A Metamorfose Equina

Eram tempos sombrios aqueles que vieram depois do desaparecimento dos humanos. Durante o primeiro século, as coisas foram mais do que perfeitas porque a natureza voltou a crescer e em pouco tempo já havia ar respirável e água potável. Entretanto, não demorou para que diversos animais começassem a brigar pelo posto deixado para trás. Os maiores candidatos a novos ditadores dos seres vivos eram os próprios mamíferos.

 

Os macacos foram os primeiros a pronunciarem-se, devido à semelhança genética que possuíam, todavia logo foram calados pelos felinos e caninos em união. Juntos, reuniam boa parte dos predadores de maior porte e os primatas não tiveram vez. Infelizmente, a paz entre ambos durou pouco e logo brigaram entre si. Felinos contra caninos.

 

A guerra estava tensa, todos os animais foram obrigados a escolher um lado. Aqueles que demoravam muito para fazê-lo e resistiam à ida ao campo de batalha não conseguiam relaxar em seus lares por muito tempo. Um representante, seja dos felinos seja dos caninos, sempre aparecia e fardava o coitado do animal à força.

 

A luta e a destruição estavam em todo canto. Os pacifistas que existiam no passado foram todos aniquilados e não havia passatempo que não envolvesse matar o adversário. Antigamente, os cavalos eram a resistência. Porém, subitamente desapareceram e levaram junto com eles seus pedidos de paz. Tal sumiço afundou de vez o mundo em uma guerra sem fim.

 

Felinos e caninos usavam o destino dos equinos de exemplo do que aconteceria caso alguém se posicionasse contra a guerra e a favor da rebelião. Contudo, eles nada tiveram a ver com o sumiço misterioso da espécie e, por dentro, se lamentavam de não terem a habilidade de domá-los como os humanos. Mas não estamos aqui para falar de cavalos, pelo menos por enquanto.

 

Boh era um gato, um dos muitos que foram convocados para lutar. Seu sonho era ser um grande soldado do exército dos felinos e ser decisivo para a grande vitória de sua espécie. Já conseguia até ver o local onde vivia repleto de estátuas de si mesmo, além do seu grande retorno aos fãs que talvez obtivesse.

 

Seu sonho e amor pelos campos de guerra nasceu da admiração que tinha pela grande líder da tropa dos gatos, Bastet. Sempre que ouvia mais uma das lendas das grandes vitórias em batalha da felina, sentia seu corpo arrepiar-se.

 

Sua firmeza e coragem eram muito inspiradoras. O sangue-frio e estratégia daquela que comandava o grupo salvara muitas vidas dos gatos e arrancou a de muitos caninos. O gato sentia-se enfeitiçado por todos aqueles dotes reunidos em uma gata só.

 

Infelizmente para ele, o destino glorioso não foi reservado a Boh já que, como muitos, foi ferido logo em sua primeira luta. Porém, quando já aceitava que seria mais um corpo entre vários que caíam ao seu lado, algo único aconteceu. Ele foi resgatado e sua vida salva. O soldado foi retirado do local ainda inconsciente e, quando acordou, se viu em um lugar desconhecido. Estava com... os cavalos?! Não era o que ele se lembrava de cavalo, esses eram... alados?!

 

Um deles vinha na direção de Boh, o qual ficou assustado com a situação. Ele não sabia o que estava acontecendo e acreditava que teria o mesmo destino cruel dos equinos. Porém o Pegasus que se aproximou não ficou naquele estado por muito tempo. Depois de sua forma oscilar muito, percebeu estar diante de uma gata. Mas não qualquer gata, era Bastet.

 

— Achei que tinha morrido em combate no mês passado! Deveria saber que nossa grande heroína não pereceria nas mãos daqueles caninos sujos! — disse ainda entorpecido pela agradável surpresa.

 

Ele sentia seu corpo cheio de energia e precisava de muita força de vontade para não correr até aquela que tanto admirava. Com muito esforço, conseguiu acalmar seus pensamentos e olhar a guerreira e sua explicação. No momento em que a observou com mais atenção, reparou que algo estava errado. Ela parecia... masculina.

 

A gata preparava-se para falar quando percebeu o olhar estranho.

 

— O que foi? — Estranhou.

 

— Nada, é que... — Boh estava sem jeito demais para falar.

 

— Ah, já sei. Você estranhou minha forma masculina. Esqueci que assumi a forma de uma gata e não de um gato. Simplesmente senti um gênero e nem me atentei a isso. — Bastet esclareceu com um riso divertido.

 

O olhar de confusão do gato com quem falava era claro. Por isso, a explicação continuou:

 

— Eu tenho o dom da metamorfose. Portanto, sou todas as espécies de séries vivos ao mesmo tempo que não sou nenhuma delas. Sou todos os gêneros que essas podem assumir, ao mesmo tempo que não sou nenhum deles.

 

Como o olhar confuso de Boh não passava, era claro que ele custaria a entender como seres metamorfos podiam sentir mais de um gênero ou espécie. Era mais sensato mudar drasticamente o assunto, já que essa primeira parte era irrelevante.

 

— Sou o último indivíduo da espécie humana. Graças às minhas habilidades, possuo maior expectativa de vida e consegui fugir e sobreviver. Por muito tempo vivi entre os gatos e, quando a guerra estourou, achei que era meu dever lutar ao lado da espécie que me acolheu. Até perceber que fazíamos guerras iguais àquelas assassinas dos humanos e teríamos o mesmo fim. Foi quando encontrei os cavalos, surpreendi-me ao encontrá-los Pegasus. Deve ter sido a magia da liberdade, os anos de escravidão fizeram suas asas caírem. Agora que lutam pela paz, elas renasceram.

 

Como que para provar suas palavras, logo a transformação foi executada e finalmente Bastet assumiu a forma humana novamente. Ele não saberia dizer se era de um macho ou de uma fêmea porque era simplesmente impossível distinguir, afinal as pessoas eram todas iguais. Já os gatos possuíam evidentes diferenças corporais, era muito mais fácil.

 

Boh estava meio chocado com toda a história e não estava acreditando muito. Ele simplesmente não entendia como metamorfos sentiam tal fluidez de espécies e gênero.

 

— Fico agradecido por ter escolhido nossa espécie e por tê-la defendido dos caninos. — Foi tudo que pôde dizer quando deixou sua confusão de lado.

 

— Não agradeça, eu quase pulei fora para me juntar aos macacos muitas vezes. Lutei junto deles contra os felinos e caninos durante um tempo até. Mas fora esse período, fiquei com os gatos. Fui eu, inclusive, que convenci os primatas a lutarem com vocês e não com os caninos. — disse sorrindo com a lembrança.

 

— Está bem... — disse um confuso Boh. — Mas por que me salvou e não outro?

 

— Então quer ir direto ao ponto? — A expressão de Bastet era sugestiva.

 

Não demorou para que a pessoa em sua frente se transformasse em uma águia e levasse-o para sobrevoar a área de onde havia sido resgado. Não havia nada além de cadáveres de felinos e caninos sendo vasculhados por Pegasus iludidos pela chance de encontrar sobreviventes. O acompanhante da então águia deduziu que ele foi o único a sair vivo daquele massacre.

 

Quando retornaram ao local aonde Boh foi levado, Bastet assumiu novamente a forma de um Pegasus. Naqueles tempos, parecia ser a única plenamente confortável.

 

— Eu convoco você, o único sobrevivente do grande massacre, a juntar-se a nós na causa da paz. O primeiro gato a ser bem-vindo entre os Pegasus. — disse solene.

 

Curvando-se, Boh aceitou sua missão. Percebeu, como muitos depois dele, que a guerra não daria em nada. O máximo que conseguiriam era extinção conjunta e ódio aos sobreviventes. Além disso, era uma honra estar junto da lenda que era Bastet.