PRÓLOGO - O Rompimento

- Isso foi um erro! Nunca imaginei que me arrependeria tanto de uma escolha que parecia tão óbvia.

- Você sabe que repetir isso toda hora, como se fosse uma reza, não vai te fazer mudar de posto, não sabe?

Não houve sinais de que a ironia de Kreni foi ouvida pelo seu colega de guarnição, o inconsolável soldado Einir, que prosseguiu com suas lamúrias.

- Por que eu não ouvi aquele veterano? "Escolha o descampado, meu filho. Por mais que servir na fronteira norte exige metade do tempo da fronteira leste, vai se arrepender se for para lá. No frio o tempo passa quatro vezes mais devagar". E eu ri! Sim, eu ri, e mal disfarcei, Kreni. Pensei que o velho apenas estava com inveja, já que agora temos o luxo de escolher nosso posto, enquanto a geração dele teve que aceitar o antigo sorteio.

- Pelos Sábios, Einir, se conforme de uma vez! Não foi a primeira e não será a última vez que julgou mal alguma coisa.

- Ao menos reconheça que não foi um absurdo completo ter desconfiado de alguma trapaça - se justificou Einir- pois o que mais há nesse mundo são velhos frustrados, com inveja da vitalidade dos mais novos. E parece que ficam com ainda mais raiva alguém atualmente escapa de alguma dificuldade que eles tiveram que enfrentar! Nem precisamos ir longe, o seu pai é o melhor exemplo de velho ranzinza frustrado que eu já vi, Kreni.

- Claro que eu te entendo. Lá no alistamento eu também achei que era uma pegadinha, uma aposta entre eles para ver quem conseguia convencer mais novatos a tomar a pior decisão.

- É, mas você já ia escolher esse lugar de qualquer jeito, não foi enganado como eu fui!

- Mas seu idiota, por que fica comparando nossas situações? Você é solteiro, não tem obrigações nessa vida, tudo que lamenta é a perda das festas lá da sua vila. O risco que corro é muito pior, não poder ver os primeiros passos da minha filhinha, então eu aceitaria até um posto na borda de um vulcão se isso me levasse para casa mais rápido - disse Kreni, falhando novamente na tentativa de disfarçar a voz embargada sempre que mencionava esse assunto.

- Nem tudo é fácil aqui do meu lado não, viu - protestou Einir - você já tem sua família formada e renda garantida com o moinho dos seus parentes. Eu tenho que ainda encontrar uma esposa e arrumar alguma profissão que pague melhor que esse soldo miserável. Cada dia que passo aqui é um a menos na minha busca.

- Se você também vê vantagem em terminar rápido o serviço obrigatório, tá reclamando de quê, então? Ironizou Kreni.

- Do TÉDIO, do frio, do desconforto! Não finja que também não sente! O velho tinha razão. Meu primo escolheu a fronteira leste, e eu cheguei rasgar sua última carta. O maldito está no paraíso, cuidando dos cavalos, nadando e pescando naqueles lagos e rios mornos das estepes, que não congelam metade do ano, como os daqui. Tá fazendo exatamente o que já gostava de fazer em casa, e sendo pago por isso!

- Eu sei, eu sei, estava só te provocando, você fica hilário quando tem esses chiliques de inveja - disse o soldado Kreni, soltando mais vapor quente durante o riso, fazendo parecer que fumava um cachimbo invisível. Mas sim, até eu tenho inveja de quem não está com os lábios rachados pelo frio e não gasta suas folgas embrulhado num cobertor ouvindo lamentações dos colegas em torno do fogo.

- Nós somos realmente idiotas, aquele senhor foi até generoso em dizer que o tempo aqui passa quatro vezes mais lento. O certo seria dizer que simplesmente não passa.

A frustração dos jovens soldados parecia tão palpável quanto a espessa neve que caia. Mas ninguém poderia culpá-los. Estavam escalados o mês todo para a vigília noturna da guarnição elevada, e apostariam sem medo que aquele posto era o ponto mais frio da fronteira. O que a fortaleza de Kataraks tinha de imponente e importante, tinha de desconfortável. Claro, apenas para quem precisava defendê-la. Para os viajantes, nada poderia ser mais conveniente que sua conexão fácil e segura entre as amenas planícies do centro do continente e as terras frias e elevadas do norte. Nada como a passagem segura mais próxima estar há duzentos quilômetros de distância para tornar a longa subida por meio da fortaleza de Kataraks mais do que aceitável!

Dizem os Sábios que o Mundo Antigo, anterior à Grande Destruição, era muito maior, e havia regiões montanhosas incomparavelmente mais altas e mais frias. Mas, para os padrões do que era mapeado no continente, essa região merecia a reputação de inclemente que detinha. As terras do norte, geladas e selvagens — pelo menos do ponto de vista dos outros povos do continente — eram as mais montanhosas de que se tinha conhecimento. Diferentemente de outras regiões serranas, essa não tinha aquela típica cadeia de montanhas, de diversas proporções que, progressivamente, vai do nível do mar até os picos cobertos de neve e terras elevadas, com ar rarefeito. Pelo contrário, a fronteira natural com o norte parecia um gigantesco degrau, feito para gigantes ou deuses, cortando abruptamente a planície. Esse paredão rochoso era chamado pelos reinos aliados de Klyopithas, e se os habitantes das tribos do norte tinham um nome específico além de apenas “montanhas” ou “paredões”, aqueles soldados ignoravam.

Essas rochas escarpadas se estendiam desde o distante mar, a oeste, até mais de quinhentos quilômetros para o leste, quase atingindo o centro do continente. A altura variava entre noventa e trezentos e dezessete metros, mantendo uma média em torno dos duzentos metros de altura. Nem mesmo os lendários engenheiros da cidade do planalto, no sul, poderiam conceber uma defesa tão inexpugnável quanto essa barreira natural. Enquanto os mestres de alvenaria do planalto apenas podiam admirar aquela muralha, seus colegas, os historiadores da Academia de Polignosis, podiam contribuir mais, embasando a conclusão de seus estudos, cuja tese central era que as referidas montanhas sempre pautaram o desenvolvimento da civilização no continente. Demonstravam que sem essa barreira não teriam ocorrido os séculos de isolamento do povo do norte dos demais. Isolamento este que manteve aquela região vasta e populosa desunida e fora das relações diplomáticas e comerciais com os outros povos.

Mas não significa que as Klyopithas fossem intransponíveis. Diversos pontos permitiam a escalada, havia trilhas de acesso que cabras montanhesas conseguiam percorrer com tranquilidade, e os humanos mais fortes podiam seguir com enorme risco e dificuldade. Mas o que conecta a civilização não são trilhas íngremes nem a prática do alpinismo. Para haver diplomacia, comércio, e até mesmo guerra, estradas se fazem necessárias, por onde se pode passar carroças, cavalos, todo tipo de pessoa a pé, e não apenas atletas.

Poucos pontos permitiam uma viagem relativamente segura, oferecendo um caminho que merecesse ser classificado como estrada, com montes de inclinação mais suave formando rampas naturais. O melhor desses acessos era onde os pobres e mal aquecidos soldados ruminavam suas decisões ruins. Ali havia uma grande montanha atravessando exatamente a parede rochosa, larga e comprida, oferecendo uma raríssima subida tranquila em toda aquela verticalidade. E também havia muito mais: talvez a mais formidável fortaleza natural do continente, tornada ainda mais inexpugnável pela maestria dos melhores engenheiros do mundo.

Kataraks, o coração de toda a defesa da fronteira norte, de onde partiam as patrulhas das montanhas, para interceptar alpinistas das terras selvagens que invadiam ocasionalmente as terras baixas, seja para roubar ou se infiltrar nos reinos aliados, talvez para espionar. Também era sede do exército estacionário, onde cerca de 20.000 soldados de ambos os reinos, Eris e Nerídia, se alojavam na cidade militar. As tribos do norte, se fossem novamente unificadas, poderiam colocar em campo contingentes de guerreiros que fariam essas duas dezenas de milhar parecerem um mero punhado de guardas fronteiriços. Mas apenas se não houvesse todo o sistema de fortificações de Kataraks, que combinava o melhor das vantagens naturais com as mais competentes habilidades de construção existentes no mundo.

O diferencial não era apenas o grande monte transformado em rampa com pavimentação e aplainamento. Essa estrada sólida o bastante para viabilizar um grande tráfego seria, na verdade, uma vulnerabilidade sem a guarnição superior, situada entre as Lágrimas da Pedra.

O nome, que alguns consideravam poético, se justificava ao observar as cataratas gêmeas que despencavam do norte, sob o ângulo certo e numa distância razoável. O maior rio do continente, o grande Septentrionalis, nascia nas montanhas remotas do norte, sendo inicialmente um modesto curso d'água. Contudo, abarcava 9 rios afluentes ao longo do caminho, tornando-se caudaloso, rápido e violento, devido ao ângulo muito inclinado de seu curso. Mas não havia uma única e poderosa queda d’água ao chegar na borda do paredão rochoso das Klyopithas. Pouco antes da borda do abismo, o pináculo daquela montanha que viabilizava a estrada dividia o curso do rio como se fosse uma adaga larga. Esse topo era tão rochoso quanto as escarpas íngremes, e volumoso o bastante para resistir à força do rio, que se chocava de frente com ele. Os dois cursos de água gerados nessa divisão, portanto, contornavam esse cume até chegarem a borda e formarem duas cataratas, separadas por cerca de 500 metros uma da outra. Então, quem olhasse lá de baixo, realmente veria algo que lembraria o caminho feito por lágrimas na face da montanha.

O pico que dividia o rio, na parte superior da cordilheira, era uma das montanhas conhecidas como Trigêmeas, havendo outros dois montes rochosos, de ambos os lados, estes sem descida suave para as terras abaixo. Apesar dos resmungos devido ao frio — plenamente justificáveis — até mesmo os jovens soldados Kreni e Einir, não podiam evitar o sentimento de deslumbramento diante daquele cenário. Mas claro que as emoções negativas é que estariam em foco numa noite gélida, com o desconfortável uivar de lobos, neve e o vento inclemente que assolava aquela torre, que estava quase 300 metros acima dos alojamentos, onde os mais afortunados estavam dormindo confortavelmente aquecidos pelas lareiras.

Essa peculiaridade geográfica criava duas ilhas, uma menor, em cima, formada pelo topo da montanha, e uma bem maior embaixo, ladeada pelo curso do rio dividido, que voltava a se unificar apenas mais de três quilômetros à frente. A ilha superior havia perdido completamente a aparência natural de uma montanha, pois os pedreiros e engenheiros da grande cidade do planalto do sul, Polignosis, lar dos mestres em todos os ofícios, haviam trabalhado com afinco para esculpir aquela rocha. Toda a parte superior foi transformada num castelo fortificado, considerado indestrutível, que não precisaria temer a maior pedra que qualquer trabuco pudesse arremessar contra ele. Mesmo dividido na parte de cima, cada braço do rio Septentrionalis permanecia violento, inviabilizando qualquer tipo de travessia de pessoas ou animais, e menos ainda de alguma máquina de cerco. Somente duas pontes levadiças, controladas pela fortaleza, permitiam uma passagem rápida e segura para cada uma das margens do rio.

Abaixo, mais pontes levadiças sob os fossos criados pelos braços do rio permitiram a entrada na fortaleza, que agora era o alojamento da guarnição. Outrora fora um centro comercial e cultural, uma próspera e bela cidade pacífica, onde houve uma tentativa de intercâmbio entre o sul e o primeiro reino organizado do norte.

Porém, sem qualquer aviso ou provocação, a cidade havia sido atacada numa fatídica noite sem lua. Uma completa destruição foi perpetrada pelos guerreiros de Kryalykos — nome dado às terras do norte pelos sulistas, ou Volkladen, na língua dos nativos — quase não deixando sobreviventes, mas fornecendo a revelação das verdadeiras intenções da jovem rainha Runna e seu irmão, Rysar, braço direito e principal general.

Ambos haviam obtido um inédito sucesso na missão de unificar aquele país caótico, separado em incontáveis feudos, clãs, tribos e grupos nômades. Pela primeira vez em um milênio, aquelas terras tiveram um objetivo em comum. Que, pelo visto, não incluía viver em harmonia. A paz prometida não veio, somente um fôlego antes de novas campanhas, essas contra as potências aliadas do continente. Subestimaram seus inimigos, talvez deslumbrados com a recém-descoberta força do norte, oriunda da unificação.

Ninguém pode negar a valentia do povo do norte, habituado a uma vida dura, consequência da ausência de comércio estável, obrigando-os a caçar mais do que plantar. Também precisavam lutar perpetuamente contra as densas florestas para obter lenha e construir suas precárias casas de madeira, que brevemente precisavam ser refeitas, já que a durabilidade da madeira naquela região úmida era baixa, não se comparando às habitações de tijolos e pedra dos reinos aliados.

Nem se podia subestimar seus números, que superavam de longe os contingentes militares do sul, até porque não apenas os homens estavam aptos a lutar. As mulheres daquela terra eram tão aguerridas quanto. Além de altas e fortes, também eram forjadas na mesma labuta contra o clima e a geografia difícil de sua terra. E tampouco eram poupadas de experiências em combate devido à constante necessidade de enfrentar os bandos de saqueadores que atacavam as vilas. Os assaltantes - uma verdadeira praga naquela terra montanhosa e sem lei - preferiam atacar quando sabiam que a maioria dos homens estava caçando, pescando ou coletando madeira, para não serem tão superados em números. Então, geralmente eram as mulheres que precisavam rechaçar aqueles abutres e defender seus filhos e suas poucas posses. Um povo tão endurecido pela vida sendo devidamente treinado, armado e organizado em exércitos razoavelmente disciplinados, realmente se transformava numa força formidável, e até se poderia compreender pessoas de conhecimento limitado sobre os outros povos os considerando invencíveis.

Mas isso seria um erro. As capacidades militares profissionais das potências aliadas mais do que compensavam os números menores, com a qualidade de suas armas, rigor do treinamento, organização e disciplina. O reino de Eris, a potência terrestre que dominava o centro do continente, era a detentora do exército mais competente e temido do mundo. E seu aliado, o Reino de Nerídia, se especializara no poder naval, se tornando a senhora dos mares e rios navegáveis, cuja capital era simplesmente a magnífica Cidade-ilha, no gigantesco Arquipélago da costa oeste.

Como se não bastasse a força de ambas, ainda contavam com a ajuda da sociedade organizada mais antiga existente, descendentes dos sobreviventes da Grande Destruição do mundo antigo, e primeiros reconstrutores da civilização: os Sábios de Polignosis. Eles habitavam o grande planalto do sul, onde erigiram sua bela cidade e mantinham sua democracia, que recentemente completara seu primeiro milênio, preservando com sucesso a estabilidade social, prosperidade e valorização da busca de conhecimento, em suas várias academias de estudo. Eles não eram militarizados, se limitavam a manter armas defensivas reforçando a fortificação natural conferida à sua cidade pelo planalto, com faces tão escarpadas quanto aquela cadeia montanhosa do norte, pois mantinham seu juramento de não-violência. Fora justamente esse voto pacifista que gerou a cisão da qual emergiram os outros dois povos, que preferiram se organizar como reinos, apesar de não perderem totalmente a tradição democrática que herdaram.

Contudo, o pacifismo convicto do Planalto não os impedia de auxiliar seus aliados e parentes, fornecendo remédios e técnicas médicas, que acabavam sendo úteis para os feridos durante as guerras, reduzindo a necessidade de repor soldados perdidos. O mesmo sobre as habilidades metalúrgicas e navais que os pesquisadores de Polignosis sempre aprimoravam para seus usos civis e cujo conhecimento compartilhavam, e que igualmente acabavam sendo úteis para os armeiros e estaleiros militares dos reinos aliados. E, mais importante, preservavam a história em sua incomensurável biblioteca, onde os oficiais e líderes militares podiam estudar as antigas batalhas e aprender com os erros e acertos de seus antepassados. O jovem reino do norte pagou um alto preço pela superestimação de suas capacidades.

É bem conhecido como a resposta àquele ataque surpresa foi ainda mais rápida e letal do que normalmente já seria. Os ursos e lobos das montanhas — como eram conhecidos seus guerreiros — não sabiam que as forças aliadas estavam bem mais próximas do que podiam imaginar. Por acaso, empreendiam uma expedição contra outros inimigos, e foram imediatamente direcionadas para a vingança contra aqueles que haviam massacrado uma cidade cheia de artistas, mercadores, autoridades e representantes dos reinos, além de civis e crianças.

O jovem reino do Norte podia ter sido esmagado, o poder central destruído e o país voltado ao caos anterior, com seus chefes de clã lutando entre si, mas os reinos não arriscariam outra invasão. Portanto, a outrora bela cidade, repleta de mercados, teatros e bibliotecas, agora contava com grandes muralhas e fartos arsenais, acomodando um exército cuja missão era manter os bárbaros trancados em suas montanhas geladas.

Era justamente nessas torres superiores que a lamúria do par de soldados prosseguia, tão incessante quanto o murmúrio do vento, até ser interrompida pelo seu superior, o rabugento sargento Graik. Ele chegará com seu lendário mau-humor, entretanto, causando alegria, pois trazia consigo três odres de aguardente, a melhor amiga dos vigias condenados a passar 30 noites na rocha fria.

- Pronto, seus bebezões! Ocupem suas bocas tagarelas com a bebida e parem com a choradeira, antes que acordem toda a guarnição! O turno já passou da metade, e logo vocês é que causarão inveja, dormindo enquanto os demais estarão carregando entulho, já que essas malditas obras que não acabam nunca nas montanhas laterais!

- Tem que ter algum lado bom, afinal de contas — respondeu Einir. Não me alistei para ser pedreiro. Sei lá porque andam usando os soldados como operários, sendo que todo santo dia uma multidão de bárbaros famintos faz filas diante dos portões implorando trabalho nas obras, em troca de qualquer pagamento ou até alguns pães duros.

- Mas foram usados trabalhadores locais por anos, só que não tem como fazer isso nessa etapa final, seu besta — respondeu Graik — Você confiaria dormir numa fortaleza que esses bárbaros traiçoeiros decoraram a planta? E se eles souberem exatamente em que pontos a água é coletada do rio por meio da tubulação, para poderem envenenar ou bloquear, caso sitiem as novas fortalezas? Onde estamos somos defendidos pelo rio, de ambos os lados, mas as montanhas laterais não terão essa proteção, as muralhas e portões dos novos fortes estarão em terra firme, podendo ser atacados e sitiados.

- Você fala como se tivessem indefesas. A idade já tá te deixando cegueta, sargento, pra não ter visto os grandes fossos diante das muralhas?

- Eu vi sim, Einir. E também já vi outras coisas, que você não viu. Eu já vi o tamanho do exército que pode surgir desses chiqueiros do norte, que eles chamam de vilas. Eles podem preencher o fosso com corpos de seus mortos e ainda ter gente mais que suficiente para continuar atacando - refutou o oficial.

- Claro, como se houvesse alguma força nessas terras capazes de oferecer qualquer ameaça a nós — zombou Kreni — mesmo que apenas cercas de estacas de madeira nos protegessem…

- Esses selvagens só sabem se matar entre si, lutando como lobos e ursos, não passando de animais - emendou Einir. Fizeram todo aquele alarde anos atrás, quando eles atacaram, tirando nosso sono, porém os supostamente terríveis homens do norte não puderam sustentar um único mês de combate!

- Meu pai serviu nas falanges, e contou que eles nunca correram risco de derrota, sofrendo somente ataques desorganizados, e até a defesa da capital deles foi um fiasco - Kreni se juntou à zombaria do colega. A verdade é que essas novas fortalezas são apenas vaidade, não passa da falta do que fazer desses engenheiros do planalto, que nem tem mais o que construir na terra deles. Se orgulham muito dessa fortaleza aqui do meio, e resolveram esculpir também as outras duas montanhas. Por isso que se diz que eles não conseguem apreciar qualquer coisa natural, tem essa mania incontrolável de transformar cada morro num castelo, fazer ponte em qualquer córrego e drenar qualquer poça dos pântanos. E estaria tudo bem, se fizessem a obra sozinhos. Mas não! Apenas fazem os rabiscos deles no papel, e o resto de nós é que tem que passar anos carregando pedras!

- E outra — complementou Einir, encorajado pelas contestações de seu amigo — nenhum sítio teria chances! Poderiam ter conseguido algo antes da finalização das passarelas superiores, ligando as torres das 3 fortalezas. Agora é fácil caminhar entre elas, sem nenhuma necessidade de baixar pontes levadiças ou abrir qualquer portão. Abastecimento de recursos e de tropas não seria um problema.

- Vocês são jovens, então ainda podem ser assim idiotas, mas aviso que vai ficar cada vez mais constrangedor com o passar dos anos. Se vocês não aprenderem a ser mais sábios, tentem, pelo menos, aprender a ficarem quietos — retrucou o sargento, após um longo gole da forte bebida, que lhe corou a face.

- Vocês falam com segurança demais sobre o que não entendem - prosseguiu Graik, injuriado com o sorriso debochado dos jovens - é muito fácil se gabar de vitórias fáceis obtidas contra um exército desorganizado. Eles não sabiam estarmos a caminho do reduto aqueles piratas imundos que se esgueiram nas geleiras. Aquela rainha nos atacou supondo que a notícia da traição levaria semanas para chegar às capitais, e depois meses para nossos exércitos confrontá-los aqui no norte.

Outro gole. O sargento já era incapaz de afastar os lábios do cantil por mais do que poucos minutos, antes de precisar reabastecer, a fim de concluir seu monólogo.

- Mas esses animais do norte, como vocês chamam, poderiam ter facilmente juntado mais de cem mil homens para lutar, se tivessem tempo, e lembre-se que as mulheres deles também lutam, então poderiam multiplicar ainda mais suas forças;

- É, nisso preciso concordar, sargento. Meu pai, que também serviu na guerra, costuma dizer que nem sabe qual povo procria mais, se são esses miseráveis do norte, ou os nômades lá das estepes do leste. Não entendo como podem conseguir ânimo para fazer tantos filhos em meio a esse frio daqui, ou no calor de lá. Devem se sentir amaldiçoados por terem nascido nessas terras ruins e não querem sofrer sozinhos, então fazem um monte de filhos para sofrer com eles - supôs Einir.

- Sim, parecem um bando de coelhos! Será que seu pai teria voltado pra casa, se tivesse encontrado dez vezes mais soldados do que ele encontrou? E não se esqueça que eu estava lá naquela guerra também, 13 anos atrás, e não foi fácil em todos os lugares não! Eu mesmo passei apertos e quase morri algumas vezes, ao me deparar com os guerreiros-urso, que eles consideram sua elite não sem motivo. Então, acreditem em mim quando digo que esse povo não deve ser subestimado!

- É verdade, eu me esqueço que você está aqui no norte desde a fundação da guarnição, Graik — respondeu Einir. É difícil lembrar que existe algum servidor voluntário nesse posto, que escolhe não voltar para casa após cumprir o serviço obrigatório. Nem sei se há outro além de você. Por que escolheu ficar aqui, falando nisso?

- Se você morasse em cima do mercado de peixes de Tetis, iria aprender a apreciar o valor do silêncio, meu jovem. Não, aquela gritaria do porto é demais para meus nervos, prefiro o som do vento e das cachoeiras daqui de cima. Sem falar na choradeira dos netos, que não dão trégua! Eu amo aqueles catarrentos, mas infelizmente não tenho a menor paciência para as pirraças, e fico mais do que exausto quando preciso esconder e disfarçar isso. Fico menos cansado subindo esses duzentos metros de ladeira todo dia!

- É, mas não anda mais tão silencioso por aqui - observou Kreni - já que as marteladas na rocha acontecem agora até de noite. Algum prazo deve estar bem atrasado, para eles trabalharem até tão tarde.

- Nem me fale! Se isso continuar por muito tempo, eu vou aproveitar que posso ir embora quando quiser e vou dar no pé, porque a única vantagem daqui é a paz. Se for para aguentar essa barulheira até de noite, melhor ficar lá em casa, onde não é preciso tostar na borda da fogueira para não congelar até a morte - praguejou o velho militar - e ainda mais quando nossa paz é tirada por puro capricho. Vão ficar lindas, não tenho dúvidas, três fortalezas gêmeas, incrustadas na rocha. E só mais caos e barulho vão vir com as pomposas festas de inauguração.

- Realmente Graik, não tem nem previsão para sua paz retornar por aqui - riu jocosamente Einir. Se os engenheiros de Polignosis não conseguem deixar de construir, como disse, é igualmente verdade que os fanfarrões lá das nossas ilhas não perdem nenhum pretexto para fazer festas de 15 dias!

- Infelizmente agora você está certo, e só reforça essa ideia de ir para casa um pouco, voltar apenas quando toda essa fanfarrice acabar - anuiu o sargento. Estava tão desconsolado pela saudade da sua amada quietude que até sua língua ferina foi momentaneamente aplacada, lhe permitindo uma rara reflexão pouco debochada ao retomar a fala.

- É, e também vocês não estão tão redondamente enganados por se sentirem tranquilos… é verdade que esses selvagens podem ser muito fortes, mas apenas se estiverem unificados - complementou ele. E só a Rainha Ursa conseguiu essa proeza, subjugando aquela multidão de líderes tribais incompetentes e mesquinhos. E eles não tardaram em voltar ao caos anterior quando ela foi derrotada. De fato, esses pequenos chefes de clã atuais não passam de uns pés de barro, morando em palhoças que chamam de castelos só por terem um andar a mais do que os pulgueiros nos quais o resto da vila mora. Duvido que possam juntar cada um mais do que mil soldados competentes, e se o fizerem, vão acabar usando contra alguma aldeia rival, em vez de contra nós.

O sargento Graik riu de seus próprios impropérios e tomou outro gole, finalizando sua parte na bebida e deixando a muralha, provavelmente indo buscar mais. O velho soldado era lendário pela sede insaciável, e, sendo o mais antigo ali, nem o comandante da guarnição se dava ao trabalho de lembrá-lo que não podia beber em serviço, nem oferecer aos outros.

— Que figura, acho que vou sentir saudades dele, Einir.

- Ah, ele está cada dia mais gagá, eu prefiro sair daqui antes do dia em que ele acabar caindo das novas passarelas, de tão bêbado... Mas em uma coisa ele está certo. Está pior que o normal aguentar o frio com todo esse barulho. Agora mesmo, mais marteladas e golpes de picareta.

- Sim, ficaram nisso a noite inteira - concordou Kreni - e parece que o turno da noite vai emendar com o da manhã, pois o nascer do sol está vindo e não parecem que vão parar.

- E olha que o som das cataratas abafa quase todos os outros, então, para conseguirmos ainda detectar esses ruídos, deve estar havendo uma obra enorme nos lados. A inauguração deve estar mesmo próxima. E, ao contrário desse ranzinza ai, eu ficarei muito feliz com as festividades, que certamente trarão belas mulheres para cá, e quem sabe eu encontre a minha!

- Vamos fazer mais uma ronda pelas muralhas Einir, esticar as pernas e tentar ver que trabalho é esse, que exige tanta martelada.

Após se alongarem para vencer a rigidez que acomete rapidamente quem fica sentado no frio, os soldados desceram da torre, rumando para as muralhas abaixo, que ladeavam o rio. Apesar da densa névoa, a noite estava no fim, e uma claridade tênue já despontava no horizonte.

Mas, ao chegarem no parapeito, se detiveram, consternados, por subitamente compreenderem o motivo do barulho das obras estar tão audível, apesar do som da correnteza: é que não mais havia correnteza! O denso rio agora não passava de um filete de água, que poderia ser facilmente transposto a pé, aparentemente com a água não chegando aos joelhos do transeunte.

Eles pararam, congelados pelo estarrecimento, pois esse fenômeno não fazia o menor sentido. Com certeza o rio estava normal horas antes, poderoso como sempre fora, primeira linha de defesa da fortaleza. Secas já aconteceram antes, onde o nível da água baixou consideravelmente, mas era algo gradativo, coerente, e não o sumiço de uma violenta correnteza em uma noite, como que levado pela neblina.

"Mas que p**ra é essa?" Exclamou o sargento Graik, esfregando os olhos e lavando o rosto com a água de seu cantil, para se certificar de que não havia bebido demais. Os soldados o viram correr para a passarela superior, de modo a olhar o rio de cima e ver o que estava acontecendo na obra ao lado. O evento seguinte deixou os jovens guardas atônitos: flechas cortaram a névoa da manhã, voando na direção do velho soldado, disparadas da fortaleza da montanha à direita, em cuja ponte de acesso ele estava. Horrorizados, os guardas o viram cair, alvejado.

O sargento Graik se levantou com esforço, apenas para olhar na direção dos jovens e proferir seu último impropério: "Isso é um ataque, seus idiotas, cadê a merda do alarme?!"

Kreni imediatamente correu para a torre do sino, e Einir muniu-se de tochas para acender o farol de alerta, enquanto berravam para todos acordarem. Diversos soldados sonolentos começaram a surgir, confusos com aquela gritaria atípica tão cedo. "Rápido, ajudem o sargento Graik na ponte, ele está ferido!", berraram ambos, e soldados correram para socorrê-lo, mas nunca chegaram à passarela. Uma negra coluna de fumaça começou a sair de ambas as torres das fortalezas laterais, e a forte claridade nas janelas indicava que um incêndio furioso ardia no interior. Ruídos ensurdecedores de rochas e paredes se partindo sobrepujaram totalmente o som dos sinos de alerta naquela cacofonia.

Em seguida, o impensável aconteceu: as enormes estruturas das laterias simplesmente vieram abaixo. Como se o próprio alicerce delas tivesse sido arrancado das rochas e as montanhas tivessem decidido colapsar.

O caos já estava instaurado, tanto na guarnição superior quanto nos quartéis abaixo. Todos os sinos, tambores e trombetas de alerta ressoavam furiosamente, as fogueiras sinaleiras já estavam acesas, e, com o sol já firme, os eventos surreais daquela manhã chocavam um número crescente de soldados sulistas. Ninguém mais estava dormindo, homens já estavam se equipando lá embaixo, companhias se preparando para a marcha rampa acima. Enquanto isso, o desmoronamento prosseguia ruidosamente, levantando sufocantes nuvens de poeira.

— O que está acontecendo aqui, soldado? Relatório, imediatamente!

- Sim, Senhor — disse um assustado soldado Kreni, que nem havia reparado na chegada de seu superior de tão embasbacado que estava diante daquele caos.

- Eu e meu companheiro de vigília estranhamos o barulho das obras estar tão alto - prossegui ele, após o pequeno susto - e resolvemos fazer uma ronda, para ver o que os trabalhadores do turno da noite estavam fazendo. Foi quando notamos o rio quase seco e assistimos o sargento Graik ser atacado na ponte superior. Então corremos para dar o alarme, Senhor.

- Mas que trabalhadores noturnos?! Nunca houve trabalho noturno nas obras daqui de cima, soldado — bradou o comandante — não estão ficando doidos?! E se ouviram algo, por que não foram investigar logo?

- Senhor, com certeza ouvimos, o sargento também escutou. E ele próprio sugeriu que devia ser algum trabalho urgente. As fortalezas não têm portões prontos e guarnições os protegendo? Como seria possível haver inimigos lá dentro?

- Eu não sei, soldado. Mas olhe, esse desmoronamento não é normal, tanto quanto não natural essa morte do rio! Olha só como todos os escombros caíram de um único lado, sempre no leito do rio! Obstruíram as cachoeiras! Vá arrumar armas decentes, em vez de somente essa lança de vigia. Alguém represou o rio, derrubou propositalmente nossas fortalezas de apoio, e agora um ataque a pé pode ser lançado contra essa cidadela, passando por esse rio quase seco. Essas florestas devem estar infestadas de soldados do norte, aguardando algum sinal para avançar. E devem estar em dezenas de milhares, para se sentirem assim confiantes.

O comandante inspirou fundo, fitando o horizonte com olhos serrados, como que tentando devassar a tênue névoa matinal para vislumbrar os inimigos a caminho. Respirou fundo outras vezes, digerindo o fato dos anos de paz estarem novamente findando. Ele já passara da fase tola da juventude, que se regozijava com a guerra e o perigo. Em verdade, acalentava o sonho de se aposentar em paz. Mas se forçou a lembrar que se a calmaria fosse assim tão sólida, ele nem sequer estaria naquela fortaleza, que nem precisaria existir, em primeiro lugar. Lembrou ser exatamente para isso que ele e seus homens treinavam à exaustão diariamente, portanto, estavam preparados! Visualizou mentalmente as vilas, fazendas e cidades que se estendiam nas planícies e litoral atrás de onde estavam. Lembrou de sua casa e família, há apenas alguns dias dali, na cidade civil mais próxima da fronteira, onde ficavam algumas famílias dos militares. Sentiu sua resolução se solidificar, a coragem sobrepondo o receio e frustração daquela situação desagradável.

O jovem soldado a seu lado seguia paralisado, e ele o compreendia! A guerra pode ser grandiosa na poesia épica, nos teatros e pergaminhos de contos, mas, na prática, não possui nada desse romantismo idealizado. É apenas medo, raiva, dor, sangue, fedor de suor, de excrementos e de corpos mortos, permeada por uma macabra sinfonia de gritos de agonia, de raiva, de júbilo, de desespero mesclando-se ao entrechoque do metal e rachar dos escudos, lanças e o sibilar das flechas em seus voos mortais. Colocou sua mão no ombro do jovem para tirá-lo daquele transe.

- Sem desespero, soldado! Não temos só o rio para nos defender, nossos muros e nossos homens são fortes e vão aguentar. Já dei ordens para o exército entrar em formação e nos apoiar, bem como para mensageiros darem o alarme nas capitais, que logo enviarão para cá seus exércitos. Eles vão ser esmagados, como foram anos atrás. Deviam ter ficado quietos!

O comandante estava correto, é claro. Um ataque estava prestes a ser desferido. A morte do rio e a queda das montanhas-fortaleza não eram fenômenos naturais. E sim, um exército de soldados do norte estava próximo, aguardando a ordem de avançar. O comando não tardou a vir: toques sucessivos de cornetas de batalha urraram, retransmitindo ordens, enquanto flechas incendiadas cortavam o céu para sinalizar algo à forças fora do alcance do som. Ficou esperando ver, a qualquer momento, uma onda humana avançando contra sua posição. Logo descobriu que acertou de novo, mas agora apenas parcialmente…

Obedecendo à convocação, o líder do quartel já organizara as forças na cidade abaixo, e agora cavalgava a frente do primeiro batalhão, sendo seguido por várias companhias. Estavam todos surpresos, porém sem temor. Esse não era o primeiro ataque que tentava romper a fronteira, sempre resultando em acachapantes derrotas para os selvagens. Aparentemente, o desafio seria maior, já que as mais novas fortalezas jaziam derrotadas — um feito impressionante, sem dúvidas. Mas ainda não eram fortalezas guarnecidas, sequer estavam finalizadas, o que importava era a fortaleza central lá no topo, essa sim, devidamente defendida. Sim, poderiam enfrentar qualquer grupo de homens que estivesse tentando irromper do Norte!

Tambores rufavam, marcando ritmo de marcha enquanto os homens subiam a ladeira, rumo a batalha. Gritos, sinos e mais toques de sinalização eram ouvidos lá em cima. Até que, repentinamente, tudo ficou em silêncio no topo do monte, todos os ruídos pararam no castelo superior. O silêncio pareceu mais ensurdecedor do que todo o caos sonoro precedente. Sem qualquer ordem, todos pararam, e também ficaram quietos, como se alguma divindade zangada tivesse imposto um silêncio sobrenatural.

Durou apenas um momento. Subitamente, diversos animais fizeram suas vozes serem ouvidas, o uivo de lobos e o tropel de cascos, o som atingindo a planície abaixo como outrora faziam as águas das extintas cataratas. Quase em sincronia, como se um maestro invisível estivesse regendo aquela sintonia da natureza, ouviu-se o revoar e bater de milhares de asas. O dia escureceu por um momento, quando uma nuvem de pássaros alçou voo, como que fugindo do norte, rumando para o mar.

- Bora correr daqui — sussurrou um soldado que estava no meio da subida para alguém aleatório a seu lado — minha avó sempre dizia "se ver um bicho fugindo, fuja junto, porque eles são mais espertos que a gente e sabem ter medo das coisas certas". Foi calado por uma advertência vinda de algum oficial que devia estar tentando preservar algo da moral e disciplina.

Mas o maestro invisível ainda não terminara seu conserto. Outra nota se tornou audível: um som que parecia o reverberar de um trovão distante, porém que não se dissipou no tempo costumeiro. Ao contrário, cresceu em força.

Logo, outro sentido foi ativado para aqueles homens ainda na subida, privados da visão clara dos eventos: o tato. Seus pés começaram a detectar uma inicialmente tênue, mas crescente agitação no solo. A palavra "terremoto" começou a ser cochichada naquela massa de homens confusos, não assimilando tantos fatos e estímulos inusitados.

A sinfonia acabara, não surgiram novas notas. Mas em vez dos característicos aplausos recebidos pelos músicos no final da apresentação, o som que se seguiu veio carregado das emoções opostas ao contentamento que se sente após um bom conserto: gritos, gritos e mais gritos vindos do castelo. Desespero em seu estado puro. Soldados desgarrados irromperam da fortaleza, alguns se jogaram dos muros, e desceram correndo e gritando.

- VOLTEM, VOLTEM, O RIO ESTÁ VINDO, O RIO ESTÁ VINDO! FUJAM, CORRAM! Bradavam alucinadamente.

Por pouco tempo. Um ruído maior do que todos os demais em conjunto agora se impunha.

Kreni, o soldado raso, havia parado de tocar o sino, o martelo com o qual golpeava o metal vibrante havia caído de sua mão, juntamente com seu queixo. Embasbacado, ele contemplava o que estava a sua frente, mas não conseguia sequer formular um pensamento. O mundo acabara de perder o sentido, ele desconhecia palavras para descrever, até mesmo mentalmente, o que seus olhos captavam. Seu comandante, parado a seu lado, se encontrava igualmente cristalizado, assim como todos os demais na cidadela. O silêncio reinou, já que todos estavam ocupados demais sendo dominados pelo espanto e pelo medo.

Essa é a reação diante do impossível, do incomensurável. Mas esse susto deveria durar apenas alguns momentos. Eles eram soldados, para quem a exaustão, a dor e a morte não era novidade. Se o trabalho envolvesse enfrentar inimigos, reações assim não teriam espaço. Se um milhão de nortistas estivessem diante de seus muros, brandindo armas, enchendo o rio com cadáveres caindo diante das flechas, soterrando os muros com seus corpos para os demais poderem invadir, ainda seria um evento aceitável. Mas não era isso que estava vindo na direção daquela guarnição. "Vamos ser atacados por uma onda humana", havia pensado o comandante. A onda estava chegando, mas não era humana. Era literal.

“Einir estava correto”, murmurou o demasiadamente jovem soldado Kreni. Eles realmente não deveriam ter escolhido aquele posto. "Espero que minha filha fique bem, eu realmente queria vê-la andando", sussurrou, em seus momentos finais.

O pesadelo durou pouco e o despertar foi brutal. Um plano bem elaborado e meticulosamente executado, com paciência e precisão havia funcionado. As maiores forças do inimigo tinham sido transformadas em fraquezas.

A antiga guerra contra o emergente reino do Norte fora dada por encerrada somente por um dos lados. Os derrotados estavam, sim, desmantelados, enfraquecidos e desorganizados. Mas ainda estavam vivos, e não pretendiam aceitar a primeira derrota! Uma lenta reorganização de forças ocorreu nas sombras por longos 13 anos, tempo mais do que suficiente para um plano ser desenvolvido para lidar com aquela incômoda guarda da fronteira, abrigada numa fortaleza imune a ataques convencionais. Numa batalha tradicional cada soldado defensor valeria por 100 devido ao seu sistema defensivo.

Mas o inimigo era orgulhoso, vaidoso, não resistira à tentação de criar obras portentosas, imortalizar sua própria história, da qual tanto se orgulhavam, através de monumentos. Isso os levou a decisão de trabalhar nas montanhas adjacentes à fortaleza superior, criando mais ícones arquitetônicos impressionantes — como se já não tivessem o suficiente, inclusive ali mesmo, naquela fronteira. Sem essa vaidade, realmente não haveria como romperem as defesas. Entretanto, a oportunidade perfeita para os conspiradores nas sombras foi oferecida, e muito bem aceita!

Obras daquele porte demandaram trabalhadores locais. Não foi difícil infiltrar diversos agentes entre eles, que conseguiram realizar, lenta e cuidadosamente, outras obras paralelas, diferentes das projetadas pelos arquitetos originais. Desvirtuando o projeto de túneis de escape e armazenamento, os conspiradores disfarçados de pedreiros e ajudantes, construíram câmaras secretas, onde podiam se esconder e executar suas verdadeiras ordens: minar a estrutura.

Esse processo de solapamento, foi desgastante, porém simples. Consistiu em remover as estruturas rochosas que davam sustentação à edificação, substituindo por escoras de madeira firmes apenas o bastante para durarem até a execução do plano. Com o passar do tempo, quase todo o alicerce das maiores torres estavam sob essa estrutura vulnerável de tal modo que o desmoronamento pendesse para o lado em que estava leito dos braços do rio, antes das cataratas.

A um sinal, o fogo ardeu no interior das fortalezas, consumindo as estacas de madeiras que compunham aquele alicerce sabotado, causando o enorme desabamento que se sucedeu!

Não fora difícil dominar as pequenas guarnições do portão das fortalezas semi-acabadas, que não esperavam nenhum ataque. Não que teria feito muita diferença se estivessem preparados, afinal, aqueles jovens inexperientes guardas de fronteira, dotados apenas do treinamento básico, jamais teriam chance contra os guerreiros-urso, veteranos da outrora guarda de elite da Rainha. Igualmente simples, também, foi a neutralização daquele velho enxerido que viera xingando pela passarela. Naquele momento, os agentes do norte não mais precisavam do sigilo.

Simultaneamente, outro trabalho pesado de engenharia estava sendo executado muito longe dali, nas nascentes de cada um dos 9 rios afluentes do caudaloso rio Septentrionalis. Durante os anos de ascensão, a Rainha do Norte - entusiasta da arquitetura, engenharia e infraestrutura - e ansiosa para trazer modernidade a seu povo que levava uma vida vergonhosamente arcaica em comparação os demais, iniciara obras de represamento e irrigação, entre outros projetos de infraestrutura. Mas tudo caiu no esquecimento após seus planos falharem, já que as potências do sul, agindo mais rápido do que qualquer um previra, destruíram suas ambições. Ela perdeu seu consorte e sua filha, e teria tido o mesmo destino caso seu irmão, Rysar, não fosse um lutador formidável o bastante para dar conta de duas dezenas de inimigos sozinho, por meio de suas peculiares e originais técnicas de esgrima em conjunto com uma agilidade quase sobre-humana.

O que importa é que haviam escapado, e os inimigos, em sua pressa, não desfizeram tudo que estavam erigindo. Portanto, a base para futuras represas ainda estava lá, firme, nos afluentes do Septentrionalis. Elas foram devidamente finalizadas ao longo dos anos de trabalho sutil e sigiloso.

Sincronismo, essa era a palavra-chave. Felizmente, o irmão da Rainha Runna, conhecido também pela alcunha de Lobo Faminto, pela voracidade com a qual se dedicava a seus objetivos, quaisquer que fossem, não era apenas um espadachim imparável! Também se descobriu um excelente matemático autodidata ao longo dos anos. Seus cálculos determinaram o momento correto em que cada afluente deveria ter seu curso represado, de modo que houvesse um declínio simultâneo do poderoso fluxo de água no Septentrionalis.

E isso deveria ocorrer também na data e hora certa, numa noite escura, sem lua. A que água já em curso escoaria, e, gradativamente, o volume e ímpeto da correnteza deveriam diminuir. Se as fortalezas laterais fossem derrubadas enquanto o rio corresse com força suficiente, as pedras seriam simplesmente arrastadas para baixo antes dos destroços se acumularem o suficiente para formarem barreiras sólidas o bastante para aguentar o tranco da água, quando as barragens fossem abertas.

E novos cálculos minuciosos foram necessários para a libertação das águas, de modo que a correnteza não mais represada dos afluentes chegasse no rio principal progressivamente, criando a maior tromba d’água que o rio Septentrionalis jamais havia exibido. Era como encadear ondas criadas num lago pelo arremesso de pedras. Se forem jogadas próximas, em continuidade, as ondas irão se reforçar mutuamente, retroalimentar a força, gerando uma poderosa onda de choque.

Uma operação complexa, sem dúvida, mas ele realmente era ótimo com os números, e seus testes em escalas proporcionais em maquetes deram resultado: o solapamento foi um sucesso. O desmoronamento das novas fortalezas obstruiu suficientemente o caminho das águas, aterrando o leito dos braços do grande rio. As ruínas, que quase atingiam a altura dos muros da fortaleza elevada, formaram um funil. Sendo assim, o rio não mais possuía dois caminhos, duas quedas d'água para a catarata... apenas um único remanescia, e a água é volátil, sempre encontra o caminho mais rápido e fácil para seu destino…

Após receber o sinal de sucesso na demolição, as barreiras dos afluentes do grande rio foram liberadas na cadência correta, e toda a fúria das águas se manifestou, cobrando juros pelo tempo que ficara estagnada. A onda resultante mais se assemelhava a um punho gigante de algum deus do mundo antigo, cultuado pelos povos que viveram antes da Grande Destruição.

A fortaleza central de Kataraks era forte, escavada na rocha, e boa parte da estrutura resistiu ao golpe, com leves avarias. O que não era problema para os agressores, cujo alvo não era a estrutura dos castelos, e sim os soldados que guardavam o guarneciam. Eles estavam preparados para lutar apenas contra homens e máquinas de cerco, e não contra uma torrente imparável de água gélida,;Não tiveram a menor chance.

Mesmo com suas habilidades matemáticas, o general Rysar não conseguira estimar o volume de água e a velocidade, logo, também não sabia sua força, apenas que seria colossal. Por isso cavalgou o mais rápido que pôde até um ponto elevado que lhe permitiu assistir o gigantesco punho líquido atingir seus inimigos. E não se decepcionou com o espetáculo: julgou ver a materialização da ira do norte e de sua sede de vingança e de conquista, atingindo impiedosamente o castelo, matando instantaneamente todos que ali estavam, partindo seus ossos, rompendo seus órgãos, afogando quem foi pego em salas interiores e no subsolo.

Assistiu, com deleite, a onda prosseguir avançando, somente ganhando mais força ao chegar na grande encosta da montanha. Os militares que estavam subindo a encosta deveriam ter seguido o conselho da avó daquele soldado anônimo e recuado assim que os animais haviam debandado. Agora não havia para onde correr, estavam cercados por seus próprios muros delimitadores da estrada, encurralados naquele corredor. Nenhum rio poderia pedir um leito melhor. A onda foi simplesmente canalizada naquela rampa aplainada, e ninguém escapou dela.

A cidade baixo estava igualmente condenada. Recebeu o golpe mais forte de todos, com todo o peso da gravidade agindo no fluxo de água. O rio caiu avassaladoramente sobre os alojamentos, talvez fazendo alguém se lembrar das lendas a respeito do meteoro que havia moldado o mundo atual ao destruir o antigo, aniquilando civilizações e mudando todos os mapas. Guardadas as proporções, havia muita semelhança com a catástrofe em curso.

O golpe das águas foi devastador. Demoliu casas, alojamentos, depósitos e prédios oficiais, como se fossem feitos de mera areia. Esmagaram os homens e animais como folhas secas e transformaram aquela cidade murada num lago, com as muralhas agindo temporariamente como margens. Destroços das construções e as armas ali guardadas apenas tornaram a correnteza mais mortal, que agora, além de esmagar e afogar, passara a retalhar os poucos sobreviventes do primeiro golpe. Quem escapou da onda, dificilmente teve chances de escapar da inundação.

A segurança na fronteira norte, com sua orgulhosa guarnição e seu competente e bem equipado exército, não mais existiam. O ano era 1042, que doravante seria chamado apenas por sua alcunha: ano do Rompimento.

Romperam-se as barragens.

Rompeu-se uma paz de 13 anos.

Rompeu-se a fronteira.

E, do norte, irrompeu um grande exército.

Um exército intacto, que aniquilou seus primeiros e mais preparados oponentes sem sofrer sequer uma baixa, nem mesmo deixando testemunhas para alertar as capitais de seus inimigos. A guerra que começara há treze anos finalmente teria continuidade. A invasão havia se iniciado.

Henrique Morgante
Enviado por Henrique Morgante em 15/10/2021
Reeditado em 05/06/2022
Código do texto: T7364649
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