nem culpo ninguém, eu só não consigo lidar com isso. Eu perdi o mundo. Eu não conseguia mais ver os mesmos lugares e as mesmas pessoas sem querer chorar. Depois de um tempo introspectivo e solitário no meu quarto, eu resolvi mudar bruscamente para tentar ter vontade de viver de novo.”

“E está conseguindo? Quero dizer, como tem sido seus dias?”

“Ainda não foram dias, eu cheguei ontem. Passei uma noite aqui e parti hoje cedo buscando trabalho.”

“Ah! Então espero que consiga algo logo, quem sabe com a gente, hã?”

“Espero que sim!”

“A propósito, sobre o meu pai, ele era um lutador. Nós aqui treinamos jovens, preferencialmente xukan, nas artes dos pés e mãos. Tepetre significa mãos e pés sozinhos. Meu pai dizia que devíamos usar nossa força para ajudar as pessoas, fossem elas humanas ou xukan. Certo dia ele presenciou um assalto e se envolveu. O humano que estava sendo assaltado saiu ileso, mas ele não resistiu às feridas. Foram alguns cortes e perfurações de adaga. O assaltante também era humano. Minha mãe desde então culpa vocês pelo que houve.”

“Não a julgo, eu provavelmente faria o mesmo.”

“Enfim, eu não sou como ela. Eu ainda acredito no que meu pai me ensinou e acho que ele morreu como um herói. Se ele tivesse sobrevivido, ele faria isso de novo, e eu o apoiaria de novo. É assim que eu quero me lembrar dele.”

A conversa não durou muito mais do que isso. Eurok sentiu-se confortável conversando com Molri. A perda que ela sofrera a punha como igual para ele. O serviço era simples: ele precisava manter toda a loja limpa. A sala interior costumava ficar bem mais limpa do que a primeira sala, que, por não ser muito utilizada, estava coberta de pó.

Eurok acertou os detalhes sobre o trabalho e começaria no dia seguinte. Comprometeu-se a fazer a limpeza semanalmente. Quando saía da loja, trocou olhares com a mãe de Molri, que ainda não imaginava que um humano fosse trabalhar em sua loja.

Ao sair da loja, reparou o sol a pino. A fome começava a aparecer. O próximo endereço o levaria à região portuária. Decidiu que seria uma ótima hora para voltar ao albergue do senhor Xijow e almoçar.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 09/06/2021
Código do texto: T7275283
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