Plural (por A.S.C.)

Eu não poderia deixar de publicar este texto excelente e que adorei!! Por A.S.C., meu cunhado...

Naquela segunda feira de fevereiro, quando ele nasceu, às duas horas da madrugada, l5 minutos após seu irmão mais velho, o pai, Francisco, passado o choque, sentenciou:

“Serão ambos Ignácios, com “g” mudo. O que veio depois será Ignácio Segundo”. E assim se fez, ao serem registrados os dois filhos de Francisco.

Uma tia muito religiosa, quando conheceu o bebê, pegou-o no colo e exclamou: ”Parece um santinho”.

Bastou para que todos começassem a chamá-lo de Santo Ignácio, contra a vontade de Francisco, que não era lá muito chegado às coisas espirituais.

Os gêmeos tinham comportamentos distintos. O mais velho era calmo, pouco mamava e dormia feliz, especialmente durante as madrugadas, para conforto e tranqüilidade de seus pais.

Ignácio Segundo, entretanto, fazia os pais pagarem caro pelo privilégio de terem levado dois pelo preço de um. Passava as noites em claro, chorava o tempo todo e só se acalmava quando a mãe, quase desmaiando, se dispunha a dar-lhe um peito, fazendo Segundo se calar. E ele, insaciável, exigia os dois.

A tia, aquela mesma que o chamara de santinho, observou em uma de suas visitas que o garoto apresentava um ligeiro grau de estrabismo. Mas, como isso é comum em recém nascidos, ninguém se mostrou preocupado, exceção feita a Francisco, que começou a prestar mais atenção aos olhos do garoto.

E assim o tempo foi passando.

Quando os meninos, já crescidinhos, chegaram à idade de serem matriculados no curso maternal, o estrabismo de Ignácio Segundo havia se acentuado e o oftalmologista recomendou que procurasse exercitar a vista para tentar minorar o problema. Francisco, então, buscou, desde o segundo aniversário das crianças, fazê-los entender conceitos de quantidade. Para tanto, erguia a mão à frente dos meninos e, com um dos dedos levantado, perguntava: “Quantos dedos têm aqui?”

Ignácio invariavelmente acertava, gritando bem alto ao responder: “Ummmm”.

Ignácio Segundo, pensativo, ficava olhando para a mão do pai e, depois de alguns segundos, balbuciava meio inseguro: ”Dois”. . Francisco ficava nervoso e gritava com o menino, que imediatamente se punha a chorar, enquanto o irmão mais velho caia na risada. E, embora Francisco repetisse freqüentemente o exercício, as respostas eram sempre as mesmas.

Foi quando ele começou a chamar Ignácio Segundo de “Plural”. Era Plural prá cá, Plural prá lá, e o apelido foi pegando.

E o tempo continuou a passar.

Já alfabetizados, Ignácio e Plural, “ops”, Ignácio Segundo, começaram a apresentar entre si algumas diferenças. O primeiro, destro, não era muito chegado às práticas esportivas. Plural, logo que ganhou sua primeira bola mostrou-se habilidoso e, para alegria do pai (fanático por Rivelino e Maradona), chutava com o pé esquerdo tão bem, que Francisco começou a antever uma carreira brilhante no seu Corinthians e, por que não, até em um dos grandes clubes da Europa. Fama e fortuna passavam por sua cabeça e ele já se via como empresário do filho, negociando fantásticos contratos para o garoto que, como ele dizia, batia com as duas. (Mal sabia Francisco, mas bater com as duas não só era uma verdade, como também premonição).

Só uma coisa o incomodava. O estrabismo cada vez mais acentuado de Plural. Os médicos consultados diziam que talvez pudesse ser feita uma cirurgia corretiva, mas Francisco não dispunha de recursos.

Plural não ligava, apesar das brincadeiras e gozações dos coleguinhas de escola. As meninas até chegavam a ver algum encanto naqueles olhos que miravam pontos distintos, mas, ainda citando Francisco, “ficavam atentos ao rapa e ao freguês, simultaneamente”.

Quando Plural se mostrou ambidestro, começando a escrever igualmente com as mãos esquerda e direita, todos ficaram abismados e encantados, pois não se conseguia distinguir diferenças de grafia nas coisas escritas, qualquer que fosse a mão empregada.

Mais surpreendente, entretanto, foi quando ele demonstrou conseguir escrever, ao mesmo tempo, diferentes frases com cada mão. Coisas de um cérebro privilegiado. Era um fenômeno e os pais tentavam encontrar formas de capitalizar essa habilidade.

Plural não entendia os motivos de tanta admiração, pois para ele aquilo era absolutamente normal. Estranho era o fato de as demais pessoas não conseguirem agir assim.

Mas, Plural era realmente um caso a ser estudado.

Apesar de suas habilidades, conseguiu repetir a 1ª, a 3ª, a 5ª e a 7ª séries do primeiro grau, ou seja, apenas a cada dois anos conseguia ser promovido. Fez em oito anos o que todos os meninos faziam em quatro.

O pai balançava a cabeça e resmungava: ”Não tem jeito mesmo, é Plural e sempre será”.

E o tempo continuava a passar.

Plural aceitava todas as brincadeiras com sorrisos e chegava até a participar de algumas.

No bingo familiar, seu tio, que normalmente cantava as pedras, ficava ansioso à espera que o número 2 fosse sorteado para poder dizer bem alto: “PLURAAAL”, e caia na risada juntamente com toda a família.

Plural apenas sorria.

Acabou se tornando viciado em chocolate. Mas vocês já devem ter adivinhado qual o seu favorito...Isso mesmo. Era o “Bis”. Devorava caixas inteiras e começou a ficar obeso, tanto que o pai vivia a repetir: “Tinha que ser Plural. Esse menino come por dois”.

Quando saia com algum amigo, não perdia a oportunidade de tomar café no balcão dos bares, só para repetir sua piadinha favorita quando o amigo pedia ao garçom: “Dois cafés”. Ele emendava na hora: “Dois prá mim também”. E morria de rir.

Atendendo ao telefone, mesmo que a ligação fosse para ele mesmo, sempre pedia: ”Um segundo, por favor,” e deixava as pessoas à espera, raivosas, porque sabiam que era o próprio Plural do outro lado da linha.

Quando aos 20 anos, começou a discutir política, suas opiniões nunca eram definitivas. Argumentasse a favor, ele era contra, e vice-versa. Pluralidade e dubiedade eram as suas bandeiras.

Mas, a coisa ficou feia mesmo quando começou a desmunhecar. E se tornou insuportável quando trouxe o “noivo” para apresentar aos chocados familiares.

Francisco queria morrer de vergonha e se arrependia de ter sido ele a começar aquilo tudo.

Quando ouviu chamarem seu filho de Santo Ignácio de Boiola, partiu prá briga, gritando:

“Ele é muito macho, viu? Plural só é um pouco... singular.”

E daquele dia em diante nunca mais Francisco chamou Ignácio Segundo de “Plural”. Passou a tratá-lo apenas como Ignacinho.

Ignácio Segundo foi “dublê” de muitos atores. E de dezenas de atrizes, também.

S.Paulo, 12/11/2007